reportagem especial

Depois de 12 anos, moradores relembram histórias da Cyrilla

Natália Müller Poll e Pâmela Rubin Matge

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Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

É como se a nostalgia fosse algo palpável, tivesse cor e gosto para muitos santa-marienses e moradores da região que lembram do refrigerante que há 12 anos deixou saudade após ter sua fabricação interrompida. 

A Cyrilla, empresa levantada no Coração do Rio Grande em 1910, marcou gerações pela produção de licores, guaranás, gasosas e, principalmente, pela famosa Cyrillinha, feita com a casca da laranja. Se no país a marca ganhou destaque por ser pioneira no ramo, na vida de muita gente a Cyrilla foi eternizada ao estampar fotos de aniversários, formaturas e casamentos.  

A boa notícia é que em abril, ainda sem data específica, o produto retorna ao mercado. Enquanto isso, o saudoso prédio verde situado na Rua Marechal Deodoro, no Bairro Perpétuo Socorro, já conta com a movimentação de funcionários, testagens do produto e felicidade de quem passa por ali e percebe os ares renovados de um antigo sabor. Aos céticos que questionam se a fórmula original da Cyrilinha será mantida, os sócios e os químicos da empresa garantem que sim.

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Nas últimas semanas, o Diário teve acesso à fábrica, a documentos históricos e conheceu, com exclusividade, a embalagem retrô da Cyrillinha e o processo de envasamento. Além disso, foram ouvidos novos e antigos funcionários, acompanhou-se os preparativos para a volta do produto junto de relatos de quem nunca esqueceu da bebida que protagoniza grandes histórias, como algumas mostradas nesta reportagem.


PATRIMÔNIO 

Com a tese de doutorado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Fronteiras entre o regional e o transnacional na política de desenvolvimento econômico do Brasil e o caso da Fábrica Cyrilla, a professora de História Bruna Lima é responsável por resgatar e registrar momentos emblemáticos da trajetória da empresa. Inaugurada no início do século 20, os produtos foram premiados nacional e internacionalmente. Também foi nas garrafas da Cyrilla que se registrou o primeiro guaraná industrializado do Brasil. 

- A Cyrilla pode ser considerada um patrimônio histórico de Santa Maria e nos permite compreender episódios que aconteceram na cidade e a forma como eles estão relacionados com o que estava acontecendo no restante do mundo em determinados momentos. Exemplo disso foi a destruição de estabelecimentos industriais, comerciais e até mesmo residências de imigrantes ou descendentes de países do Eixo (sobretudo Alemanha e Itália) durante a Segunda Guerra Mundial. No caso específico da Cyrilla, boa parte da fábrica foi destruída em 1942, quando se perdeu muita documentação e se teve dano ao patrimônio. Foi preciso recorrer à Justiça para requerer indenização - conta a professora.

Veja, nas próximas páginas, outros fatos históricos, memórias compartilhadas nas redes sociais e as expectativas para que a bebida do passado volte a ser presente nas prateleiras, nas mesas e na rotina de seus consumidores.

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Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

Orgulho que se renova em 2020: "Não corremos o risco de fugir ao sabor original", diz químico

Luciana Guerra, química industrial responsável pelos novos produtos Cyrilla, diz que uma das principais peculiaridades das bebidas da marca, sobretudo, do guaraná, da Cyrillinha e da água tônica são os aromas produzidos na própria fábrica.

- Isso confere um sabor genuíno que é seu diferencial desde sua fundação em 1910. Na Cyrillinha, os aromas são destilados a partir do óleo da casca da laranja utilizando a fórmula original. Da mesma forma, na água tônica, os aromas são obtidos através da casca de frutas cítricas e adicionado o sulfato de quinino. Os refrigerantes guaraná, gasosa limão e laranja também seguem as receitas originais - assegura a química.

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A propriedade que Luciana tem ao garantir o controle de qualidade das bebidas conta com orientações de Jorge Fantinel. O químico era o único que ainda possuía a fórmula depois de décadas. Ele recorda que nos anos 90, todos os óleos essenciais e aromas eram feitos na fábrica. Hoje, porém, o óleo já vem pronto, geralmente de São Paulo, mas a fórmula não muda em nada, portanto, o gosto segue inalterado.

Para a retomada de fabricação, os profissionais estão aperfeiçoando também fórmulas de xaroparia que integra os refrigerantes:

- Comprar o óleo da casca da laranja já pronto fica mais prático para produzir em maior escala. O que muda é a tecnologia. O que temos hoje faz com que a bebida seja uniforme, sem oscilação de sabor, como eventualmente acontecia no passado, pois não existia um sistema de medidas tão apurado. Isso significa que não corremos o risco de fugir ao sabor original - afirma Fantinel. 

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Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

Sonho realizado

De portas fechadas desde 2008, foi em 2010 que a retomada da fábrica foi viabilizada em leilão pelos empresários Luiz Marquezan Bagolin, Lairton Padoin e Tonho Saccol. Primeiro foi a posse do prédio, depois a marca.

- Tanto para mim quanto para os meus sócios, estar à frente da Cyrilla é a realização de um sonho. Acredito que será a oportunidade de valorizar a produção local, incentivar esse consumo local, gerar empregos, girar a economia. Isso é gratificante e vamos lutar por isso. A Cyrilla é um produto único. A Cyrillinha é a garota propaganda, mas o carro-chefe mesmo é o guaraná. Acredito que o saudosismo seja uma ótima publicidade. Estamos ansiosos pelo começo das vendas. Tivemos alguns atrasos e demoras para a reabertura em função de burocracias que levam tempo, mesmo. Afinal de contas, abrir uma fábrica não é algo simples e rápido. Mas agora estamos quase prontos, só alinhando os últimos testes - adianta Marquezan.

