Reportagem especial

A rotina de pessoas em situação de rua em Santa Maria

Pâmela Rubin Matge

"Sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. A rua resume para o animal civilizado todo o confronto humano (...) A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo."

O texto é de João do Rio, jornalista carioca, que produziu sua obra a partir da observação direta da vida e dos espaços sociais das cidades. O livro que traz o trecho acima é A Alma Encantadora das Ruas, escrito no início do século passado, e retrata uma realidade que se mantém atual: a rua como único lugar quando não se tem mais para onde ir. O que não há de encantador, porém, é que essa mesma rua, quando abriga preconceito, violência, fome, frio - é a causa ou a consequência do abandono e dos mais variados vícios.

No coração da cidade, debaixo do Viaduto Evandro Behr, na porta do Clube Caixeiral e esparramados com seus cobertores nos bancos da Praça Saldanha Marinho, pessoas em situação de rua se misturam à cena urbana. De tão costumeiro ou "opcional", como muitos ousam julgar, a presença parece se tornar invisível a ponto de o próprio município carecer de políticas públicas e alegar não ter dados ou estatísticas de quem é o desafortunado público que perambula em suas ruas.

Na última semana, a reportagem do Diário conversou com Arcanjo, Matheus, Edson, Sidnei, Irene, Luciano e José. Em comum, todos têm a vivência nas ruas. Conheça cada um deles.



ARCANJO E MATHEUS, OS PARENTES BALDIOS

Um homem, cujo nome remete ao príncipe dos anjos, que luta contra o diabo e defende o povo de Deus. Um jovem que se tornou seu filho por circunstância. E um cachorro vira-latas. O trio sustenta o que ainda lhe resta como imaginário de família.

Maltrapilhos, adormecidos nos bancos da praça à luz do dia ou em plena noite, eles se recusam a trocar a rua por uma casa de quatro paredes e são personagens conhecidos no centro de Santa Maria. São Miguel Arcanjo Ferreira da Silva, 49 anos,"o índio", Matheus dos Santos, 27 anos, o "Teteu", e Kynay, o cão de idade desconhecida e humor oscilante.

Ambulantes ou meros desocupados que ficam nas proximidades da Praça Saldanha Marinho confirmam os relatos embriagados de Arcanjo. Ainda criança, após a morte dos pais, veio de uma aldeia caingangue da região de Passo Fundo. Foi trazido a Santa Maria pela madrinha. Na juventude, prestou serviço militar no 29º Batalhão de Infantaria Blindado (29ºBIB). Teve pelo menos dois casamentos e alguns filhos pelos quais abriu mão do salário e de duas casas.

- Filho é filho. Não tem culpa do que a gente faz. Fui no banco e assinei para dar meu dinheiro para eles. Eu que quis. Eu bebo, não me acerto para morar com ninguém. Gosto de ficar aqui e não quero nem ouvir falar em albergue. Não incomodo ninguém, e ninguém mexe comigo - diz Arcanjo.


Vencido pelo alcoolismo, há mais de uma década ele vive na rua. Há seis anos, Matheus, enteado de um de seus relacionamentos passou a lhe fazer companhia.

- Se eu tivesse dinheiro levava todos esses "amigos da vida" para um centro, tipo um lugar livre. Se fosse para uma casa, acho que não iam gostar. E te digo: pior que a rua, só a cadeia. Esse índio aqui ia ser o primeiro que eu ajudaria. Esse é o meu pai. Foi ele que me ensinou tudo sobre a rua - conta ao jovem enquanto acaricia os cabelos de Arcanjo.

Sempre na volta, o cão Kynay também é constantemente paparicado. Como um fiel descendente de indígena, Arcanjo relembra que, na sua cultura ancestral, não há diferenças entre homens e animais - todos são filhos da natureza.

- O Matheus e o Kynay são meus filhos, quero ver quem diz que não são.

No dicionário caingangue, não há tradução para Kynay, que, desta forma, passa a ser um nome próprio. Mas, para Arcanjo, não há quem o convença do contrário. Para ele Kynay significa anjo do mundo.

