O título hoje vem entre aspas porque é uma citação. A frase é do professor Saigon Quevedo, em entrevista ao programa Companhia CDN desse domingo, 6 de outubro, quando falou comigo sobre seu livro recém-lançado, Conta-me tudo. Sim, eu sei, esta coluna chama-se “Jogo de Cintura” e, em princípio, você gostaria de ver aqui temas relacionados ao programa homônimo ou talvez saber como a vida de quem escreve aqui encaixa-se no programa. Mas o texto de hoje é sobre encaixe, desencaixe, reencaixe e não-encaixe. Sobre o necessário e eterno “jogo de cintura” que precisamos ter na vida, para entender o que ela nos traz, para nos descobrirmos, redescobrimos e afinal seguir. E a escrita pode ser parte de tudo isto.
Mas o curioso é que a entrada da escrita em modo terapêutico pode se dar de maneira intuitiva em nossa vida. Já fiz muita terapia com profissionais de psicologia, “me dei alta”, voltei ao divã, caí fora de novo, e cá estou (confesso que tento imaginar a reação de minha psicanalista lendo isto). Eis que descobri, em plena entrevista com o professor Saigon, que afinal também sou adepta da “escritoterapia”. O fato é que escrever tem ajudado a organizar sentimentos e pensamentos relacionados a eles de um jeito novo e com um efeito diferente dos anos de consulta psicanalítica. A impressão é a de que a psicanálise ajudou a chutar a porta da frente e a escrita permite-me andar pelos corredores desta casa imensa, cheia de peças, chamada Carla.
Nesta casa, alguns corredores estão plenamente iluminados e neles até corre um ventinho (norte). Outros estão ainda – ou novamente – na penumbra. São aquela parte da casa que não uso muito ou não no momento. Quanto às peças, algumas estão com janelas abertas e proporcionam dias memoráveis em plena luz natural, outras estão fechadas e precisam até de uma reforma ou, pelo menos, de uma troca de lâmpadas. Há ainda partes desta casa que eu só estou descobrindo ou lembrando que existem de uns tempos para cá. Esta coluna semanal tem sido uma parte importante deste processo. Já falei aqui de questões ambientais, políticas, comportamentais, mas afinal faço parte de tudo isto, que se apresenta obviamente pela minha perspectiva. Também já falei de coisas e pessoas bem íntimas, como a opção de, até o momento, não ter filhos, e da relação com minha avó. E foi em plena escrita coluna sobre isto que senti completar-se um ciclo necessário quanto a ela, minha grande mãe, de quem não pude despedir-me como queria e precisava à época.
A escrita e a fala do professor Saigon conseguem desenhar as cenas; é possível transitar nas suas histórias, projetar-se a partir delas também, então pensei tudo isto enquanto conversávamos. Quando o professor falava sobre a estrutura de Conta-me tudo, uma obra que tem três partes – “Gente que parte”, “Gente que fica” e “Gente como eu” – entendi por que havia chorado na leitura da terceira. “Sou gente como tu, professor!”, disse a ele. Mas creio que esta identificação se dê com muitos leitores das, até agora, duas e esgotadas edições, afinal, todos tempos nossos motivos de contemplação, nossas ladeiras, cartas não enviadas, juramentos, dramas, explosões, noites estranhas e lindas histórias em meio ao cheiro das cebolas e do sabonete preferido.
Sou gente como o professor porque a escrita acadêmica é necessária, instrumento de evolução e emancipação tanto do pesquisador, quanto de quem o lê, mas também porque – embora seja presente na maior parte de minha vida até aqui, assim como foi e é na vida do professor Saigon – ela nunca nos bastou. Mortais e aspirantes a almas leves ao final de tudo isto, é preciso elaborar e ressignificar nossas vivências em algum momento, pois elas nos chegam todos os dias. E ainda que se acumulem por anos, como foi o caso das que o autor nos apresenta em Conta-me tudo, hora ou outra esses afluentes de palavras precisam virar mar em obra completa, seja pela escrita de um caderno escondido da leitura alheia, seja por meio de boas e periódicas conversas que podem até virar podcast, seja por um blog, canal no YouTube ou perfil em rede social, seja por meio de um ou mais livros.
E se é verdade que nossas memórias mais antigas são as que conseguimos nomear, e que portanto existem desde que começamos a falar, tento imaginar o que signifique para nossa mente o processo de escrita, em que a racionalidade do letramento tem que abraçar a subjetividade que cada palavra carrega. Não me surpreende que, a cada texto, bem ou mal escrito, o exercício de colocar pensamentos e emoções em palavras nos faça mais leves em relação ao que passou e abra espaço para aquilo que nem imaginamos, mas que não poderemos evitar.