Para Ronaldo*, 62 anos, o manejo com a terra sempre foi um passatempo. E dos bons. Hábito que ele não pensava viver tão cedo até a implementação de uma horta na Penitenciária Estadual de Santa Maria (Pesm). A iniciativa, uma parceria com a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), levou o cultivo de hortaliças e temperos até o espaço, mantido por presos trabalhadores. Tudo que é produzido na horta, tem como destino escolas e cozinhas comunitárias. Antes disso, por trás de cada muda, há uma oportunidade de ressocialização e remissão da pena aos detentos.
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– É bom, é uma terapia lidar com a natureza. Eu sempre fiz isso em casa. Pelo menos uns minutos de tarde, eu parava para mexer um pouco com a terra e ajeitar os canteiros, plantar uma rúcula… era muito bom. Passava o estresse, tudo. Agora possa ter uma continuidade aqui. Sempre me fez muito bem e agora continua fazendo – afirmou o preso.
Ronaldo e outros três apenados trabalham na horta, implantada há dois anos na Pesm. É em uma área de 1.690 m², distribuídos em 11 canteiros no perímetro interno da penitenciária, que tudo acontece. É fácil se perder diante da diversidade de hortaliças. Desde julho de 2022, o cultivo de repolho, tempero verde, alface, peixinho, couve e pimenta tem sido o trabalho, de segunda a sexta, de detentos direcionados ao projeto.
A coordenadora técnica regional da Pesm, Adriana Rosa, conta que a horta é importante para o sistema prisional porque oferece capacitação profissional a partir do trabalho interno. Também é uma oportunidade de diminuir o tempo em reclusão, já que a cada três trabalhados, o preso diminui um dia de pena.
– Aqui eles aprendem a cultivar a terra, a plantar, conhecer uma alimentação saudável e depois levar para fora. Quando regressarem às suas casas poderão ter uma oportunidade de conhecimento e de aproveitamento também, dos alimentos e dos resíduos para o plantio de hortaliças. Também é um período de tempo de qualidade e também terapêutico, com o contato com a terra e vendo o trabalho dele dando frutos – diz Adriana.
Quando tudo era “mato”
Por trás de repolhos, alfaces e temperos verdinhos, um trabalho que perdura há dois anos. Antes do início da horta, o espaço de 1.690 metros quadrados sequer tinha condições de germinar sementes ou abrigar mudas de hortaliças. Por isso, o início do trabalho foi retirar uma amostra do solo para análise. A partir disso, foi realizada a adubação necessária para receber as mudas e implantar, semanas mais tarde, o sistema de irrigação. Desafio que foi tirado de letra pelo servidor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e coordenador do projeto, Juarez Felisberto:
– Se tem trabalhadores, tem solo e tem água, a coisa vai.
Com o solo pronto, o próximo passo foi mergulhar na diversidade de mudas e sementes. Repolho, alface, tempero verde, couve e pimenta são só algumas das hortaliças que dão o verde característico de horta saudável ao local. Chás e outros temperos como alecrim, manjerona, manjericão e até algumas espécies medicinais também colorem o espaço, localizado aos fundos da Pesm.
De lá para cá, a rotina dos detentos que participam do projeto inclui o cuidado com o solo, o plantio e a colheita das espécies cultivadas na horta. No início do expediente, eles recebem a orientação do que fazer no dia. Se a tarefa for o plantio, parte do tempo é dedicada a preparar a tarefa e colocar, uma a uma, as mudas no canteiro.
– Eu sempre gostei dessa vida lá fora. E tem sempre pessoas aqui trazendo conhecimento. E aqui estamos trabalhando, pensando na lida e desliga um pouco – conta Humberto*, que também trabalha na horta.
Os detentos contam que também é comum receberem a demanda da colheita de hortaliças que serão direcionadas a instituições beneficiadas. Segundo eles, é o momento de liberar espaço para a adubação e plantio de novas mudas, recebidas diariamente da UFSM e locais parceiros do projeto.
– Todos os dias eles limpam, colhem o que está pronto e cuidam do solo, para estar pronto na hora de receber as mudas. Eles melhoraram muito. Quando começaram, muitos não sabiam nada e agora já conseguem identificar as mudas e sabem do processo de plantio – comenta Silvio Bighelini, agente penitenciário que acompanha os detentos durante o expediente.
Do plantio a técnica da compostagem
Na horta, todos os processos são seguidos à risca, do plantio à compostagem. Além da rotina de cuidado com as mudas, os apenados também são responsáveis pela manutenção do sistema de compostagem. Assim, os resíduos da cozinha da Pesm são destinados ao fundo da horta e por meio da técnica, logo viram adubo.
– Agora que está bom (risos). Quando começamos, essa horta era péssima, não tinha uma minhoca sequer. Hoje, olha todos esses canteiros cheios de verdura… É bom o trabalho e aprender porque depois daqui, não é todo lugar que aceita o cara – afirma Junior* que se intitula o primeiro da horta.
O suporte técnico é dado por alunos da UFSM da área de agronomia e pelo Juarez durante visitas à horta da Pesm. São instruções em forma de conversas e ideias com os apenados que, diariamente, estão em contato com a terra. A troca, entre acadêmicos e trabalhadores, gera não somente boas hortaliças no futuro, mas também oportuniza formações de excelência.
– Além da técnica, tem muito a questão da empatia e do trato com as pessoas. Levamos ações de extensão para conseguir qualificar a inserção social, o tratamento penal. E isso acaba sendo bom não só para esse público que está na ponta, quem cumpre a pena, mas também para os nossos próprios alunos. Amplia o campo de trabalho que eles vão ter e uma formação de excelência, justamente por estar em contato com essas pessoas e saber trabalhar com público em situação de vulnerabilidade – afirma Victor de Carli Lopes, representante do Observatório de Direitos Humanos (ODH) da UFSM.
“Assim não ficamos fechados na cela o dia inteiro”
Frederico* faz de tudo um pouco mas gosta mesmo é dos chás. Há quase dois anos trabalhando na horta, ele conta que não se imagina mais sem a função. É onde ele se sente bem. Foi no local que ele aprendeu tudo que sabia, já que antes de Pesm, a única referência que tinha de manejo com o solo, era aquele assistida pela televisão:
– Tem que vir aqui no verão, fica mais bonito ainda. Aqui é muito bom e tranquilo, e isso é o principal pra gente. Porque assim não ficamos na cela, fechados, o dia inteiro. Tem as saídas para o pátio, mas não é a mesma coisa. Tem o pátio, que tem sol, mas tu não sai de lá.
Para Adriana, é nítido a colaboração da horta para a permanência dos presos. Na Pesm, todos têm acompanhamento psicológico, mas nada se compara com o manejo na terra, o sol e o ar fresco:
– O trabalho manual é sempre muito terapêutico. Quando bem aproveitado e bem utilizado, tem esse potencial de conectar pessoas com a natureza. Eles criam outros círculos de convivência, com outros trabalhadores, com objetivo em comum e também com os servidores que os acompanham. Assim, se estabelecem relações positivas. A família também fica satisfeita e fortalecida sabendo que está recolhido mas tendo uma oportunidade.
*Para preservar o nome dos apenados, foram utilizados nomes fictícios na reportagem
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