reportagem especial

O que as queimadas da Amazônia têm em comum com nossos problemas ambientais

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data-filename="retriever" style="width: 100%;">Reprodução

Com os olhos do mundo voltado para o que já é denominado por especialistas da área ambiental como abismo climático, e com a Amazônia que ainda arde em chamas como consequência do corte ilegal de árvores, antigas polêmicas e militâncias foram evidenciadas nos últimos três meses. Do sul do Brasil, a cidade de Santa Maria também reage. Pesquisadores deslocam-de ao Norte do país, bem como a sociedade civil se reúne em protestos. Ainda em 22 de agosto, vestidos com camisetas brancas e verdes, um grupo de pessoas encampadas por um estudante de 18 anos compareceu à Praça Saldanha Marinho para discutir os impactos das queimadas da floresta amazônica em todo planeta.

Dias depois, obviamente em proporções diferentes, um "desmatamento urbano" em pleno Bairro do Rosário colocou abaixo 17 árvores cinquentenárias e centenárias sem autorização do município. Para além de uma das vias mais verdes da cidade perder a sombra e seu potencial arbóreo, o patrimônio histórico e paisagístico do local foi devastado da noite para o dia. Já no dia 1º de outubro, o Parque Natural Municipal dos Morros (PNMM) sofreu seu nono incêndio desde sua criação, em 2016.

Pesquisadores do Estado, há décadas, têm chamado a atenção, por exemplo, para a perda gradativa do Pampa, o bioma exclusivo do Rio grande do Sul, que vem sendo impiedosamente alterado por lavouras e cultivo de gado. A repetição de negligências ambientais se perdem em data, tempo e espaço.

Na geografia, o conceito de escala permite fazer a relação de proporção entre a área real e a sua representação. . Diante dos fatos, em que escala, proporção e gravidade o desrespeito com o meio ambiente nos atinge? O que "nossas perdas" nos aproximam?

- Impossível pensar na existência e na manutenção do mundo contemporâneo sem que venha com ele impactos ambientais, pois qualquer tipo de avanço sobre as áreas naturais do planeta se dá em função da necessidade de consumo. Desde alimentos, que necessitam ser plantados, de madeiras para construção civil, de criação de animais, de construção de barragens para geração de energia elétrica e outras ações para os mais diversos fins. Tudo impacta. Creio que devemos pensar a consequência de nossas atitudes - chama a atenção o professor Cássio Arthur Wollmann, do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

"NO PAMPA, O CAMPO É A FLORESTA DA AMAZÔNIA"

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Heinrich Hasenack - Divulgação

Amazônia, Caatinga, Campos Sulinos, Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal são os seis biomas brasileiros, além de outras quatro regiões de transição onde há características comuns a mais de um deles. O Bioma Amazônico compreende, oficialmente, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 49,29% do território nacional, enquanto o Pampa, também chamado campos sulinos, 2,07%. O Pampa, porém, é o único a existir em somente uma unidade da federação, no caso o Rio Grande do Sul, o que, no passado, significou 63% do território. Estatísticas de 2008 apontam que, naquele ano, remanesciam 36%, segundo o geógrafo Heitor Peretti. O alerta para a degradação e a importância de preservar o bioma são uma insistência constante de pesquisadores e profissionais ligados ao meio ambiente.

- O percentual, hoje, é ainda menor. Nele, existem pelo menos 450 tipos diferentes de gramíneas e mais de 500 espécies de animais. Assim, a remoção de um hectare de Pampa para implantar lavouras temporárias de milho, trigo e soja é pelo menos 24 vezes mais grave do que a remoção da mesma área no bioma amazônico, pois o pastoreio extensivo, que não remove a vegetação do Pampa, é perfeitamente sustentável - explica o geógrafo ao lembrar que o Pampa é 24 vezes menor que a Amazônia.

As informações integram as pesquisas do professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Heinrich Hasenack. O professor enfatiza a importância de preservar o Bioma Pampa, o qual não é resultado do desmatamento de uma floresta, mas uma paisagem campestre com mais de mil anos. Quando é removido, remove-se não apenas as plantas, mas toda biodiversidade associada. Desse modo, perde-se parte das sementes que estavam nesse solo e que germinariam nas estações seguintes, e insetos polinizadores desaparecem. O mesmo vale para as aves que se alimentam de sementes ou dos insetos, bem como micro-organismos do solo que são reduzidos em função da simplificação de plantas nas lavouras.

- O campo nativo, nem sempre "perfeito aos nosso olhos", não é para ser um jardim uniforme. Acontece que as pessoas se acostumaram a achar mais bonita uma lavoura de soja do que um campo nativo. No Pampa, o campo é a floresta da Amazônia - compara Hasenack.

