Os limites e a vida
O ano era 2006 e eu estava fazendo a redação do PEIES (Programa de Ingresso ao Ensino Superior) para conseguir uma vaga no curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria. O tema? Limites na educação dos filhos. Eu mal sabia que 13 anos depois iria escrever uma coluna para um jornal exatamente sobre isso. Nos dias de hoje percebemos que tal tema se renova e conserva sua atualidade.
Tenho me espantado com a demanda crescente que se apresenta em meu consultório, nas conversas com colegas de trabalho, nos espaços mais informais de convívio e claro, no ambiente escolar: crianças mais agitadas, com dificuldades em parar, sentar, escutar, saber a sua hora de falar, saber como construir uma brincadeira com um amiguinho e somado a isso temos pais também um pouco atrapalhados na árdua tarefa que é educar seus filhos. Nossos pequenos estão com dificuldades em conter um corpo com uma borda que seja simbólica, que seja marcada pela linguagem. É como se tivéssemos uma piscina sem bordas. A água extravasa sem contenção.
Por vezes os pais se confundem e acham que os limites tem a ver apenas com definições do certo e do errado, com as regras. Também é isso, mas não só isso. Quando falo em limites me refiro também a uma contenção do próprio corpo, limite e diferenciação entre eu e o outro, saber fazer pausas em uma conversa, escutar a ideia de alguém para uma brincadeira ou o que a professora vai falar. Saber esperar. Tudo isso tem se mostrado muito difícil para as crianças e para os adultos de hoje.
Nesse sentido, é impossível não lembrar de Freud. Em seu texto "Psicologia das massas e análise do Eu" (1921) ele nos adverte de que toda psicologia individual é também psicologia social. Essa afirmação é como um norte para nossa reflexão, pois permite que ampliemos nosso olhar para além dos sujeitos, de maneira individual, e possamos perceber o quanto estamos imersos em uma sociedade que de fato apresenta dificuldades com tudo aquilo que permeia o simbólico. Cada vez mais nos valemos de objetos da realidade para dar conta daquilo que, em tempos anteriores, se fazia por meio da palavra.
Não se trata aqui em sermos nostálgicos e nos iludirmos de que tempos anteriores eram melhores, pois eles também tinham dificuldades, conflitos e sofrimentos. Mas de fato a palavra já teve mais poder na constituição dos sujeitos e na forma como estabelecemos as relações interpessoais. Um bom exemplo desse declínio é a proliferação de produtos disponíveis no mercado para usarmos com bebês. Temos babás eletrônicas, caso você não escute seu bebê chorar (como se isso fosse possível), protetores de tomada para seu filho não tomar choque ao descobrir aqueles furinhos na parede, tablets para ver desenho enquanto os pais jantam no restaurante, e recentemente vi que já existem espátulas para passar pomada no bumbum do bebê.
Todos esses e outros tantos são objetos que prometem facilitar nossa vida, mas de lambuja nos fazem prescindir da palavra, da linguagem, disso que nomeio como simbólico, para dar conta das adversidades da vida. Por mais criatividade que a indústria de consumo possua, nada se compara à eficácia das palavras, do olhar repreensivo ou carinhoso de um pai ou de uma mãe, do quanto aprendemos com aquilo que é transmitido em nossa família. Será com todo este arcabouço de palavras, afetos e experiências que conseguiremos enfrentar a vida e seus limites, pois eles entranham em nosso corpo e dali não saem mais. E os objetos? Ah os objetos... esses se tornam obsoletos, são substituídos instantaneamente e não fazem marca em sujeito algum.
Agradecimento ao Volnei Dassoler, psicanalista que auxiliou a dar limites para a escrita de hoje!