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Ainda em recuperação, médico com Covid-19 relata experiência

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style="width: 50%; float: right;" data-filename="retriever">Ainda em recuperação, o médico infectologista Alexandre Vargas Schwarzbold, 49 anos, diagnosticado com Covid-19 e internado durante uma semana na unidade Alcides Brum, no Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo, local restrito a pacientes com coronavírus, concedeu entrevista por e-mail ao Diário.

Schwarzbold, profissional que estuda e atua no combate da doença na região, é chefe da Unidade de Pesquisa Clínica no Husm e presidente da Associação Rio-grandense de Infectologia. Entre outros aspectos, o médico contou sobre a surpresa do diagnóstico, os receios em relação à doença e a importância de não colocar em risco outras pessoas, seguindo as orientações durante a pandemia. Conforme Schwarzbold, a desobediência de medidas de prevenção "é um ato egoísta e desumano".

Diário de Santa Maria - Como é estar na linha de frente do maior hospital público da região no combate à Covid-19 e, de repente, virar paciente?
Alexandre Vargas Schwarzbold - Quando descrevemos a atuação de um profissional de saúde na "linha de frente" é preciso que esclareçamos o que isso significa. Isso pode ser traduzido por uma ação técnico- gerencial e outra assistencial. Estive junto em um trabalho de consultoria e proposição para muitas ações e decisões colegiadas dentro da UFSM e do município. Foram tantas ações* (veja abaixo) que esquecemos de cuidar de nós mesmos. Como médicos em uma atuação assistencial, sempre há o temor do risco, mas associamos esse risco muito mais no atendimento nas unidades de pacientes confirmados com Covid, o que se revela um engano, pois o cenário de maior relaxamento e descuido com o uso de EPIs é onde mais nos contaminamos, e não naquelas unidades. Não há como negar que somos tomados de surpresa, pois temos dentro do limite, do que a ciência nos informa hoje, informação suficiente para nos proteger. A ela se associa a sensação de preocupação, inerente de todo médico, pelo fato de sabermos os riscos e as possíveis complicações. Essa doença, apesar de "benigna" em mais de 80% das pessoas, ainda tem um componente desconhecido e de evolução desfavorável em outras, e quando descobrimos que podemos ser uma delas, o temor aumenta. 

Diário - Quando suspeitou estar com a doença? Teve algum sintoma ou foi surpreendido pelo resultado do exame?
Schwarzbold - Apresentei um "quadro gripal" no dia 19 de maio. Uma obstrução nasal, coriza com líquido claro - nesse era muito profusa - e dor de cabeça. Dois dias após, começo a apresentar calafrios, tosse e o que é muito curioso nessa infecção: a perda completa de olfato e do paladar. Após isso, e após estar isolado em casa, em torno do sexto dia de sintomas coletei o exame, no dia seguinte e, apesar dos sintomas compatíveis, não nego que o resultado me surpreendeu. 

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Diário - Como estava sua rotina antes de ser internado?
Schwarzbold - Todos nós, médicos, temos rotinas intensas. Mas particularmente nessa epidemia, nós, infectologistas, tivemos demandas que não estavam em nossa rotina diária. Mantive minha carga de plantões no Hospital de Caridade e minhas atividades no Husm e na UFSM que, paradoxalmente, para a época aumentaram. Trabalhos que continuavam à noite mesmo de modo não presencial, protocolos, entrevistas, reuniões remotas para colocar nossa instituição no radar dos ensaios de medicamentos, contato dos fornecedores dos insumos para testes, etc. Rotina de sono e de alimentação que se alterou e que, possivelmente, esteve associada à evolução da doença. 

Diário - Em que data o senhor internou e quando deu alta? Chegou a ir para CTI?
Schwarzbold - Fiquei internado do dia 27 de maio ao dia 2 de junho, sem necessidade de UTI, quase uma semana sob cuidados de meus competentes colegas Thiego Teixeira e Ariovaldo Fagundes a quem sou muito agradecido pelo cuidado bem como toda equipe de enfermagem e fisioterapia do Hospital de Caridade. 

Diário - O senhor teve medo de o quadro clínico se agravar?
Schwarzbold - Sim, sem dúvidas. Por ter informações dessa doença e por ter apresentado alterações em meus exames que obrigaram a internação.

Diário- O que foi mais difícil enquanto esteve internado?
Schwarzbold - Foi conhecendo a doença, saber que o período de agravamento se dá no período que internei, ver meus exames não melhorarem rapidamente e a ausência de meu filho, a quem não vejo há um mês, emocionalmente me abalou. 