Atual supervisor de vendas da nova Cyrilla, Alberto Rigão Venturini acumula experiência no dia a dia da fábrica. Foram 13 anos dedicados à antiga gestão e mais dois de trabalho na administração atual.

- Nos anos 1990, eu trabalhava externamente, atendendo Santa Maria e diversos municípios do Estado. O produto foi sempre bem aceito, tanto pela qualidade de produção da bebida, quanto pelo sabor, que agradava ao paladar de todos - conta Rigão.

Segundo o supervisor, a aceitação se dava desde os tempos em que a fábrica produzia apenas o guaraná de garrafa.

- Antigamente, as pessoas chegavam a levar caixas no trem quando partiam para o Rio de Janeiro, porque lá não tinha a marca Cyrilla para comprar. Então, eles encomendavam para garantir a bebida predileta no tempo em que ficariam fora (da cidade). O mercado mudou muito, mas as pessoas continuam pedindo, em função da nostalgia. Acredito que com toda a concorrência que temos, este vai ser um ponto a nosso favor - analisa.

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Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)

EMPREGOS 

Somente no setor de vendas, a empresa começará com oito funcionários. No total, são cerca de 30 colaboradores, sendo que os únicos serviços terceirizados serão os de portaria e de distribuição das bebidas.  

- Agora, em 2020, também começaremos a produção de Cyrilla à base de suco, guaraná, tônica e gasosa limão, que serão produzidas nas versões normal e sem açúcar, em garrafas de 250 ml, 500 ml e 2 litros. A famosa Cyrillinha Laranja, que é feita à base da casca de laranja, será comercializada apenas em garrafa descartável de vidro e tampa de ferro na cor verde - revela.

A fábrica que foi o melhor pano de fundo para infância

Nos anos 1970, quando chegavam caminhões de laranja para serem descarregados na fábrica da Cyrila, na Rua Marechal Deodoro, no Bairro Perpétuo Socorro, lá estava Janio Seeger, hoje com 57 anos, e um grupo de amigos. É que o menino morava em frente ao local e seu pai era dono de um bar também na mesma via.

- Toda a gurizada do bairro ia buscar sacos e sacos de laranja para comer. As crianças da Marechal (rua) praticamente viveram dentro da Cyrilla. A coisa era meio caseira e até nos deixavam entrar na fábrica. Éramos amigos do pessoal e a gente ficava torcendo que tivesse algum "problema" na hora de engarrafar para poderem descartar, porque aí eles nos davam o refrigerante. Quando a Cyrilla fechava, ali por 18h ou 19h, íamos para os degraus ali da frente. Era nosso ponto de encontro. Fechando os olhos, a maior lembrança era a de me escorar na porta e ver aquelas garrafinhas amarelinhas na correia, fazendo barulhinho: blim, blim, blim, blim... Era Cyrillinha sem fim que andava na esteira. Aquela imagem me enchia os olhos na infância.

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Janio, que trabalha como fotógrafo, há décadas ainda acumula outras memórias da Cyrilla ligadas a sua vida profissional:
- Em 1978, fiz um curso de foto em preto e branco e tive um laboratório em casa em que eu mesmo revelava as imagens. A Cyrilla sempre foi meu cenário predileto. Infelizmente, as fotos não foram encontradas, mas de algum modo esteve na minha vida. Quando era preciso tirar uma foto de família, também íamos ali na frente. A volta da fábrica me deixa muito feliz - relata.

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Foto: Renan Mattos (Diário)

Rosélio foi barman exclusivo da Cyrilla

Em todas as fases da vida de Rosélio Raddatz - hoje com 58 anos, chef de cozinha e dono do Restaurante Arroz e Feijão -, a Cyrilla se fez presente. Na infância, ele já furava as tampinhas metálicas das garrafas de vidro para tomar os refrigerantes. Décadas mais tarde, em 1991, ele acabou sendo convidado para ser barman na empresa.

  - Eu visitava restaurantes e bares e oferecia coquetéis. Deu muito certo. Fizemos isso por dois anos. Também tive a ideia de dar um encarte com receitas dos produtos de como fazer um drinques e caipiras. Foram épocas de glória. A Cyrilla foi uma empresa que me desenvolveu muito, e fico muito feliz que está retornando com a mesma qualidade. As bebidas representam que têm mais gás do que as outras. É um produto leve, que não é enjoativo e é muito agradável - analisa.

Enquanto a marca esteve no mercado, antes de encerrar as atividades, em 2008, Rosélio oferecia os produtos em seu estabelecimento. Hoje, guarda as antigas garrafas como relíquia e as utiliza na decoração do restaurante. Anos atrás, além de os refrigerantes acompanharem as refeições dos seus clientes, os licores Cyrilla sempre foram uma sugestão de souvenir.

 - Tenho o restaurante em frente a um hotel e recebo pessoas de outras cidades. Já recebi políticos de Brasília e muitos militares. O pessoal perguntava onde era a fábrica e, de lá, levava Ouro Potável (bebida), licores para dar de presente. Com o fechamento (da fábrica), se perdeu muito. Ainda hoje, chegam aqui e perguntam sobre a Cyrilla. Então, penso que todos temos a ganhar com essa retomada. É pode provar o que temos e levar Santa Maria para outros lugares - afirma.

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