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Aumento de casos amplia debate sobre racismo estrutural

“Todo racismo é estrutural”, afirma o filósofo, advogado e atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Silvio Almeida. A frase faz parte do livro Racismo Estrutural, de 2018, e que é considerado uma referência em estudos raciais.


É a partir do conceito de racismo como “uma decorrência da própria estrutura social”, das relações políticas, econômicas ou familiares, que se busca entender como o número de casos ainda cresce nos tempos atuais.


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Em 21 de maio, o atacante do time espanhol Real Madrid, Vinicius Júnior, sofreu ataques racistas vindos do campo e das arquibancadas. Ao reclamar sobre o ocorrido com demais jogadores e árbitro, Vini Jr., recebeu um mata-leão proferido por um jogador adversário e foi expulso da partida. O fato ocorrido durante o duelo com o Valência pelo Campeonato Espanhol ganhou repercussão internacional, especialmente devido à forma como a vítima foi hostilizada pelo dirigente da La Liga e demais envolvidos.


A situação vivenciada pelo jogador de futebol foi abordada em uma nota conjunta emitida pelo governo brasileiro. A manifestação em repúdio aos ataques foi assinada pelos Ministérios das Relações Exteriores, da Igualdade racial, da Justiça e Segurança Pública, do Esporte e dos Direitos Humanos.


Em solo gaúcho, a discriminação continuou no campo. A Polícia Civil abriu inquérito para investigar um possível crime de racismo ocorrido no último sábado em Júlio de Castilhos. O fato sucedeu durante o Campeonato de Voleibol em um ginásio da cidade. A vítima, que era atleta de uma das equipes, registrou ocorrência após ser alvo de insultos racistas por parte da torcida do time adversário.

Os investigados são pai e filha, de 52 e 22 anos, respectivamente. Ninguém foi preso, mas ofensas foram gravadas por uma testemunha que estava nas proximidades, que levou os vídeos até a Brigada Militar para denunciar o crime. Ao término da partida, uma equipe da BM foi até o ginásio, onde conversou com servidores responsáveis pela organização do evento e, posteriormente, conduziram os suspeitos à Delegacia de Polícia de Júlio de Castilhos, onde foram ouvidos e liberados.

Uma situação semelhante teve um desfecho diferente em São Pedro do Sul, em 14 de maio. Uma mulher de 55 anos foi presa em flagrante por racismo durante uma partida de futebol. Ela teria chamado um dos atletas que estava em campo, um jovem de 25 anos, de “macaco”.

Após o jogador prestar depoimento na Delegacia de Polícia, a mulher foi conduzida ao Presídio Estadual de Jaguari. Entretanto, em audiência de custódia, o Poder Judiciário concedeu liberdade provisória à investigada. Um inquérito foi instaurado pela Polícia Civil para investigar o caso e a suspeita deverá responder em liberdade pelo crime de racismo, permanecendo sujeita à pena de 2 a 5 anos de prisão. Em Santa Maria, um jogador do Lajeadense foi vítima de ofensas racistas vindas do setor das arquibancadas do Estádio Presidente Vargas em 18 de maio. Além de registrar um boletim de ocorrência, o árbitro responsável pelo jogo, Allan Ricardo Freitas da Rosa Azevedo, registrou o acontecimento na súmula após a partida.

 
Os casos são tema de debates e Projetos de Lei (PL), em discussão nas Câmaras de Vereadores da região, assim como na Assembleia Legislativa. Na última terça, a deputada estadual Luciana Genro (PSOL) protocolou um PL que prevê a interrupção de partidas de futebol até que a conduta suspeita seja cessada. Caso a situação discriminatória volte a ocorrer, os atletas poderão ser retirados da quadra por dez minutos e se, mesmo assim, as ofensas persistirem, a partida deverá ser encerrada.


Embora seja um passo importante, as ofensas racistas ecoam também fora dos estádios. Estão no cotidiano, em uma ida ao supermercado que termina em agressão ou dentro de um transporte coletivo.


O preconceito invade as instituições de ensino, na qual a regra deveria ser aprender e obter conhecimento. Nos últimos seis anos, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) registrou mais de cinco casos de racismo.


Em uma sociedade na qual o racismo não é visto como uma violência ou um crime, a subnotificação cresce, mesmo que o sistema da Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância (DPCOI) registre aumento nos dados.