SANTA MARIA PRECISA EVOLUIR EM PROTEÇÃO AMBIENTAL

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Cássio Arthur Wollmann - Divulgação

Santa Maria é composta pelos biomas Pampa e Mata Atlântica, porém, a dificuldade está em localizá-los com precisão, segundo explica o professor Cássio Arthur Wollmann, do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Dados do Radambrasil - um projeto do então Ministério das Minas e Energia dedicado à cobertura de imagens aéreas de radares do território brasileiro - mostra, em 1986, que existiam cinco tipos de fisionomias para a vegetação no Coração do Rio Grande as quais apareceram interligadas. É por isso que há uma certa dificuldade de mapear uma linha definitiva que separe os biomas. De maneira prática, em média, 60% da cidade possuem domínio pampeano, e 40% de Mata Atlântica, principalmente nos morros, ao norte do município.

Registros históricos têm ilustrado a retirada de vegetação tanto para comercialização da madeira quanto para a expansão urbana e atividades agrícolas e pecuárias.

Desde 1993, quando a Unesco tombou a Mata Atlântica e criou a Reserva da Biosfera, e em 2005, a prefeitura inseriu no Plano Diretor o manejo desta reserva e houve regeneração da mata nas encostas da serra e dos morros. A redução também pode estar associada à dificuldade de expansão da área urbana devida à declividade do terreno. Já em 2016, com o decreto municipal de criação do Parque Natural Municipal dos Morros (PNMM), cujo objetivo é manter a conservação dos atributos naturais da região, reiterou a preservação desse bioma. Porém, o Pampa ainda carece de instrumentos de gestão e conservação.

- Medidas protetivas estão em situação mais precária (em relação ao Pampa) quando comparadas com as aplicadas à Mata Atlântica. Foi apenas em 2017 que o governo do Estado instituiu um decreto que estabelece diretrizes ambientais para a prática da atividade pastoril, mais usual no Pampa. Também tramita na Assembleia Legislativa um projeto de lei que visa a regeneração e o uso sustentável desse bioma - relata o professor.

Localização
Segundo professor Wollmann, na área urbana é difícil identificar os biomas isoladamente. Diz-se que, em geral, considera-se os 100 metros da altitude, sendo que 100 para cima é Mata Atlântica e 100 metros para baixo é Pampa. Cidades da região, como São Gabriel e São Vicente do Sul, ilustram melhor o bioma, embora sejam áreas alteradas com lavouras de arroz, soja e pasto para a criação de gado.

- Às vezes, podemos encontrar Pampa em áreas altas e um pouco de Mata Atlântica em planícies, pois não há um muro ou linha definidora. Na cidade, as espécies se misturam. A área urbana está em cima de uma área de transição.

  • Pampa - Sul do município, em direção a São Sepé e São Gabriel. Várzeas do Cadena, do Vacacaí-mirim, do Arenal, Arroio dos Passos das Tropas e do Passo da Ferreira
  • Mata Atlântica - Norte do município, na região do Parque Natural Municipal dos Morros, Arroio Grande, Morros dos Elegantes, Santo Antão e Campestre

OLHAR GAÚCHO PARA AMAZÔNIA
Heitor Peretti esteve na Amazônia pela primeira vez há 17 anos. Desde então, sua relação com a floresta e sua luta para uma compreensão coletiva sobre o que vem acontecendo amparam-se em conhecimento técnico e causa pessoal. Ele atenta que bioma vem sofrendo com a ocupação desordenada e predatória há pelo menos 50 anos, desde que os grandes eixos de penetração rodoviária foram anunciados naquela região. A retomada do desmatamento e das queimadas, com intensidade renovada sobre os últimos cinco anos, evidenciou o processo de ocupação territorial ilegal, desordenada e predatória da Amazônia. O geógrafo explica, que embora ocorram pressões do garimpo ilegal sobre o bioma, especialmente em terras da União (terras indígenas e unidades de conservação federais), que causam efeitos sociais e patrimoniais graves, ainda são menores do que o desmatamento e sua fase intermediária (queimadas), algo mais prejudicial a curto prazo à saúde humana e animal:

- As queimadas não são o aspecto principal do fenômeno. Antes delas, o mais importante, com custo social e ambiental incalculável: a floresta veio abaixo. Vamos ter claro que a floresta intacta não queima. É preciso derrubá-la. Não há fogo natural, é sempre obra humana e voluntária. Então, antes do fogo, a floresta já foi derrubada para formação das fazendas que serão utilizadas para a criação de gado de corte, majoritariamente, para exportação. Ou seja, cada quilograma de boi exportado vivo ou morto leva uma parcela em peso da biomassa da floresta derrubada. Quem come carne de bois criados na Amazônia, come parte da floresta também.

