Reportagem especial

Com finanças no vermelho, próximo governador terá a missão de equilibrar as contas do Estado

Foto: Renan Mattos (Diário)

É difícil para um trabalhador chegar ao final do mês e perceber que o salário que recebeu não foi suficiente para pagar as contas. No vermelho e com as dívidas cada vez maiores que o valor recebido, o equilíbrio das contas já não é mais possível. Situação parecida a de muitos trabalhadores Brasil afora ocorreu com o Estado gaúcho, mergulhado numa crise financeira, que agravou com o passar das décadas. Sem poupança, o Piratini apela para depósitos judiciais pagando juros para tentar sair do aperto, além de não pagar a parcela da dívida com a União, amparado por uma liminar. O tema tem dominado o debate na campanha eleitoral e caberá ao governador eleito, em outubro, buscar alternativas para tirar as finanças da UTI e, como consequência, investir em serviços e obras à população. Com base nas pesquisas sobre os problemas que mais preocupam os brasileiros, o Diário segue com uma série abordando que temas aguardam os próximos governantes para Santa Maria e região. Neste fim de semana, a reportagem ilustra o drama das contas públicas do Estado.

Dados da Secretaria Estadual da Fazenda apontam que, somente, no primeiro semestre, o Estado teve um déficit orçamentário - que é a diferença negativa entre o dinheiro que é arrecadado e o que é gasto - de R$ 2,5 bilhões. A maior despesa nesse período foi com o pagamento do funcionalismo: mais de R$ 13 bilhões foram usados para quitar a folha. Os investimentos, por outro lado, aparecem em último lugar nas despesas semestrais - ao todo, foram destinados R$ 776 milhões.  

Não é por acaso, leitor, que o imposto que você paga rigorosamente não retorna para melhorar a condição de vida e dos serviços prestados aos gaúchos. Não sobram recursos, por exemplo, para qualificar o atendimento de hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) e para contratar mais policiais e colocá-los nas ruas. Hoje, a arrecadação do Estado não é suficiente nem pagar os salários em dia dos funcionários. Os reflexos são sentidos em diferentes áreas. O Hospital Casa de Saúde, em Santa Maria, é um dos que sofrem com a situação financeira estadual. Em novembro de 2017, o setor de maternidade do hospital, que faz de 80 a 120 partos mensais, precisou ser fechado por falta dos repasses. Na época, o Estado devia R$ 2,5 milhões para o hospital, que não conseguia quitar o salário dos médicos.

Foto: Renan Mattos (Diário)

Hoje, a Casa de Saúde segue convivendo com os atrasos. Se, por um lado, os recursos do SUS estão vindo em dia, por outro, os chamados incentivos estão atrasados há dois meses, é o que diz o administrador do Hospital, Rodrigo Carvalho. O valor é de R$ 417 mil mensais e está fazendo falta.

- A gente já tem um déficit acumulado e esses atrasos nos atrapalham ainda mais. Ultimamente, estamos pagados nossos servidores com atraso. Estamos fazendo malabarismo para não acontecer a mesma coisa do ano passado - disse.

O governo atual defende e negocia um acordo com a União para sair do vermelho. Por meio da assessoria de imprensa, a Secretaria da Fazenda informou que tem tomado medidas como cortes de gastos desde o início do governo na tentativa de equilibrar as contas.

Na linguagem do caixa

  • Operações de estatais e fundações - Ocorrem quando órgão, fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes realizam alguma receita ou despesa com dinheiro público, como compra de materiais,
  • IRRF IPE - Imposto de Renda retido na fonte pelo IPE Prev dos funcionários públicos estaduais
  • Fundeb - Dinheiro repassado pela União referente ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica nos Estados
  • Salário-educação - É uma contribuição social para o financiamento de programas, projetos e ações para a educação básica. O Estado recebe uma cota
  • Precatórios - São dívidas do Estado com o cidadão ou empresas reconhecidas pela Justiça
  • Juros de depósitos judiciais - São recursos referentes a ações que estão em andamento na Justiça e que vão garantir o pagamento de eventuais indenizações após os julgamentos
  • Sequestros judiciais - Quando, por meio de uma ordem judicial, é determinado o bloqueio de valores do Estado para assegurar um direito do cidadão, como adquirir um medicamento que deveria ser fornecido pelo poder público 
  • Lei Kandir - Repasse da União para reparar os custos sobre a não taxação de ICMS dos Estados sobre exportações de produtos primários e semielaborados, como livros, jornais, transações interestaduais relativas à energia elétrica e petróleo, etc 
  • FPE - É um fundo de participação dos Estados e municípios, Ele constitui uma das modalidades de transferências de recursos da União