UM ÚNICO ABRIGO NO MUNICÍPIO

"O fato de não conhecermos a população de rua, na sua caracterização, faz com que, dificilmente, conseguiremos entender seus percalços e sua individualidade. A Casa de Passagem é um suporte social importante e necessário. Mas, não podemos garantir somente ações passageiras, que não modificam a condição de vida dos sujeitos. Precisamos é de uma política."A avaliação é de Jairo da Luz Oliveira, professor de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) ao analisar o fato de o município não disponibilizar dados e de ser a Casa de Passagem o único e temporário reduto para quem não tem onde morar.

A secretária de Desenvolvimento Social, Lorena Santos, argumenta que a prefeitura tem trabalhado para melhorar o atendimento desse público, mas não menciona ações pontuais.

- Temos muito carinho por essas pessoas, mas fizemos o que é possível. Hoje, a Casa de Passagem tem atendido muito bem aos que chegam lá. E contamos com entidades voluntárias da cidade, que têm feito um trabalho excelente.

A Casa de Passagem substitui o antigo albergue municipal. Atualmente, abriga pessoas em situação de vulnerabilidade social. O serviço é terceirizado pela prefeitura e o contrato vence no dia 7 de setembro. Ainda não há informações se será renovado ou substituído. Conforme a Superintendência de Comunicação, o município repassa, por mês, R$ 66.098,34 à instituição. O valor paga os profissionais da Casa e a compra de alimentos e de materiais de higiene. A capacidade é de 50 internos. Até a última sexta-feira, a lotação era de 38. Embora, às vezes, sobrem vagas, há pessoas resistentes à instituição. Os motivos são diversos: a discordância de horários de entrada - das 18h às 20h -, o tratamento agressivo da Guarda Municipal junto aos acolhidos e até o furto de acessórios pessoais, conforme relataram algumas pessoas que não quiseram se identificar. Na última quinta e sexta-feira, a reportagem tentou contato telefônico com a Casa de Passagem e com o celular da coordenadora. Foram deixados recados, mas, até o fechamento desta edição, mas não houve retorno. 

EDSON E SEU BORDÃO: " A CAMINHADA É SEMPRE PARA FRENTE"

Esse é o lema do Caminhada. Repare que não há erro no artigo definido empregado. É só o apelido de Edson Luiz Sandoval Rodrigues, 59 anos. Entre uma conversa e outra, independentemente do assunto, ele solta o bordão. Os que o conhecem não o cumprimentam de forma convencional, com "oi, bom dia ou boa tarde", mas com ojogo de pergunta e resposta: "E aí, seu Caminhada, como é que vai? E ele responde: sempre para frente."

Contrário dos que defendem que dinheiro é o mais importante na vida, exemplifica com bom humor: "Michael Jackson tinha toda aquela riqueza, mas inventou de andar para trás e morreu infeliz. O dinheiro não é tudo".

Na rua há três anos, ele se mostra convicto de sua escolha, a ponto de considerar a via pública mais confortável que a própria casa. Afirma que o "álcool venceu o homem". Mantém contato com os familiares, mas vive sem renda e sem pedir nada a ninguém. Apenas 15 passos separam a residência de uma de suas filhas a um barraco que ele ergueu à beira da rua, o qual divide com os cachorros Topetudo e Cigana.

- Nunca perdi minha dignidade. Só tenho a liberdade de fazer o que eu quero. O alcoolismo torna a pessoa difícil de conviver. O álcool me dominou. Se eu levantar de manhã e não tomar nada, me sinto frágil, derrotado. Se tu me oferecer um prato de comida, troco pela cachaça. Faz três anos que eu optei por não incomodar a família. Ninguém me tocou de casa, e, se eu falar isso, será uma calúnia. No começo minhas filhas tinham vergonha de mim. Separei da minha esposa. Hoje, meus netos e filhos estão todos criados e eu não espero mais nada. Só a hora aquela (morte). 

Eu sei, sou um mendigo, mas um mendigo com dignidade, que todos só querem bem. Vou te confessar, dona, eu não tenho nada, mas sou feliz.

ESCOLHAS INCONSCIENTES

Nem todas as escolhas humanas são conscientes e planejadas. Muitas delas são consequências de uma dinâmica psíquica, por meio da qual é o inconsciente que escolhe, conforme explica Cibele Witt psicóloga formada na UFSM:

- Um morador de rua nunca sonhou viver na rua. A "opção" vem pela forma como se constituíram, subjetivamente, as relações que ele viveu, geralmente, conflituosas. A rua tem um significado especial para essas pessoas. É o local onde podem viver sem a pressão das regras do grupo familiar. É um local de liberdade. No caso de haver vício, esse está a serviço justamente desse "algo subjetivo", que não sabemos nomear, mas que sugere uma falta, uma carência, sempre em nível psíquico, e que cada morador de rua vai significar da sua forma.

