Tecnologia

A história nos ensina que precisamos debater mais sobre tecnologia


Caros leitores: estreio esta coluna sobre tecnologia tratando justamente sobre a importância de debatermos mais sobre tecnologia.

Sabemos que as sociedades são moldadas por diversos fatores elementares, como as classes sociais, as religiões, os sistemas políticos e econômicos. Poucos se dão conta de que a tecnologia também é um destes fatores elementares. Ao contrário do ditado popular, religião e política podem ser discutidas sim, da mesma forma como pode ser discutido o papel da tecnologia na sociedade e a maneira como lidamos com seus efeitos.

As inovações tecnológicas da última década transformaram os modos como socializamos e trabalhamos, revolucionaram os meios de informação e comunicação, multiplicaram as opções de aprendizagem e entretenimento e perturbaram a qualidade do nosso sono diário. Os próximos lançamentos da indústria da tecnologia digital podem determinar a extinção da sua atual profissão, podem apresentar seu futuro cônjuge, podem abrir uma grande oportunidade de vida ao seu filho. Não sabemos muito bem o que de novo virá por aí e como isso afetará nossas vidas, mas temos certeza que virá e que vai nos afetar de alguma maneira. Nossa única defesa é estarmos atentos e críticos ao que nos é oferecido. Para que isso seja possível, é preciso falar, debater, conversar mais sobre tecnologia. E é preciso abrir o assunto a todos, independentemente de classe social, sexo e idade.

Não pensem que este é um tema de importância recente! A tecnologia foi um fator determinante tanto para a ascensão quanto para a derrocada de diversas civilizações e já provocava fascínio e apreensão desde a antiguidade. Pego como exemplo a grandiosa civilização romana: entre os fatores que a levaram ao domínio do continente europeu, está um fato que envolve, vejam só, roubo de tecnologia.

Em meados do século III a.C., a pequena República Romana buscava expandir suas fronteiras restritas à península itálica e aumentar seu poder no Velho Continente, mas para isso seria necessário conquistar o Mar Mediterrâneo, que até então era dominado por uma superpotência marítima: a civilização cartaginesa. Uma missão até então impossível, já que Roma não tinha tradição marítima e, muito menos, poder naval para lidar com as possantes embarcações cartaginesas. No entanto, se você é craque em história, deve saber que Roma conseguiu vencer Cartago nas três Guerras Púnicas. Como foi possível? Segundo o historiador grego Políbio, Roma recuperou embarcações cartaginesas naufragadas e capturou as que ficaram à deriva no litoral, estudou cada uma das peças utilizadas nestes navios e copiou a tecnologia marítima dos rivais. E foram ainda mais espertos: como os romanos tinham a supremacia técnica da luta corpo a corpo, desenvolveram uma espécie de ponte móvel dentro das embarcações, que descia e se prendia às embarcações cartaginesas, permitindo a passagem dos seus legionários com suas espadas curtas.

Após o fim desta "guerra tecnológica" e do respectivo domínio do Mediterrâneo, Roma passou a se expandir aceleradamente, até se tornar na maior civilização da sua época, com mais de 20% da população mundial e uma capital com mais de um milhão de habitantes. Para conseguirem manter tanto território e tantos moradores, tiveram que desenvolver muita tecnologia: suas estradas e pontes foram tão bem construídas que muitas delas continuam sendo usadas até hoje; seus aquedutos criaram redes de distribuição de água, banhos públicos e esgoto tão bem elaborados que nem a Europa medieval conseguiu repetir nos mil anos seguintes; seus engenheiros criaram equipamentos relativamente complexos, com sistemas de engrenagens e manivelas. Roma foi um exemplo de sociedade que soube explorar muito bem as vantagens da tecnologia para o bem público e social, mas também foi uma das primeiras sociedades a experimentar a aplicação equivocada da tecnologia em larga escala. Não satisfeitos em criarem uma grande rede de aquedutos, os engenheiros romanos desenvolveram um sistema ainda mais requintado de distribuição de água, com o uso de encanamento de metal em seus aquedutos. O grande problema é que os canos eram produzidos com chumbo, um metal altamente tóxico para o corpo humano. Ou seja: a tecnologia do encanamento parecia ter resolvido um problema, mas por falta de pesquisa sobre seus efeitos, se transformou num perigo de altíssimo risco para a população. Há historiados que chegaram a cogitar que uma das razões para a queda de Roma foi a intoxicação por chumbo de suas elites, já que eram estas famílias que recebiam a água encanada e era a elite romana quem articulava a política e financiava as campanhas militares.

Quando observo a maneira como nossa atual sociedade explora a tecnologia, me pergunto: quais seriam os nossos aquedutos de chumbo contemporâneos? Quais são as tecnologias que julgamos estar contribuindo com a nossa evolução, mas que, no final, estão envenenando nossas mentes ou nossas liberdades e nem nos damos conta? A forma como lidamos com a tecnologia afeta a todos nós, mesmo àqueles que são avessos aos apetrechos tecnológicos, e é por isso que precisamos conversar mais sobre este tema.

Sou um grande entusiasta da tecnologia digital, utilizo ela todos os dias e confio que ela ainda resolverá muitos de nossos problemas humanos e sociais, mas também sou um crítico de suas possíveis implicações, pois é preciso refletir e debater mais sobre os seus impactos em nossas vidas, nas nossas relações interpessoais e nos jogos de poder exercidos na sociedade. É o que pretendo fazer nas próximas colunas, aqui no Diário de Santa Maria.


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