CRISE CHEGOU AO BOLSO DOS SERVIDORES
O rombo nas contas públicas do Estado não atrapalha apenas investimentos em áreas como infraestrutura, segurança e saúde. Ela atingiu o bolso do servidores. Com a folha do funcionalismo na casa dos R$ 1,2 bilhões mensais, e mais de 300 mil matrículas (veja ao lado), em julho de 2015, o governo do Estado parcelou, pela primeira vez, os salários do funcionalismo, sob fortes críticas dos sindicados que representam as principais categorias. Não adiantou. Foi apenas uma amostra daquilo que iria virar rotina diante da situação crítica do caixa.  

Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

O Estado chegou a dar esperança aos servidores ao pagar em dias os últimos quatro meses de 2015. Entretanto, quando o ano de 2016 bateu à porta, a crise financeira se agravou ainda mais. Em fevereiro, mais uma vez os salários começaram a ser parcelados. De lá para cá, são 25 meses consecutivos sem depositar os vencimentos em dia. Desde setembro de 2017, o Estado adota uma nova forma: ao invés de pagar pingado os salários, os vencimentos menores são pagos integralmente antes do que os maiores. Já o 13º salário vem parcelado desde 2015. Mesmo assim, o governo não ultrapassou o teto de limite de gastos com o funcionalismo, fixado em 49% do orçamento.

Há 20 anos no magistério, a professora Sônia Weber, 46, é uma entre os milhares de servidores que sofrem com os parcelamentos. Só na educação, são mais de 189 mil vínculos (contratações). Com os salários atrasados, ela precisou recorrer ao Banrisul para fazer um empréstimo e quitar suas contas. Essa dicotomia, segundo ela, chega a ser engraçada.

- Veja bem, eu recebo atrasado do Estado e preciso tirar dinheiro em um banco que é do próprio Estado. Não faz o menor sentido. Pagando juros, eu dou lucro para o banco de um governo que não paga em dia os servidores - reclama ela.

 O problema da educação no Rio Grande do Sul, para a professora, não é unicamente atrelado aos parcelamentos que ocorrem nos últimos anos. Aluna de um curso de doutorado, ela não recebe incentivo para se aperfeiçoar e, consequentemente, desenvolver melhor o seu trabalho.

- Pela lei, eu poderia me afastar das minhas atividades. No entanto, se eu entrar com um processo pedindo esse benefício, o Estado vai alegar que não tem ninguém para me substituir. A educação não é prioridade, não importa o governo nem o partido - avalia Sônia.

O momento mais crítico foi em agosto do ano assado, quando R$ 350 foram depositados nas contas dos servidores estaduais. Um policial militar, que preferiu não se identificar, diz que se sente humilhado com a situação. Há cerca de 10 anos na Brigada Militar e pai de dois filhos, ele diz que é difícil ter motivação para trabalhar.    

Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

- Eu entendo a situação econômica do Estado, mas nós, como servidores, que prestamos um serviço essencial, não podemos pagar por isso. É humilhante, a palavra é essa - desabafa ele.

Sem dinheiro em caixa e com um prejuízo acumulado até agosto de R$ 1,12 bilhões, o Estado não tem previsão de regularizar os pagamentos. O governador José Ivo Sartori tem dito, de forma recorrente, que foi obrigado a buscar alternativas para manter os serviços em dia.

