O patrimônio da Corsan em Santa Maria que deve ser entregue a grupo paulista

Pâmela Rubin Matge,Eduarda Costa

O patrimônio da Corsan em Santa Maria que deve ser entregue a grupo paulista
Envolta de vaivéns contratuais que emergiram em disputas políticas e interferências judiciais, a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) foi vendida em leilão no dia 20 de dezembro. Ocorre que, antes deste ato, o cenário já era de discussões institucionais e preocupação da população sobre a eventual  “privatização da água”, da gestão dos serviços, da tarifa, da qualidade e da eficácia da operação. 

No caso específico de Santa Maria, em 16 de dezembro do ano passado, o município aderiu a um aditivo contratual com a estatal com investimentos de R$ 935 milhões. A vigência: até 2062. Isso significa que, independentemente do modelo de prestação de serviço, a Corsan seguirá no dia a dia dos santa-marienses. Investimentos e acompanhamento das tratativas estão no horizonte das promessas da prefeitura e da própria companhia.

Hoje, a Corsan atende a 317 cidades, o que equivale a cerca de dois terços dos municípios gaúchos. Somente no Coração do Rio Grande são 218 trabalhadores que atuam na captação, tratamento, distribuição de água tratada e coleta e tratamento de esgoto. Também é na cidade que está instalada a Superintendência Regional, responsável pelo atendimento de 30 cidades da região central do Estado. 

Essa relação tem uma história que começou na década de 1960, quando menos da metade da população da cidade tinha acesso a água potável, algo que hoje já é universalizado. Segundo o professor de história Gilmar Niederauer, que atuou em escolas públicas de Santa Maria, a criação da Corsan buscava aperfeiçoar o saneamento e o abastecimento de água nos municípios gaúchos:

– Em 1917, o intendente da época (equivalente a prefeito), Astrogildo de Azevedo, contatou Saturnino de Brito, nascido em Campos (RJ) e famoso engenheiro com obras na capital brasileira e no Exterior, como Paris, na França, para elaborar estudos visando a melhoria do saneamento. Saturnino fez obras para abastecimento de água e sistema de esgotos em vários pontos da cidade, em especial, no reservatório principal, localizado na praça que hoje leva o seu nome. Foi por isso que, aos poucos, a Praça Saturnino de Brito foi sendo referida, também, pelo nome de “Praça da Corsan”.

1º RESERVATÓRIO

Saturnino de Brito fez obras para abastecimento de água e sistema de esgotos em vários pontos da cidade e dá nome à praça onde fica o primeiro reservatório da cidade. Foto: Eduardo Ramos

Conforme contextualiza o professor, cerca de 20 anos depois, segunda metade da década de 1930, o então governador do Estado, Flores da Cunha, por meio de convênios, assumiu a gestão sobre o abastecimento de água nos municípios com o objetivo de tirar deles o ônus que esse serviço implicava nas finanças públicas, reduzir a precariedade e promover a segurança sanitária.

– Em 1965, a Corsan, como é conhecida até hoje, foi criada, mas só oficializada no ano seguinte, data em que é aceita como a de sua fundação: 28 de março de 1966. Apenas três anos depois, a nova empresa assumiu a responsabilidade do serviço em Santa Maria na gestão do prefeito Luiz Alves Rolim Sobrinho pela Lei Municipal 1.410, de 16 de outubro de 1969. À época, o principal reservatório da cidade, projetado por Saturnino de Brito, na praça entre as ruas Doutor Bozano e Niederauer passou, então, a ser identificado com a marca da Corsan – conta o professor Gilmar Niederauer.

A VENDA

O leilão ocorreu na manhã da última terça-feira, na Bolsa de Valores B3, em São Paulo. Com lance mínimo de R$ 4,1 bilhões, o leilão teve apenas uma proposta da empresa paulista Aegea Saneamentos, que estava representada pela Necton Investimentos. Assim, a proponente foi a vencedora com um lance único de R$ 4,151 milhões, um ágio de 1,15% em relação ao valor mínimo. Aegea é líder no setor privado de saneamento básico no Brasil e já opera uma parceria público-privada com nove municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre.