Cibele também menciona que é a amizade que costuma minimizar a solidão das pessoas em situação de rua:

- Aceitar essa realidade é o primeiro passo. Depois, precisamos compreender que o morador de rua, antes de banho e alimento, precisa ser visto por nós, ou seja, precisa ser reconhecido. As políticas públicas para moradores de rua precisam ser executadas por profissionais que tenham esse entendimento. A psicóloga relata também que a amizade é outro grande sentimento. Outto ponto é como os laços familiares podem estar rompidos, eles buscam uns aos outros ou se fortalecem com pessoas da comunidade, que acabam se vinculando a eles e ajudando, geralmente com alimentos e roupas, mas que trazem junto, uma palavra de apoio que se transforma naquilo que realmente eles precisam: esperança.

  • MORADOR DE RUA OU PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA?
    segundo Jairo da Luz Oliveira, professor de Serviço Social (UFSM) população em situação de rua diz respeito a uma condição de vida provisória. Isso porque, teoricamente, ninguém nasce para morar na rua e, embora muitas crianças nasçam em condições de extrema pobreza, essa realidade não deve condicionar a moradia em meio à pobreza, precariedade ou ao abandono social.

LUCIANO BUSCA PERDÃO

Fora de casa e sem emprego, Luciano Ortiz, 42 anos, diz que nunca desaprendeu a trabalhar, mas aprendeu que, para viver na rua, é preciso lidar com o medo. Medo da criminalidade, da maldade e até da polícia. O maior dos medos, contudo, é o medo da solidão.

No Bairro Itararé, em Santa Maria, ele se acomodou próximo a um posto de gasolina. Na região onde fica o estabelecimento, uma rede de amigos acabou se consolidando. Mas Ortiz é orgulhoso ao dizer que nunca precisou roubar e nem pedir nada a ninguém. Nem um bala e nem um cigarro. Conta que nem sempre arruma serviço, mas se vira como pode: corta grama, pinta parede, ergue tijolos. Trabalha para se reerguer.

Quando bateu a porta de casa para nunca mais voltar, mal sabia que, anos depois, o maior desejo da sua vida seria a possibilidade de retornar:

- Até tentei morar com parentes e com uma irmã, mas eu parti para a rua. A bebida me estragou. Me desesperei, fiquei transtornado, não parei mais. Fui casado 17 anos, tenho quatro meninas e um menino. Perdi tudo: a casa, família e os documentos. Agora, quero me levantar e não viver nessa vida. É uma vergonha para mim. Tenho medo de apanhar sem motivo da polícia, como já fizeram, só porque eu estava alcoolizado. Ou que alguém me bote fogo. Tem um pessoal ajudando a ajeitar meus papéis para levar na assistência social. Quero ter meu canto, comer bem, quero ter possibilidade de ter minha chave para abrir a porta, voltar para minha família e pedir perdão. 

PRIVAÇÃO DE DIREITOS

Voluntários e entidades que promovem ações a pessoas em situação de rua relatam que, atualmente, há três problemas que poderiam solucionados se o município adotasse simples medidas.

O primeiro diz respeito a distribuição de roupas e calçados:

- Com esse frio, o pessoal da rua está sofrendo muito. A Campanha do Agasalho do município não chega a eles, pois é preciso que se cadastrem e tenham endereço - critica a voluntária Lise Brasil.

A abertura 24 horas de um banheiro público também é um pedido constante, já que somente permanecem abertos de segunda a sábado, das 8h às 22h, e aos domingos, das 14h às 20h.

Mas, para o voluntário e presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar (Comsea-SM), Juarez Felisberto nada é mais lamentável que o Restaurante Popular estar de portas fechadas. Sem abrir há dois anos e um mês, deixou de servir cerca de 400 refeições por dia. Segundo Juarez, isso denuncia uma irresponsabilidade:

- Além da alimentação para um grupo de pessoas vulneráveis em todos os aspectos, as refeições balanceadas em níveis de sal e gordura são importantes na prevenção de doenças cardiovasculares. Isso se reflete no custo com a saúde pública. Aliás, objeto primordial na campanha de Jorge Pozzobom. Leia-se: no aspecto curativo. Além de uma questão humanitária, é uma questão de saúde, pois algumas doenças se manifestam ou se agravam em condições de déficit alimentar e nutricional, como é o caso da tuberculose e da aids.