Diário - O senhor pretende voltar a trabalhar no hospital? Quando?
Schwarzbold - Logo que puder. Seguirei os protocolos de minhas instituições, mas seguramente quando puder trabalhar sem colocar outros profissionais em risco e me sentindo em condições quase plenas para o trabalho. Já estou trabalhando de modo remoto, apesar do cansaço. Quem sabe de modo presencial, na próxima semana. 

Diário - Por outro lado, o senhor prova que é possível vencer a doença. Casos de pessoas curadas são importantes nesse momento de angústia coletiva ...
Schwarzbold - Sem dúvidas. O meu caso se enquadra no limiar do quadro grave, mas temos visto recuperação de muitas pessoas graves, que mesmo após um tempo de UTI e necessidade de suporte ventilatório têm alta hospitalar e retomam à vida gradualmente. 

Diário - O senhor teve alguma sequela ou precisará seguir algum tratamento?
Schwarzbold - Como descrito na maioria dos pacientes, o período de recuperação é, infelizmente lento, em alguns até seis semanas, o mais comum em torno de um mês. No meu caso, não tem sido diferente. A fadiga continua, a tosse diminuiu, mas se apresenta em vários momentos e o mal estar ao esforço é uma tônica nas primeiras semanas. Continuo com algumas medicações para aliviar isso e espero em breve estar totalmente recuperado. Tudo leva a crer que, em quadros como o meu, não haja sequelas, assim espero. 

Diário - O senhor tem alguma ideia de como pode ter contraído a doença?
Schwarzbold - Não temos evidência para dizer isso, mas a intuição sugere que no contato com pacientes internados que apresentam sintomas clínicos e não foram reconhecidos inicialmente como infectados pelo novo coronavírus. Isso é possível de ocorrer, e tem exigido um esforço enorme dos hospitais na orientação dos profissionais e na distribuição dos EPIs.

Diário - Em linhas gerais, qual sua leitura dessa pandemia no país e na cidade de Santa Maria? 
Schwarzbold - Acredito que nossa cidade tem conduzido muito bem as ações preventivas, a população deve segui-las pois são frutos de decisões colegiadas e técnicas. Não são opiniões individuais, seja de leigos ou de eventuais especialistas, que devem nortear as decisões das pessoas. Bem, no Brasil não podemos dizer o mesmo com relação à epidemia, as repetidas mudanças, as seguidas orientações contraditórias e a insistente politização e judicialização de assuntos técnicos-científicos tem prejudicado ações que deveriam ser mais concertadas. Em todos os países com sistema de saúde estruturado, durante uma epidemia a vigilância nacional tem papel central no planejamento e nas definições das ações. Nossos dados absolutos mostram que seremos o segundo pior país do mundo em mortes e número de casos, isso que tivemos tempo para planejar melhor com a experiência asiática.    

Diário - Há algo mais que o senhor ache pertinente comentar?
Schwarzbold - Meu testemunho é para lembrar a todos que qualquer pessoa pode ser acometida por essa doença, se é verdade que a evolução é mais desfavorável em algumas populações, também é verdade que muitos não sabem de sua real situação de saúde ou estado clínico atual, o que pode representar um risco. Todos nós temos potencialmente familiares vulneráveis, sejam eles idosos ou não, colocarmos eles em risco ao desobedecermos as orientações é um ato egoísta e desumano. 

*Ações na cidade: contribuição com outros colegas infectologistas num gabinete de crise no planejamento das ações de enfrentamento à epidemia em nossa cidade. Assim, me envolvi com muitos interlocutores locais, Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), executivo municipal e secretaria estadual da saúde no sentido de viabilizarmos a testagem mais importante no sentido do diagnóstico e planejamento da contenção da doença que são os testes moleculares. A força tarefa estruturada na UFSM para testagem com apoio de vários laboratórios da instituição foi fruto disso. Fomos após o Lacen e os laboratórios privados das capitais talvez a primeira região do RS a dispor dos insumos que foram arduamente adquiridos dado a escassez e a demora no fornecimento deles. Além disso, idealizei ou participei de várias outras ações com muitos profissionais do Husm e da UFSM como a construção de nosso Observatório Covid da UFSM, a idealização com nossos físicos de um protótipo para descontaminação de máscaras através do uso de raios UV-C, a inclusão de Santa Maria no inquérito populacional coordenado pela UFPel e que hoje tem a coordenação local de nossos epidemiologistas, a inclusão do Husm em vários estudos nacionais e internacionais que agora começam e outras.

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