Eu não sei dizer nada por dizer. Então eu escuto. É assim que inicia a composição de João Ricardo e Luli, "Fala", interpretada por Ney Matogrosso à frente do vocal da banda Secos e Molhados, pelos ecos da década de 1970.
À medida que a música segue, Ney clama por um possível interlocutor: "fala"! Na sequência, ouve-se um "lá lá lá lá lá lá lá lá". Vários Neys de uma nota só. Um monólogo.
Falar é fácil, como bem sentencia a expressão popular. Mas... e escutar? Será que temos muitos exemplares de Ney ouvintes por aí? Ou a nós cabe mais o monólogo do Matogrosso?
Há pouco mais de um ano, tenho me encontrado em zonas de trânsito que me fizeram repensar as regiões de fala e escuta. Seja no vai e vem contínuo entre dois municípios aqui do Rio Grande do Sul - Santa Maria e Taquara - seja entre processos criativos e ciclos de pesquisa que se concluem, iniciam-se e reiniciam-se.
Se em Santa Maria minha vivência está ligada à urbanidade e suas polissemias, com tantos movimentos, sons, uma percepção mais acelerada de tempo e uma sensação mais oprimida de espaço, no Clube Naturista Colina do Sol a escuta é outra.
Enquanto no centro do estado o dia se pauta pelos turnos dos automóveis e transeuntes, com alguns intervalos de silêncio para as refeições, culminando com a madrugada interferida esporadicamente por um ou outro rumor, o estardalhaço do caminhão do lixo pela noite quieta, algumas vozes dissonantes, latidos e miados, na Colina do Sol... a escuta é outra!
Mas, afinal, o que tem a Colina? Bem, o espaço é mais silvestre, com uma menor interferência antropomórfica do que em Santa Maria. O tempo parece que se dilata, numa sucessão de dias, noites, chuvas, ventos e sóis, como se não houvesse outra imposição que não a dos ciclos naturais. Além disso, a relação com as pessoas, já afetada pela pandemia, também é diferente, mediada pelo naturismo e suas diversas leituras do que é ser naturista. O mesmo acontece com as urgências cotidianas, que se modificam, o que transfigura em outra experiência de espaço e tempo.
Porém, o estar em constante mobilidade entre zonas territoriais e temporais distintas é o que propicia uma relativização das coisas. E, nesse ínterim, o que mais me chama a atenção é o sentido da audição e como ele pode ser um problema, elevado em âmbito maior. Em outras palavras, como que se constitui a escuta?
Em termos de tecnologias de comunicação, por exemplo, existe uma profusão de dispositivos ao nosso acesso, tanto para a fala quanto para a escuta. Contudo, quem, como e quando se escuta de fato? Ou, ainda, como aguçar a sensibilidade para ouvir os rumores mais íntimos, aquilo que é muito sutil, presente nas pessoas e suas mediações e remediações, mesmo quando se pensa que não?
Sendo mais universal, quando escutamos nossos corpos? Pois todas as pessoas têm corpos, não é mesmo? E o que escutamos quando paramos para ouvir, feito quem se olha no espelho por longos minutos e percebe que existe? Eis que, aí, podemos descobrir um abismo à nossa frente. Porém, nada melhor do que olhar para baixo e entender a que altura estamos e enfrentar esse despenhadeiro.
Nós também somos dispositivos, tal como uma máquina, um equipamento, um aparelho, e esses mesmos dispositivos também têm muito de nós, programados e programadores de nossas vidas.
Somos constituídos de potências, interferidos por zonas que se apresentam de diferentes maneiras ao longo da vida, entre falas e escutas. Embora estejamos em imersão na efemeridade, são essas pequenas coisas fugazes que se juntam e formam o todo, em dobras e desdobramentos.
Pelas idas e vindas, além de tantas transformações nesses últimos meses, que culminaram em uma dissertação de mestrado em Artes Visuais e uma exposição que aborda os lugares de fala e escuta, acredito que João Ricardo, Luli e Ney sabiam muito bem o que falavam, o que pode nos servir de algum jeito no atual fluxo do mundo: "Eu só vou falar. Na hora de falar. Então eu escuto".