JOSÉ ENTRO O SONHO E A REALIDADE

Diferente da maioria dos que esperavam por um sopão fornecido por um grupo de pessoas anônimas, todas as quartas-feiras, na Rua Alberto Pasqualini, José Natalino Santos, 27 anos, não olhava com desconfiança, nem tentava se esconder da intimidadora câmera fotográfica. A propósito, foi enquanto um homem xingava a presença da reportagem, que ele se aproximou e se apresentou: "Não dá bola... Também moro na rua, meu nome é José, e eu não tenho vergonha de falar".

O jovem, que há quatro meses passa as noites no terreno de um mercado no Bairro Km3, conta que vive da venda de latinhas. Veio de Santa Catarina e, antes de chegar em Santa Maria, nunca havia morado na rua. Viciado em crack desde os 21, disse que, com a morte da mãe, distanciou-se dos irmãos e rompeu a relação com o pai. Já foi internado contra dependência química diversas vezes, mas sem efeito. Acredita que está fadado a conviver com o vício até o resto da vida:

- No caso do crack, o cara chega a sonhar que está fumando. Não acredito que a gente se cura nessas clínicas. Não do jeito que é. Trocam uma coisa (droga) pela outra. E de tanto remédio que tu toma, tu fica fora do mundo e fora da realidade. Daí, passa seis meses, chega perto de uma bebida ou de qualquer coisa e volta tudo.

O último emprego foi como garçom, mas o que ele queria mesmo era um dia fazer faculdade de psicologia ou ser inspetor de polícia. Ao que parece, de leitura, José gosta. Relata que consome livros de autoajuda e lembra especialmente de uma frase. Palavra por palavra, sem tirar o olho do bloco de anotações pede para que seja escrita: "Quando não puderes produzir com as tuas palavras, seja útil com teu silêncio. Nem tudo pode ser dito a todos, nem todos podem saber de tudo."

DERIVA SOCIAL

Para Guilherme Howes, antropólogo e professor da Universidade do Pampa (Unipampa) são poucos os estudos que forneçam dados sobre a questão das pessoas em situação de rua. A maioria das informações são de âmbito nacional, o que impede que se conheçam situações mais peculiares ou de pequenas e médias cidade como é o caso de Santa Maria.

Um estudo produzido pelo Ministério do Desenvolvimento Social, ainda do ano de 2005, foi base para a Política Nacional para a População em Situação de Rua, levada a efeito pelo decreto nº 7.053 de 2009. Porém, repercutiu pouco no âmbito dos municípios.

Howes menciona que, de maneira geral, os motivos que levam as pessoas a morar nas ruas se repetem. Podem estar associados ao alcoolismo e ao uso de outras drogas ilícitas. Isso acaba por ocasionar uma espécie de deriva psicológica, que implica na perda de emprego, de vínculos formais de trabalho, de conflitos parentais ou familiares, configurando aquilo que sociologicamente se denomina deriva social.

O antropólogo também alerta para a desmistificação de que as pessoas em situação de rua não sejam rotuladas como vagabundas ou perigosas. O prefessor defende piamente a moradia como direito constitucional:

- Muitos deles trabalham informalmente nas ruas, buscando alguma forma de sobreviver como catadores, pequenos biscates, guardadores de carros e até mesmo segurança informal na cidade, o que acaba travando com os moradores regulares, elos de confiança e mútuo auxílio. Morar é um dos direitos constitucionais formalmente garantidos a todos os brasileiros, portanto, é dever de todos nós fazer valer esse princípio legal. Ele consta do capítulo II, dos Direitos Sociais, em particular no artigo 6º, onde consta que "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."

SIDNEI E IRENE SOB UMA CEGUEIRA CONDICIONADA

Ao refletir sobre comportamento humano e sociedade, o escritor português José Saramago escreveu Ensaio Sobre a Cegueira. No livro, pessoas de uma cidade vão ficando cegas, inexplicavelmente. Sidnei Umpierre, 55 anos, nunca ouviu falar em Saramago, mas as semelhanças de sua vida real lembram a ficção. Embora os olhos sejam sadios, para Umpierre, sua capacidade de enxergar foi roubada. Por não ver saídas, há cerca de um ano passou a viver na rua. Não foi por algum vício ou desafeto. Foi pelo desemprego. Viúvo há oito anos, deixou a casa que tinha para que "os filhos seguissem seu rumo". Saiu de São Gabriel e veio trabalhar no ramo da construção civil no Coração do Rio Grande. A empresa que o empregava foi multada e muitos funcionários, demitidos.