Peretti é enfático ao mencionar que o fator motivador na maioria das ocorrências de desmate e queimadas é a abertura de áreas para plantar pasto e criar gado de corte, bem como a falta de titularidade da terra, o principal e maior indutor da clandestinidade e ilicitude na atividade agrossilvopastoril, seguido da impunidade.

ATÉ SETEMBRO 

Conforme o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os alertas de desmatamento da Amazônia aumentaram em setembro na relação com o mesmo mês do ano passado. Foram 1.173,11 km² sob alerta, de 1º a 19 de setembro, número 58,65% maior do que o registrado em todo o mês de setembro do ano passado, quando foram emitidos alertas para 739,4 km², ou ainda 101,5% acima da média registrada em todos os meses de setembro de 2015 a 2018.

DESMATAMENTOS, PLANOS INCONCLUSOS E AVANÇOS

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

Após o que o escritor santa-mariense Antonio Candido Ribeiro chamou de "arvoricídio" na Rua do Rosário - quando, em setembro deste ano, 17 árvores foram derrubadas pela RGE sem a autorização, ferindo o patrimônio histórico e paisagístico do local -, críticas, protestos e resoluções ocorreram ao longo dos dias. No dia 2 de outubro, uma reunião realizada na Universidade Franciscana (UFN) contou com representantes da instituição de ensino, da própria RGE, da Associação de Moradores do Bairro Rosário (Ambro), além da Secretaria de Meio Ambiente. Do encontro, foram estabelecidos acordos extrajudiciais. Entre eles, que a concessionária será responsável pelo conserto das calçadas da Rua do Rosário; a UFN vai elaborar um projeto de arborização e doá-lo aos moradores do bairro e remeterá a proposta para análise da prefeitura.

Antes disso, no dia 23 de setembro, um grupo de estudantes de Arquitetura e Urbanismo da UFN chegou a pintar no chão as marcas do que seriam as sombras das árvores retiradas do local.

Na esteira dos acontecimentos, a urgência de um Plano Municipal de Arborização reacendeu a discussão. Conforme a prefeitura, o grupo técnico responsável pela iniciativa está na fase de análise de estudos feitos por universidades e demais entidades para elaboração do projeto, ainda sem data divulgada.

O plano, que foi criado em 2007, saiu da gaveta durante na Semana do Meio Ambiente. A proposta foi de fazer uma revisão técnica do antiga proposta e discutir a viabilidade de implementação, bem como o estabelecer regiões a serem contempladas na cidade, assim como a definição das espécies a serem plantadas, transplantadas ou retiradas. Em junho, o Diário mostrou a retomada do plano em uma reportagem especial (ao lado).

Outra medida que se torna urgente, conforme o geógrafo Heitor Peretti, é a de transformar outros morros de Santa Maria - por serem Mata Atlântica em estágio avançado de regeneração - em unidades de conservação.

MARCO AMBIENTAL 

O professor Wollmann salienta, porém, que o Parque dos Morros já é um marco importantíssimo, pois cria ao redor de em áreas de amortecimento em relação ao uso do solo em um raio de 10 km.

- O parque, por si só, faz um trabalho de compensação ambiental maravilhoso na região. No centro do Estado, não temos muitas unidades de conservação. Há o Parque Estadual da Quarta Colônia, a Reserva Particular de Patrimônio Natural Estadual (RPPN) Mo'ã, em Itaara, e a Reserva do Ibicuí Mirim, tudo o que vem a somar no Corredor Ecológico da Quarta Colônia e está na região.

PARQUE NATURAL MUNICIPAL DOS MORROS REGISTRA NOVE INCÊNDIOS CRIMINOSOS

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Guilherme Rocha - Divulgação

No dia 1º de outubro, um incêndio atingiu o Parque Natural Municipal dos Morros, no Bairro Campestre do Menino Deus. O fogo teve início em uma área de vegetação e foi considerado criminoso, embora não tenha sido identificada a autoria, segundo o Batalhão Ambiental da Brigada Militar. Próximo ao mirante, foram encontradas bitucas de cigarro, fósforos e alimentos. Conforme o secretário adjunto da Secretaria de Meio Ambiente, Guilherme Rocha, desde que o parque foi criado, em setembro de 2016, já são nove incêndios criminosos afetando o bioma Mata Atlântica do local. A maioria não atingiu em cheio vegetação de porte arbóreo, pois as chamas espalharam-se mais pela vegetação campestre e de regeneração. Contudo, o incidente de 2016 foi o mais significativo em mata, abrangendo várias árvores.

A prática de incêndios, segundo o artigo 250 Código Penal, prevê pena de reclusão de três a seis anos e multa. 

Queimadas

  • 2016 - 1
  • 2017 - 3
  • 2018 - 1
  • 2019 - 4


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