Fé e superação são o foco da trajetória desta professora e advogada, cega de nascença e que venceu inúmeras adversidades, sempre com muita fé em Deus. Seus pais, Theobaldo e Celina, tiveram oito filhos. Dois filhos faleceram e duas meninas, Wilma e Lucy, nasceram cegas. Aos 77 anos, Lucy conta que os pais fizeram o possível para integrá-las à família, à escola e à igreja, em uma época de pouco acesso e raras oportunidades a pessoas com deficiência. Ao ir para a escola, ainda menina, Lucy tinha três objetivos: aprender a ler, a escrever e a enxergar. Ela nunca enxergou, mas aprendeu a "ver" a vida como um mundo de possibilidades, as quais soube aproveitar. Em entrevista ao Diário, ela fala da fé que a ajudou a transpor todas as barreiras. E, como ela menciona em sua biografia publicada em 2015, Lucy venceu a natureza, já que enxergar é apenas uma impossibilidade para alguém que pode ler, escutar, andar...
Diário - Sua vontade de estudar a levou longe...
Lucy Portuguez Kortz - Cursei o primário em Santo Ângelo e aprendi o Sistema Braille na Escola Pró Alfabetização do Cego no Brasil Lélia Vellini Achon, aos 17 anos, em São Paulo. Participei do processo de reabilitação para o uso da bengala longa, em 1960, no Centro de Reabilitação do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Em Santa Maria, concluí o Ensino Médio no Colégio Estadual Manoel Ribas (Maneco), e o Magistério, no Instituto de Educação Olavo Bilac. Graduei-me em Direito, em 1970, na Faculdade de Direito dos Irmãos Maristas, agregada à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e, em Pedagogia, em 1971, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Imaculada Conceição (FIC). Sou professora especializada no ensino de cegos na Perkins School for the Blind em Watertown, Massachusetts, Estados Unidos. Tornei-me, ainda, mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP. Exerci o magistério no ensino do Sistema Braille como professora municipal, pelas prefeituras de Santo Ângelo e de Santa Maria. Atuei na UFSM, onde coordenei o curso de especialização de professores para o ensino de cegos, junto ao Instituto da Fala. Trabalhei no Centro de Reabilitação de Cegos. Fui técnica em assuntos educacionais no departamento de Medicina, advogada e assistente jurídica na Comissão Permanente de Inquérito Administrativo junto à reitoria da UFSM, onde me aposentei como procuradora federal. Participei de inúmeros seminários de Direito Internacional e realizei centenas de palestras no Brasil e no Exterior. Minha força de vontade e minha fé me levaram além dos meus sonhos de menina.
Diário - Em sua biografia "Uma trajetória de fé e perseverança", conta como superou as limitações da deficiência visual. A senhora foi vítima de preconceito?
Lucy - Sim, e minha irmã, também. Lembro de quando algumas pessoas falavam: "Que pena! Morreram aquelas duas crianças normais e úteis e ficaram estas duas inúteis". Ficava contente quando me chamavam de inútil, porque, quando criança, achava que ser inútil era uma qualidade. Até que, um dia, a mãe disse para eu jogar uma xícara de asa quebrada no lixo porque era inútil. Chorei muito porque tive medo de também ser jogada fora e decidi lutar para ser útil. Mas Deus me fez entender o quanto eu e minha irmã somos importantes. Desde então, aprendi a lutar por nossos direitos.
Diário - Essa foi a sua motivação para estudar Direito?
Lucy - Sinto-me realizada pela escolha que fiz para exercer o Direito, vinculado à educação como base da pirâmide social. Luto com todas as forças para a concretização da justiça. Vivo pela fé, porque, sem fé, é impossível agradar a Deus. As vitórias que alcancei comprovam que a minha vida é um milagre. A vida, muitas vezes, nos surpreende com situações desagradáveis. Além de ter nascido cega, venho perdendo a audição, o que significa uma perda muito dura para quem não enxerga. A famosa Helen Keller que nasceu cega, surda e muda declarou: "A cegueira nos impede de enxergar a natureza, mas a falta da audição nos separa da convívio social". Mesmo com a perda da audição, não me sinto abalada. Peço a Deus que nunca me deixe perder a fé.

Diário - Qual é o foco de suas palestras?
Lucy - Ajudar as pessoas a valorizar a vida e despertá-las para o comprometimento com a comunidade. Meu objetivo é semear paz, solidariedade, justiça e o amor a Deus e ao próximo. A Bíblia ensina: "Ame o Senhor Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o entendimento". Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: "Ame o seu próximo como a si mesmo". A vida é um presente de Deus. Ele presenteou meus pais com oito filhos. Dois faleceram ainda na infância, e duas nasceram sem enxergar: minha irmã Wilma e eu. Meus pais nunca lastimaram a nossa deficiência. Ao contrário, faziam o que era possível para nos integrar à família, à igreja e à escola. Quando criança, brincava muito com minha irmã Noemi. Ela me ajudava a enxergar o mundo, corria de mãos dadas comigo e me ensinava a andar de bicicleta. Eu tinha equilíbrio e não sentia medo.
Diário - A senhora sempre foi corajosa. Quando pequena, cortava lenhas, fazia fogo, subia em árvores...
Lucy - Eu gostava muito de subir em árvores. Havia, em nossa casa, um pé de cinamomo, bem alto, onde eu subia e passava boa parte do tempo, ouvindo as pessoas lá embaixo. Quanta coisa eu podia ouvir lá de cima! Achava que estava perto do céu. Em casa, meus pais deixavam sobre a mesa um dicionário e uma Bíblia. Desde pequena, aprendi a história de Jesus, nascido em Belém, em uma estrebaria, e que o seu berço era uma manjedoura. Eu pegava a Bíblia no colo e cantava para o menino Jesus dormir, mas era eu quem adormecia.
Diário - Quais foram as bases da sua formação?
Lucy - A família e os professores da Igreja Metodista e da escola pública. Cresci no período pós segunda guerra mundial. À época, o deficiente físico era pouco considerado. Ainda não havia professores especializados, tampouco, oportunidade para que tivéssemos uma profissão. Neste contexto, a família, a igreja e a escola foram fundamentais. Ainda sofro preconceitos, visto que a inclusão, em muitos casos, ainda se encontra somente na letra fria da lei. Porém, o preconceito não me abala. Meu relacionamento com Deus é íntimo, de pai para filha. Deus me acompanha a cada passo, chorando quando eu choro e vibrando com as minhas alegrias. Muitas vezes, sonho com ele e o escuto falar comigo. Eu confio muito nele! Todas as vezes em que dobrei os meus joelhos e pedi socorro, Deus veio ao meu encontro.

Diário - O que Santa Maria e a UFSM significam em sua trajetória?
Lucy - Meu relacionamento com Santa Maria teve seu início em 1961, quando aqui cheguei para dar sequência à minha formação. A partir daqui, continuei os meus estudos em São Paulo e no Exterior. Se eu pudesse fazer algo por Santa Maria, seria contribuir para melhorar o sistema educacional. Lamentei muito quando soube dos atos de preconceitos praticados na Universidade Federal, recentemente. Conheço a nossa universidade e sei que ela é acolhedora por excelência. Sempre retorno à universidade para proferir palestras a alunos e professores e sinto-me gratificada pelo carinho e solidariedade com que sou recebida. Só tenho a agradecer a Santa Maria e à UFSM por tudo o que significam na construção da minha trajetória.