- Quando vim para Santa Maria até aluguei uma peça, mas aí a firma botou 40 homens para fora (demitiu). Nunca pensei que ia parar na rua. Estou com dinheiro e não consigo pegar porque roubaram minha bolsa com umas roupas e meus documentos. Dei até parte, mas o banco não libera meu dinheiro. Estou em perícia médica e não posso trabalhar. Tem dias que dá uma mágoa assim no peito. Tu ser acostumado a ter ocupação e ter que ficar parado é a mesma coisa que uma pessoa enxergar e perder a visão.

Tudo que restou a Umpierre foi um colchão debaixo do Viaduto Evandro Behr. Conta, ele, que passa o dia andando de um lado para outro para que as horas passem mais rápido. Só se alimenta,quando alguém doa comida e há dois meses, a caminhada solitária encontrou companhia: ele conheceu a namorada Irene da Silva, 37 anos, que também estava em situação de rua.

Ao refletir sobre comportamento humano e sociedade, o escritor português José Saramago escreveu Ensaio Sobre a Cegueira. No livro, pessoas de uma cidade vão ficando cegas, inexplicavelmente. Sidnei Umpierre, 55 anos, nunca ouviu falar em Saramago, mas as semelhanças de sua vida real lembram a ficção. Embora os olhos sejam sadios, para Umpierre, sua capacidade de enxergar foi roubada. Por não ver saídas, há cerca de um ano passou a viver na rua. Não foi por algum vício ou desafeto. Foi pelo desemprego. Viúvo há oito anos, deixou a casa que tinha para que "os filhos seguissem seu rumo". Saiu de São Gabriel e veio trabalhar no ramo da construção civil no Coração do Rio Grande. A empresa que o empregava foi multada e muitos funcionários, demitidos.

- Quando vim para Santa Maria até aluguei uma peça, mas aí a firma botou 40 homens para fora (demitiu). Nunca pensei que ia parar na rua. Estou com dinheiro e não consigo pegar porque roubaram minha bolsa com umas roupas e meus documentos. Dei até parte, mas o banco não libera meu dinheiro. Estou em perícia médica e não posso trabalhar. Tem dias que dá uma mágoa assim no peito. Tu ser acostumado a ter ocupação e ter que ficar parado é a mesma coisa que uma pessoa enxergar e perder a visão.

Tudo que restou a Umpierre foi um colchão debaixo do Viaduto Evandro Behr. Conta, ele, que passa o dia andando de um lado para outro para que as horas passem mais rápido. Só se alimenta,quando alguém doa comida e há dois meses, a caminhada solitária encontrou companhia: ele conheceu a namorada Irene da Silva, 37 anos, que também estava em situação de rua.

MP ATUA NA GARANTIA DO ACOLHIMENTO

Em 2018, não houve nenhum expediente relacionado a pessoas em situação de rua. De acordo com o promotor Fernando Barros, da 1º Promotoria de Justiça Civil e Cidadania, em anos anteriores, alguns casos investigaram situações pontuais de irregularidades na Casa de Passagem bem como indisciplina de alguns acolhidos no local.

Para garantir o funcionamento da Casa e o atendimento adequado às pessoas em situação de rua, o Ministério Público irá instaurar, a partir de agosto, um procedimento permanente para acompanhar as ações da instituição.

- Será um acompanhamento semelhante ao que já fizemos nas casa geriátricas de Santa Maria. Além disso, o MP também serve como um canal para denúncias. Atualmente Barros esclarece que a Casa de Passagem atua no acolhimento e busca ativa de pessoas em situação de rua e, com exceção de casos que exijam internação compulsória é preciso respeitar a garantia individual. Isto é, ninguém pode ser obrigado a sair da rua se não quiser, já que o contrário fere o direito de ir e vir, estabelecido do artigo 5º da Constituição.

SOCIEDADE CIVIL VOLTA O OLHAR ÀS RUAS

É da sociedade civil que partem iniciativas que assistem ao público que não tem outro lugar senão os bancos de praças, prédios abandonados e avenidas da cidade.