Aditivo prevê R$ 306 milhões para investimentos em água e esgoto

Entre os requisitos para assinatura do aditivo contratual com a Corsan, negociado há pouco mais de um ano, estavam previstos o investimento de R$ 306 milhões para melhorias no abastecimento de água e esgoto da cidade. As adequações devem ser feitas até o ano de 2033, e atendem as metas impostas pelo Marco Legal do Saneamento, que prevê cobertura de 99% de abastecimento de água e 90% de tratamento de esgoto. Em um ranking anual de saneamento, que avaliou as 100 maiores cidades do país, Santa Maria apareceu na 75º posição. O estudo, divulgado em 22 de março, foi feito pelo Instituto Trata Brasil, uma entidade privada que compila dados do Sistema Nacional de Informação de Saneamento (Snis) do governo federal. 

Em Santa Maria, a cobertura atual dos serviços de saneamento básico na área urbana da cidade corresponde a 100% de abastecimento de água e de 65% de tratamento de esgoto. Nos distritos, a prefeitura estipulou prioridades para o cumprimento de metas até 2033. No momento, existem obras em execução para ampliação do tratamento de esgoto, que devem elevar a 85% de tratamento na área urbana no primeiro semestre do ano que vem.

Mesmo com a companhia leiloada, município e Corsan afirmam a manutenção do contrato, bem como da operacionalidade, que deve ser mantida. Contudo, alguns questionamentos surgem da população e de profissionais da área sanitária.

– A Corsan atende mais de 63% dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul (317 de 497 municípios), e, mesmo com uma cobertura de saneamento no sistema de subsídio cruzado (atendendo até municípios não lucrativos), tem obtido lucro nos seus últimos anos de operação. O leilão no valor de R$ 4,15 bilhões foi um excelente negócio para a empresa vencedora, que ficará com uma empresa lucrativa e com enorme infraestrutura e capacidade técnica operacional. Vale lembrar que a empresa vencedora precisará manter investimentos para o atendimento dos patamares de 99% no atendimento de água e 90% no atendimento de esgoto, até o ano 2033, de acordo com o Marco Legal do Saneamento – diz Elvis Carissimi, professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Segundo ele, infelizmente a população não teve tempo de opinar sobre o tema tão relevante. O professor sugere, por exemplo, a realização de plebiscito para decidir sobre a privatização. 

– Ainda é cedo para opinar sobre mudanças nos valores de cobrança para os usuários, porém é sabido que as regras de regulação e tarifação serão determinadas mediante uma análise do novo comando da empresa – afirma Carissimi.

O prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom, afirmou ao Diário que as tratativas com a nova empresa, a  paulista Aegea Saneamentos, serão ainda mais contundentes:

– Não vai ter impacto negativo, porque nós temos um contrato firmado. Se é privatizado ou não, não interessa, eles vão cumprir rigorosamente. O que eu tenho convicção é de que a Corsan privada não vai querer ter tantas multas agora, para atender aos interesses da nossa comunidade.

Conforme o Centro de Apoio Operacional de Defesa da Ordem Urbanística e Questões Fundiárias do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP-RS), a situação de Santa Maria não deve alterar. Isso porque o município e a Corsan já assinaram o aditivo que regularizou o contrato de programa frente a exigências trazidas pelo novo Marco Legal de Saneamento Básico, legislação esta que estimula privatização de empresas estaduais de saneamento como a Corsan, prevendo um sistema que, na prática, equipara o contrato atual, aditivado, a um contrato de concessão. O órgão assegura que, da mesma forma que atuou até o momento, seguirá acompanhando, independentemente do modelo de prestação de serviços, seja direta pelos municípios ou indireta por contratos, sempre no intuito de cumprir sua missão que é a de que o serviço seja adequado à população.

Entenda:

A Corsan é uma sociedade de economia mista de capital aberto, sediada em Porto Alegre. A estatal foi fundada em 1966 e, atualmente, atende mais de 300 municípios e 6 milhões de pessoas, cerca de dois terços da população do Estado. Atualmente, a empresa tem cobertura de 96,9% de acesso à água tratada e de 19,3% de tratamento de esgoto

Março de 2021 – A privatização da Corsan foi anunciada pelo então governador Eduardo Leite (PSDB). O projeto foi apresentado à Assembleia Legislativa

Agosto de 2021 – Assembleia Legislativa aprova com 33 votos favoráveis e 19 contrários. A previsão do governo era finalizar a venda em fevereiro de 2022