Nesta reportagem, entenda o contexto no qual os casos de racismo e injúria racial crescem no Rio Grande do Sul e como o letramento racial pode ser a chave para mudar a sociedade em que vivemos.



“O governo brasileiro não tolerará racismo nem aqui nem fora do Brasil! Trabalharemos para que todo atleta brasileiro negro possa exercer o seu esporte sem passar por violências”, afirma o Ministério da Igualdade Racial


Racismo na universidade

Além de ter a diversidade como um dos pilares para a preparação de futuros profissionais, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) tem sido palco de situações racistas ao longo dos anos. Entre 2017 e 2023, foram registrados mais de cinco casos envolvendo ofensas racistas proferidas ou escritas em espaços da instituição. mEntre elas, estão os termos racistas escritos na parede do Diretório Livre de Direito, em 2017, e o discurso racista publicado por uma acadêmica do Centro de Artes e Letras (CAL) nas redes sociais em meados de 2022.

Em entrevista ao Diário, o reitor da UFSM, Luciano Schuch, explanou sobre a situação da instituição, na qual estão matriculados mais de 27 mil pessoas de diversas regiões brasileiras. Em janeiro e março de 2023, ofensas racistas foram encontradas nas paredes dos banheiros do Centro de Tecnologias (CT) e na União Universitária.

– Esses casos dentro da universidade estão em investigação. Foi aberto um processo administrativo e está em andamento, mas a nossa capacidade é reduzida. Ao mesmo tempo, foi notificada a Polícia Federal, que mantém uma investigação. Sobre o caso no Diretório de Direito, a Polícia Federal naquela época conseguiu identificar e chegou até o autor daqueles casos. Houve um desfecho. Os demais estão sendo investigados ainda e aguardamos o desfecho da Polícia Federal, que tem realizado perícia na grafia escrita, o tipo de caneta e as pessoas que circulavam no local. Queremos ajudar a Polícia Federal a identificar os criminosos que fizeram isso – afirma.

Segundo Schuch, muitas vezes, os casos podem resultar na suspensão temporária do autor durante o processo de investigação:

– O que fizemos em todos os casos que notificamos e têm materialidade é suspender preventivamente a pessoa da universidade enquanto é investigada. Em um caso de racismo, suspendemos uma aluna. Então, tiramos do convívio até que haja uma investigação. Se for concluído que não era aquela pessoa, ela irá voltar.

No âmbito universitário, o Observatório dos Direitos Humanos (ODH) e a Casa Verônica têm atuado no acolhimento das vítimas. A instituição também oferece atendimento psicológico e psiquiátrico, além de assistência médica. Conforme Schuch, o acesso a esses espaços deve possibilitar também o conhecimento sobre o quão importante é fazer a denúncia à ouvidoria.

– A expectativa é de que consigamos cada vez mais coibir esses casos dentro da universidade, a partir dessa campanha de denúncia. Muitas vezes, a pessoa está passando por uma situação de assédio e não sabe, então, estamos mostrando isso. Aqui, vai deixando aquela pessoa mal e ela acaba desistindo de estudar na universidade. Então, é importante que elas saibam que podem denunciar. Que podem ir lá dizer o que está acontecendo, porque teremos profissionais para ajudá-las. Precisamos acolher essas pessoas, para que elas consigam – argumenta Schuch.


Ouvidoria da UFSM

Para denunciar uma situação ocorrida no âmbito da UFSM, entre em contato com a Ouvidoria pelos seguintes meios:

  •  Telefones convencionais (55) 3220.9655 ou 3220.8673
  • Celular (55) 9197.4471
  • E-mail [email protected]
  • Pessoalmente (com agendamento prévio) no prédio da Reitoria, 47, andar térreo, Sala 109 no campus da UFSM, no Bairro Camobi

Casos registrados em Santa Maria

Conforme a titular da Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância (DPCOI), Débora Dias, casos de racismo e injúria racial apresentaram um aumento nos registros em comparação a 2022. O cenário, que já foi de subnotificações, está mudando.


– As pessoas que sofrem discriminação e preconceito racial procuram mais seus direitos. Estão vindo até a polícia registrar e isso é importantíssimo, porque somente com a responsabilização, com a punição, que vamos caminhar para a diminuição do racismo.

Segundo Débora, o prazo para concluir o inquérito quando o investigado não estiver preso é de 30 dias. O período pode variar, caso hajam diligências a serem feitas. Neste processo, a DPCOI já concluiu investigações em duas circunstâncias: primeira, em que não foi constatado que ocorreu crime, devido à falta de elementos que sustentassem a ocorrência; e segunda, em que o crime de racismo foi confirmado em ocorrências.