Além de ações de voluntariado diversas frentes trabalham para a criação de um comitê, uma associação e um Centro de Referência Especializado Para Pessoas em Situação de Rua (POP). O último, em parceria com a prefeitura de Santa Maria.

- No café e no almoço solidário, quando começamos, em 2017, eram aproximadamente 30 pessoas atendidas. Hoje chega a 70, 80 (pessoas em situação de rua e outros que aparecem). Criamos o Naps-SM (veja ao lado), seguiremos realizando estas ações emergências e ao mesmo tempo cobrando do poder público para que cumpra a sua obrigação e crie um POP - relata Rogério Rosado, um dos voluntários do Naps- SM.

Engajado na mesma causa e encampando ações que vão de conversas com moradores a articulações junto ao Legislativo e ao Executivo, Reinaldo Santos, sabe do que fala:

- Fui a primeira pessoa em situação de rua a obter uma aprovação na UFSM. Tenho como meta ajudar a montar o Comitê Municipal de Pessoas em Situação de Rua e Catadores, além de uma associação para a alinhavar os projetos e as políticas sociais, sempre incomodando os secretários, o prefeito e os vereadores para que a promessa saia do papel e se transforme em ação.

É preciso que tenham, por exemplo, acesso à qualificação profissional, vagas de emprego e atendimentos em unidades de saúde. Hoje as pessoas estão abandonadas em seu direito à cidadania, sem ao menos um banheiro para realizar suas necessidades fisiológicas ou um restaurante (popular) para realizar suas refeições.

AÇÕES E FORMAS DE AJUDAR

  • Café Solidário
  • A iniciativa contou inicialmente com o apoio principal da Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ). Atualmente são cerca de 12 voluntários regulares, organizados pelo Núcleo de Assistência de Pessoas em Situação de Rua de Santa Maria (Naps-SM). A Escola Marista Santa Marta participa do evento, assim como o Seminário São José e a Paróquia Católica 

  • Almoço Solidário  
  • Iniciou em 24 de outubro de 2017. Atualmente o almoço é promovido pelo Projeto Maná por iniciativa de Rafael, que também foi morador de rua. Para ajudar: (55) 9 9672-3532, com Lise 

  • UFSM nas Ruas
    Projeto de extensão recém-criado pela UFSM, por meio do curso de Serviço Social em parceria com pessoas em situação de rua. O objetivo é oferecer serviço de acolhimento e articular para que o município institua um Centro Especializado Para Pessoas em Situação de Rua (POP), que, conforme o Decreto nº 7.053/2009, determina que todos municípios com mais de 240 mil habitantes devem implantar 

  • Corte de cabelos (masculino)
    Sob a coordenação de Sergio e Cristiano Chimini, pai e filho do Salão Chimini, e professores no Instituto Embelleze são feitos cortes de cabelo. Alunos concluintes do curso de corte de cabelo participam. Desde outubro, foram realizados mais de 100 cortes de cabelos. Nova data da ação deve ser informada em breve 

  • Certidão de nascimento
    Por meio de uma voluntária, com apoio do Naps-SM já foram viabilizadas três certidões de de nascimento a população de rua 
  • Encaminhamento para comunidades terapêuticas 
  • Por meio do Naps-SM oito pessoas já foram encaminhadas. Para mais informações: (55)99723-2666, com Rogério

  • Distribuição de roupas e calçados 
  • Cerca de 300 peças de roupas e vários pares de calçados já foram distribuídas para os participantes do Café Solidário 
  • Para ajudar - (55) 9 9672-3532, com Lise

  • PROJETO SAÚDE NA PRAÇA
  • Aos sábados, das 12h30 min às 16 h. Organiza a participação dos participantes na Feicoop 2018 e confecciona currículos para o mercado de trabalho. Também há atendimento jurídico no mesmo horário, no Coreto da Praça Saldanha Marinho 

  • O pouco que vale muito
  • Grupo de pessoas anônimas que oferecem refeições todas as quartas-feiras e sábados, na Rua Alberto Pasqualini.  
  • Para ajudar: (55) 99169-6063, com Carla


EXPEDIENTE

reportagem
PÂMELA RUBIN MATGE

fotos
RENAN MATTOS

vídeo
RAFAEL SANCHES GUERRA

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