cultura

'Apenas' detalhes


Neste início de ano, resolvi arrumar algumas coisas que sempre fui levando sem a devida atenção. Quase como quem começa cumprindo alguma de suas "metas" para o ano que se inicia.  

Algumas dessas atividades são para tornar a vida mais prática e, por consequência, mais tranquila de modo geral. Não são grandes ações ou feitos, muito menos coisas consideradas importantes ou nobres, e sim pequenas atitudes relacionadas ao trabalho e vida pessoal.

O ato de realizar tais tarefas foi um modo que decidi usar para frear a correria quase insana que a maioria de nós encara diariamente, e ganhar espaços para respirar.

 A lista destes modestos afazeres inclui, desde reorganizar guarda roupa, finalizar pequenos "reparos" em casa, até (no meu caso particular) começar a tão adiada organização de arquivos digitais (do note e do celular).

Uma parte desta tarefa inclui, justamente, fazer/atualizar um backup na "nuvem" de arquivos de trabalho e outras coisas antigas de cunho pessoal (visto que hoje grande parte de nossa memória afetiva fica armazenada desse modo).

É claro que tal decisão baseia-se quase que exclusivamente na ideia de facilitar meu dia a dia nas tarefas profissionais. Porém, também me ajuda quando desejo acessar arquivos pessoais.

E foi justamente no meio desses arquivos pessoais onde encontrei uma gravação que estava esquecida. Um dia de bastidores de uma apresentação no teatro. Ela me colocou para pensar sobre detalhes, isso mesmo, detalhes. De como essas pequenas coisas, esses elementos mínimos de um conjunto afetam toda uma construção. Como essas particularidades dizem muito sobre o conjunto ao qual pertencem. Ao modo como nos relacionamos com o que está a nossa volta.

O vídeo era de uma apresentação de um espetáculo infantil intitulado Os Maluquinhos. A apresentação em questão ocorreu no Theatro Treze de Maio, no início de 2008.


Foto: divulgação

O que se vê na tela é um plano sequência com a câmera em ponto de vista subjetivo (o meu no caso, já que era eu mesmo quem gravava tudo), e com a minha voz em off narrando o que eu estava vendo. Eu apresentava e detalhava tudo o que era enquadrado pela câmera.

Comecei desde a praça, mostrando a fachada do teatro e fui até um último take nos camarins onde estavam alguns amigos, figurinos e makes organizadas para o espetáculo.


Claro que além de rever alguns rostos bem novinhos, afinal lá se vai mais de uma década, da indescritível sensação de saudade e de inúmeras memórias, reinventadas ou não, o que mais me despertou a atenção nesse vídeo foi quando eu subo ao palco pelas coxias e apresento os detalhes de cada coisa no palco.

 Mostrava com atenção e cuidado como cada um dos atores deixou seus elementos de cena antes de entrar no espetáculo, onde estavam colocados, como eram organizados para que fossem acessados na hora exata, e assim, seguir o fluxo de tudo o que tinha sido ensaiado. Como o iluminador arrumou tudo, como o cenógrafo também cuidou de cada coisa na montagem.

Eu particularmente que sou muito fã de making of e de conhecer como as coisas são planejadas e pensadas por artistas, seja desde o processo criativo ou somente como aconteceu a execução de determinada obra, fiquei fascinado ao reencontrar esse vídeo.

Pois ali não estava somente cada objeto e sua localização. Mas estava explícito um modo de fazer, de pensar, de como a construção de cada detalhe foi minuciosamente cuidada para que, tanto o ritmo, como a construção do personagem e do espetáculo fosse a mais perfeita possível.

Acredito que cuidar de cada detalhe nesse caso específico funcionou muito bem, visto que o espetáculo foi apresentado até 2016, com mais de 100 apresentações.

Vi no vídeo um processo de amor e de evolução naquele que seria um ótimo espetáculo. Visto que cada um de nós criou e cuidou de tudo o que estava "escondido" em cena, e mesmo que não atentasse para isso no momento, construiu à sua maneira uma forma, uma narrativa estética, a partir da manipulação e da técnica empregada em cada uma daqueles detalhes.

 Vi ali nesse vídeo o que sempre fazemos e sou arrebatado, a construção de um espetáculo invisível tão rico quanto aquele que o público assiste. E isso para quem faz teatro é das coisas mais apaixonantes do universo.

 Na ingenuidade daquelas imagens que mostravam os bastidores, eu queria transmitir como cada detalhe, cada elemento de linguagem colocado em cena compunha a sutileza e a beleza do que era exibido no abrir das cortinas.

 Mostrar os detalhes daquele modo era, percebo hoje, uma maneira de mostrar o carinho e a dedicação com a exposição de algo ínfimo, mas que era, ao mesmo tempo, o todo.

Todos os detalhes ali exibidos eram fruto de processo desenvolvido com paciência, com cuidado, para que o encontro por meio da arte cênica acontecesse em sua plenitude.

 Assistir àquele vídeo e rever cada detalhe, relembrar do espetáculo dentro do espetáculo, o detrás do que já é por detrás, me faz ter a convicção que estar atento a cada pequeno elemento é uma maneira de presentificar (e quem sabe eternizar?) a beleza da arte.

Cuidar dos detalhes é um meio de lutar contra o empobrecer que está ocorrendo na vida cotidiana em muitas instâncias.

Cuidar dos detalhes, no caso das artes cênicas, também é perceber a potência de múltiplas linguagens. Na vida é um modo de ser e estar no mundo, um modo de perceber diferenças e valorizar múltiplos modos de ação. Porém, para tanto, há que se estar aberto, mente e olhos.

Que possamos ser cada vez mais atentos aos detalhes. Afinal, o detalhe é o que torna tudo singular e especial, na vida e na arte.

Até o próximo encontro.

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