9 de dezembro de 2022 – Tribunal de Justiça Estado (TJ/RS) havia suspendido o leilão

14 de dezembro de 2022 – A pedido da Procuradoria–Geral do Estado (PGE), a 4ª Câmara Cível do TJ autorizou a retomada do processo

19 de dezembro de 2022 – Governo do Estado conseguiu garantir a realização da disputa para privatização da companhia. O certame havia sido suspenso pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), mas uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) anulou a medida, a pedido do governo do Estado. Após, o Tribunal de Contas do Estado (TCE–RS) concedeu medida cautelar impedindo que o governo fizesse a assinatura do contrato de compra e venda das ações da Corsan e a consequente transferência das ações

20 de dezembro de 2022 – Após suspensões e retomadas do processo de desestatização, a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) foi leiloada pelo lance mínimo de R$ 4,1 bilhões

Promessa é de 85% do esgoto urbano ser tratado em 2023

A Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) de Santa Maria trabalha no limite da capacidade, filtrando 280 litros de esgoto por segundo. Uma obra para ampliação da ETE Lorenzi, na Região Sul da cidade, deve ser concluída no primeiro semestre de 2023, e deverá ampliar a capacidade para 520 litros por segundo. A partir da finalização dessa obra, Santa Maria pode se tornar a cidade com maior atendimento em tratamento de esgoto do Estado, segundo promessa da Corsan.

– No momento, a ETE está em fase de implantação dos emissários e das estações de bombeamento. Quando entregue, ela vai dar condição de tratamento de todo o volume de esgoto que está vindo do Bairro Camobi – afirma a gestora da Corsan na cidade, Andréia Moraes Zanini.

A longo prazo, outras regiões da cidade que não possuem planejamento para tratamento devem ser incluídas. Atualmente, algumas áreas da região Oeste, como na Nova Santa Marta, ainda não possuem rede implantada. Também é o caso do Campestre do Menino Deus e em algumas ruas do Bairro Pinheiro Machado.

Obras de esgotamento em andamento:

Bairro Pinheiro Machado

Dom Antônio Reis

Juscelino Kubitschek (na região do Jockey Club)

Vila Santos

Abastecimento de Água

Cinco áreas de ocupação receberão água ainda em 2022

Cinco áreas em processo de regularização fundiária na cidade também devem receber encanamento de água ainda no mês de dezembro, localizadas na Nova Santa Marta, Cerrito, Alto da Lorenzi e no Monte Betel (popularmente conhecido por ocupação da Caixa D’água). As famílias irão receber a implantação de redes de água sem custo de instalação, e ficarão o período inicial de três meses sem cobrança da tarifa de uso

Distritos inclusos no plano de abastecimento

A prefeitura sinalizou à Corsan quais áreas possuem prioridade, e as obras devem ser entregues até 2033. Alguns distritos já possuem extensões de rede, ou abastecimento parcial 

Pains

Arroio do Só

São Valentim

Passo do Verde

Santa Flora

Saúde pública a longo prazo

Foto: Eduardo Ramos

Ainda que 35% da população urbana da cidade não esteja ligada à estação de tratamento de esgoto, o resíduo gerado precisa de destinação correta. Em caso das instalações irregulares, quando há despejo do esgoto sem tratamento nos rios, a ação causa a poluição das nascentes, impactando diretamente na saúde pública e na irrigação, como explica a doutora em recursos hídricos e saneamento ambiental, Ana Beatris Brusa:

– Mesmo que 100% da população não esteja sendo atendida, o esgoto não deixa de ser produzido. Esse esgoto bruto está sendo lançado no curso de água e piora a qualidade do que está sendo captado para levar o recurso à população. Tudo isso vai implicar na saúde da população e maior vai ser o custo para tratar essa água.

Segundo a especialista, é difícil prever que 100% da população seja atendida pelo tratamento de efluentes, devido ao alto custo de investimento para as readaptações. Mesmo assim, por questão de saúde pública, é preciso que todos estejam ligados à Companhia para que haja o tratamento dos resíduos antes do descarte na natureza.

Atualmente, por meio do Programa SoluTrat, a Corsan realiza o tratamento de fossas sépticas individuais, instaladas em locais que não há possibilidade de fazer implantação de rede.