O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS

  • Tomás Pinheiro Fiori - Professor Adjunto da Escola de Negócios da PUCRS e Analista Pesquisador em Economia do quadro da Secretaria do Planejamento - Primeiro, entendo que a comparação entre orçamento público e familiar, que alimenta o medo dos déficits, é indevida e mal utilizada. Mesmo do ponto de vista individual/familiar, todos gastamos mais do que geramos de receita ao longo da vida, seja antes da idade ativa, quando estamos investindo no futuro profissional, seja após, quando nos aposentamos. Sendo assim, seja para o déficit de 2018 ou para a dívida estadual como um todo, jamais encontraremos solução que não passe pela repactuação federativa. A questão da Lei Kandir e das isenções fiscais retratam apenas essa doença do nosso pacto federativo, em que o ICMS é um imposto sobre consumo que, de um lado, é regulamentado no nível federal
  • Josué Martins - Presidente do Sindicato dos Auditores do Tribunal de Contas do Estado - Defendemos que é um erro os Estados precisarem pagar juros sobre a dívida pública. Não faz sentido um Estado, que é um ente da União, dar, literalmente, lucro para Brasília. Nós precisamos nos sentar, conversar, definir a pauta e pressionar a União por uma renegociação. Essa é a única saída para conseguirmos sair dessa crise que afeta todos nós, porque todo o nosso esforço ultimamente é só para pagar a dívida. Por isso, perdemos a capacidade de prestar um serviço adequado à população gaúcha.
  • Secretaria da Fazenda, por meio da assessoria de Comunicação sobre as medidas implantadas no governo de José Ivo Sartori                                                                       - Estabeleceu um decreto que contingenciou as despesas no Estado, cortando o pagamento de diárias, passagens aéreas, horas extras e contratos com consultorias                       - Economia de 950 milhões no primeiro ano                                                                                                                                                                                                                          - Repactuação de alguns indexadores da dívida pública                                                                                                                                                                                                       - Lei de responsabilidade fiscal e estadual                                                                                                                                                                                                                           - Aumento de alíquotas de ICMS para garantir mais receitas                                                                                                                                                                                                - Busca de receitas extraordinárias, como a venda da folha para o Banrisul e antecipação de impostos de grandes empresas

    UM PROBLEMA QUE ULTRAPASSA DÉCADAS

Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

Os problemas ocasionados pela dívida pública do Rio Grande do Sul não são nada recentes. Eles remetem aos anos 1960 e 1970, quando, no auge do regime militar, o Estado pegou muito mais dinheiro emprestado do que poderia pagar. Aproximadamente 87% da dívida estadual tem origem em apenas dois contratos realizados entre o governo do Estado e a União. Se, em 1970, a dívida do Rio Grande do Sul, em valores corrigidos pela inflação, era de R$ 2,1 bi, quase 50 anos depois, ela subiu mais do que 3.000 %, chegando a R$ 69,3 bi.

- Na verdade, esse valor mostra a transformação da dívida pública. Ela passou de um instrumento de alavancagem para o desenvolvimento econômico, para um instrumento de subtração de recurso da sociedade - afirma o presidente do Sindicato dos Auditores do Tribunal de Contas do Estado, Josué Martins.

O grande salto aconteceu entre os anos de 1994 e 1998. Em apenas quatro anos, o valor do que o Estado devia para a União mais do que dobrou: saltou de R$ 26,6 bi para R$ 59,3 bi, em função dos juros adotados na criação do plano real.

Em 1995, o governador do Estado, Antônio Brito (MDB), já prevendo que a dívida iria chegar a valores impagáveis, procurou o governo federal para pedir socorro. Foi então que o Ministério da Fazenda preparou um plano para renegociar a dívida dos Estados que estavam endividados com a União.

Um ano depois, em setembro de 1996, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, desembarcou em Porto Alegre para a assinatura de um protocolo das intenções do acordo. Para a assinatura do contrato definitivo acontecer, o Estado precisaria cumprir com seis obrigações, entre elas, a privatização de estatais, como Banrisul. Após muita pressão, em 1998, o acordo foi fechado sem a privatização do banco - mesmo que outros Estados tenham privatizado suas instituições financiarias para aderir à renegociação, como Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Para Tomás Fioril, professor da PUCRS e Analista Pesquisador em Economia do quadro da Secretaria do Planejamento do Estado, o grande problema está nos critérios adotados para a transferência de recursos da União.

- Ao todo, 55% das receitas tributárias nacionais permanecem com a União, enquanto 25% fica com Estados e 20% com os Municípios, após as transferências. . Esse é o famoso "pacto federativo", que no Brasil tem sido incapaz de promover a equidade no território nacional.

O que cabe a cada um

  • Deputados e Senadores - No Congresso Nacional, cabe a bancada gaúcha, por exemplo, formar maioria para tratar sobre questões importantes para o Estado, como a repactuação da dívida pública e os indexadores adotados para o repasse de recursos aos Estados pela Lei Kandir. Além disso, o Congresso pode propor um novo pacto federativo, em que a União repasse mais recursos aos Estados.
  • Governador e Presidente - Cabe ao Executivo realizar as medidas pertinentes para e aperfeiçoar o funcionamento da máquina pública. Além disso, o Presidente e o Governador podem enviar propostas para a Câmara de Deputados e para a Assembleia Legislativa, que possam diminuir os gastos públicos ou aumentar a receita do Estado.  

REPORTAGEM

TEXTOS - Eduardo Tesch
FOTOS - Gabriel Haesbaert e Renan Mattos
EDIÇÃO - Jaqueline Silveira

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