Em janeiro deste ano, foi publicada uma sanção à Lei 14.532, que tipifica como crime de racismo e injúria racial, aumentando a pena de um a três anos para até cinco anos de reclusão. Para a delegada, a modificação da lei é positiva:

– Se ocorrer o flagrante, a pessoa for presa, será encaminhada até a polícia, o delegado de polícia fará a autuação e será encaminhado ao Presídio. Não há fiança em sede policial. Somente o juiz poderá arbitrar fiança. Acho que se a nossa sociedade é ainda vergonhosamente racista, a lei tem que ser severa. Deve haver punição dos criminosos. Não podemos tolerar o racismo. Deve haver uma mudança na sociedade sobre essas condutas criminosas e a lei mais severa servirá de alerta, para agir também de forma “pedagógica”. As pessoas devem saber que racismo é crime e dá prisão.

No combate ao racismo, a oficialização do caso é essencial. Entretanto, a advogada Deborá Evangelista reitera que o processo tende a ser, em alguns momentos, traumatizante para a vítima:

– Encorajar as pessoas a denunciar e enfrentar o processo judicial são desafios que enfrentamos. Na maioria dos casos, a pessoa negra pensa muitas vezes antes de fazer o registro. Sabemos que a investigação e o processo serão difíceis, então enfrentá-lo é mais uma penalização. Mas a batalha judicial poderá fazer a diferença na sociedade. Quanto mais registros e sentenças condenatórias mais próximos estaremos mudar os parâmetros da sociedade racista e discriminatória que vivemos.


  • Racismo
  • Contemplados pela Lei Nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, os crimes de racismo dizem respeito a conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos
  •  Estão relacionados ao acesso a uma série de serviços, sejam eles públicos ou privados como, por exemplo, impedir o acesso ou uso de transportes públicos
  • Injúria racial
  • O crime de injúria racial consiste em ofender a honra de uma pessoa a partir de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem
  • Refere-se principalmente a situações que envolvem a honra ou ferem a dignidade de um indivíduo específico. Assim como o racismo, crimes de injúria racial não prescrevem

Denuncie!

  • Crimes de racismo e injúria racial podem ser denunciados na Delegacia de Pronto-Atendimento, na Avenida Nossa Sra. Medianeira, 91, junto ao CIOSP
  • Delegacia do Idoso e de Combate à Intolerância é a responsável por atender as ocorrências de crimes do tipo
  • Ocorrências também podem ser feitas, virtualmente, em delegaciaonline.rs.gov.br


Poder Judiciário no combate ao racismo

À convite do Diretório Livre do Direito da UFSM, a desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira participou da aula magna “Os desafios do Poder Judiciário gaúcho”, que ocorreu em 31 de maio no auditório do Centro de Ciências Sociais e Humanas (CCSH). Em entrevista ao Diário, ela se posicionou sobre os recentes casos de racismo e injúria racial registrados no Estado, destacando as medidas tomadas pelo Poder Judiciário:


– Nós temos um grupo especial de trabalho dentro do Tribunal de Justiça, que trata das questões de discriminação, seja de cor, credo ou qualquer outro tipo. É um grupo extremamente ativo e nós temos colhido excelentes resultados. Eu digo que a forma de minimizar e, até mesmo um dia, eliminar qualquer prática racista, é buscar esclarecimento para as crianças, nossos alunos e aqueles que temos o dever de formar. Mais do que isso, não só no núcleo familiar, mas quando estamos em postos importantes como esse.
Em 1º de fevereiro de 2022, ela se tornou a primeira mulher e pessoa negra a ser nomeada presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). A conquista traz esperança em um cenário complexo.


– Eu fui muito saudada por ser a primeira mulher a alcançar a presidência do Tribunal gaúcho em mais de 148 anos e por ser uma mulher negra. Preciso aproveitar esse momento em que sirvo de exemplo para dizer que somos todos seres humanos e que a Constituição estabelece essa igualdade. Então, o Judiciário deve, não só nos processos que vêm para a sua apreciação, mas de uma forma muito atuante, aproximar-se da sociedade, buscando esclarecer a todos e, assim, minimizar. Com o tempo, elidir práticas como essa. O racismo e outras formas de discriminação são inaceitáveis – conclui Iris Helena.

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