– Quando entramos para fazer a implantação de esgoto, nem todo o local pôde ser atendido 100% por condições técnicas mesmo.  Fazemos uma avaliação estrutural e topográfica para identificar se o trecho tem cota para ser ligado à rede e alguns casos não têm. Desta forma, é que entra o SoluTrat – explica  Andréia Zanini, gestora da Corsan.

Marco Legal do Saneamento

O Marco Legal do Saneamento foi considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2 de dezembro de 2021

A determinação é universalizar o atendimento de água potável em até 99% e os serviços de coleta e tratamento de esgoto sanitário em até 90% para o ano de 2033 

Também prevê o encerramento de lixões a céu aberto até 2024

“Até a transição, a gestão continua da mesma maneira que a empresa adota”

José Roberto Ceolin Epstein, 40 anos, é superintendente regional da Corsan desde 1º de abril de 2015. Formado em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), começou as atividades na Companhia em 2008, após ter prestado concurso público para atuar como engenheiro. Em 2011, assumiu o cargo de coordenador operacional em Santa Maria e, em 2013, de superintendente adjunto. 

Em entrevista ao Diário, ele fala dos serviços prestados ao município e sobre o futuro da Companhia vendida por meio de um leilão, na última terça-feira. Confira:

Diário de Santa Maria – Quantos funcionários a Corsan emprega em Santa Maria?

José Epstein – Funcionários próprios da empresa são 218, divididos nos mais diversos cargos, gerenciais, operacionais e técnicos.

Diário – E dispostos em diferentes unidades, correto?

Epstein– Sim. Possuímos duas unidades de atendimento comercial em Santa Maria, uma em Camobi e outra no Centro. Além disso, temos a Superintendência Regional, que fica em Santa Maria, que é responsável pelo atendimento de 30 cidades da região central do Estado.

Diário – O senhor pode reiterar os serviços prestados pela Companhia na cidade?

Epstein – A Corsan é responsável pela captação, tratamento, distribuição de água tratada e coleta e tratamento de esgoto em Santa Maria. Serviços operacionais e de obras para viabilizarem essas atividades principais são também realizadas parte pelas equipes da Corsan e parte com apoio de empresas terceirizadas, além das atividades comerciais e de atendimento aos clientes.

Diário – Quais as principais obras em andamento?

Epstein – As principais obras em andamento são relacionadas à ampliação da Estação de Tratamento de Esgoto da Lorenzi, que permitirá que a cidade possa atingir índices superiores a 85% de tratamento do esgoto gerado em Santa Maria, além de obras de expansão do sistema de esgotamento sanitário nos bairros Camobi, Dom Antônio Reis, Tomazeti, Pinheiro Machado e no Residencial Lopes. No que tange ao abastecimento de água, a obra da nova adutora para ampliação ao abastecimento de Camobi  a partir do reservatório no Bairro Cerrito, ao longo da Avenida Osvaldo Cruz. Também temos o programa de regularização de abastecimento de água em áreas irregulares, Água Vida e Cidadania, para mais de 600 famílias.

Diário – E a médio e a longo prazo, o que está previsto?

Epstein – Estão definidas no capex de investimentos como principais, a nova adutora de água bruta com valor estimado em R$ 65 milhões, além de novos reservatórios nos bairros  Camobi e Boi Morto. Quanto à água, são obras de ampliação de esgoto para fins de atingir o marco de universalização, em especial nos bairros Campestre do Menino Deus, Dores, Km 3 e São José.

Diário – Lembrando que contrato com a prefeitura é até 2062.

Epstein – O contrato não sofre qualquer alteração, sendo todos compromissos firmados mantidos.

Diário– E sua atuação enquanto superintendente como fica a partir do leilão?

Epstein– De momento, até a transição (que em março deve estar concluída), a gestão continua da mesma maneira que a empresa adota, respondendo pelas atividades das 30 cidades da Regional Central.

Diário – Qual o seu posicionamento diante da venda companhia a partir de um leilão com única compradora?

Epstein – Trata-se de uma decisão do acionista majoritária. No caso, o Estado do Rio Grande do Sul, que optou por esta modalidade para capitalizar recursos com objetivo de buscar o atendimento aos compromissos do Novo Marco Regulatório.

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