sociedade

Naquela noite


Fazia muito calor e tive insônia. Fui à cozinha beber água, senti o cheiro forte da geladeira em virtude de uma carne de porco temperada com antecedência para o almoço do domingo, em Itaara. Tentei dormir, nada de sono. Decidi limpar a geladeira. Liguei na Imembuí e ouvi Schimitão fazendo uma chamada de um listão. Estranhei...

Paty recebeu um telefonema da irmã perguntando se Júnior estava em casa. Foi ao quarto do filho: 
- Sim!  

Então, Taty narrou o acontecido. Paty lembrou-se de imediato do João, funcionário de lá e que no dia anterior, no Marista, distribuía convites para a festa. Procurou localizá-lo no Facebook:
- João, onde você está? Tá tudo bem? 

O arranhão na perna da Jane latejava. Pensou descansar um pouco, quando o telefone no Pronto-Socorro do Husm soou. Com o alerta, o plantão passou a atuar em ritmo de operação de guerra. Jane preparou mais de 100 suportes para soro. Outro grupo se incumbiu dos equipamentos para intubação. Feito moto contínuo, em meio a luvas, máscaras, sondas e suportes para soro somente parou 24 horas depois.  

Seu André, taxista, foi avisado pelo rádio táxi. Prontamente deslocou-se para o local, transportando feridos para o Caridade.   

Pensei que Schimitão estivesse fazendo a chamada dos aprovados no vestibular, mas naquele dia, naquele horário? Ao final da leitura, a triste realidade: eram as primeiras cinquenta vítimas identificadas.  

Paty contatou com a rede de amigos do João. A expectativa era que ele conseguira sair. A busca por João se somou a de outros amigos e vizinhos. Infinita procura dos Augustos e Pedros, Rogers e Joãos; das Marianas e Andressas, Brunas e Fernandas. Em meio à estupefação, Chronos se encarregou de mergulhar a todos nas amargas lágrimas da realidade: em torno das 10 horas da manhã daquele 27 de janeiro, contrariando nossas esperanças e vontades, sabíamos quem havia partido.

Jane recorda do ritmo de trabalho da equipe e do profissionalismo da médica, que ao reconhecer o filho entre os socorridos, orientou nos procedimentos, continuando o atendimento aos demais. Hoje, Jane deixou o trabalho na área da saúde e ao lembrar-se daquela noite, não consegue explicar de onde a equipe tirou tanta força e equilíbrio. E confessa com brilho no olhar:
- Não perdemos ninguém.  

À medida que deixava feridos no hospital, seu André retornava à base. Foram tantas idas e voltas, que não contabilizou. Voltou pra casa de corpo e alma destruídos. Enfrentou pesadelos e depressão. Atualmente, passa bem, porém o ruído de sirene de ambulância lhe faz voltar àquele dia.

Quatro pequenos relatos daquela noite e a pergunta que me persegue é "O que aprendemos com a Tragédia da Kiss?"
E que aprendizado doloroso, em especial para os familiares de vítimas!

No livro A Roda da Vida, a Drª Elisabeth Kübler-Ross se refere à morte como formatura, uma experiência que mais cedo ou mais tarde, sem exceção, faremos e que feito borboletas, liberamos a alma, abandonando o casulo do corpo e voaremos ao encontro de Deus. No jogo da vida, somos quais sementes espalhadas pelo vento. As sementes seguem seu curso, germinam, desabrocham enfeitam alamedas perfumam jardins. Algumas desabrocham por pouco tempo. Encantam, pois parecem carregar o segredo da estação das flores e da esperança. Quando morrem, deixam rastros de luz por onde passaram. Fizeram o que tinham que fazer. Ensinaram o que tinham que ensinar. 

Com elas aprendemos sobre a "insustentável leveza do ser".  

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