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Decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo no Brasil gera dúvidas e polêmicas

Pâmela Rubin Marge e Dandara Flores Aranguiz

Fotos: Janio Seeger (Diário)

De um lado, há quem tenha comparado a responsabilidade com o uso de um carro. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, comparou ao uso de um liquidificador. Outros especialistas na área de segurança pública afirmam ser um retrocesso. O fato é que a assinatura do decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo no país, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro na última terça-feira, causou polêmica e deixou dúvidas à grande parte da sociedade civil.

A própria Polícia Federal (PF), órgão de segurança que, até então, avaliava se o requerente do registro realmente tinha necessidade de ter uma arma, é ponderada na hora de se manifestar. Tanto a delegacia de Santa Maria quanto à Superintendência, em Porto Alegre, remeteram um posicionamento oficial para o Departamento da PF em Brasília quando questionados pela reportagem do Diário. Segundo a assessoria de comunicação do órgão, "não havia fonte disponível para dar entrevistas sobre o assunto".

Fato é que, logo após a assinatura do decreto, muitas pessoas demonstraram interesse em adquirir uma arma e fazer a solicitação para a posse. Na loja SM Caça & Pesca, um dos dois estabelecimentos autorizados em Santa Maria para a venda de armas registradas, a procura aumentou cerca de 50% de terça-feira até a tarde de ontem.

- Depois que o homem assinou, o telefone não parou mais de tocar. As pessoas estão querendo saber como ficou, saber os preços, o que precisa. Tinha meses que vendíamos 40 armas, e é um número bem alto. Agora, em menos de um dia, tivemos 12 solicitações, e a tendência é aumentar em 100% a venda - disse André Sonnenstrahl Scheflben, sócio-proprietário da loja.

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Para o doutor em Sociologia, membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e presidente do Instituto Cidade Segura, Marcos Rolim, o decreto é considerado um retrocesso:

- Reforça uma visão totalmente equivocada sobre a segurança das pessoas. Assegura que a alegada necessidade de se ter uma arma deve ser reconhecida a todos que morem em Estados com mais de 10 homicídios para cada 100 mil habitantes, segundo os dados de 2016. Em 2016, todos os Estados brasileiros tinham taxas de homicídio maiores que esse limite, o que mostra que o critério é apenas uma enrolação.

  • Posse - É quando a pessoa possui uma arma de fogo sob sua guarda, podendo ser em sua casa, em uma casa de campo ou até mesmo em sua empresa
  • Porte - É concedido de forma mais restritiva, porque somente algumas categorias têm autorização para utilizar o armamento, como Forças Armadas, policiais militares, policiais civis e oficiais na ativa. O porte permite que a pessoa se desloque com a arma e ande com ela 24 horas por dia 

FISCALIZAÇÃO

Segundo Eduardo Pazinato, coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da Fadisma, um dos problemas do decreto é a questão de ter um cofre ou um local seguro em casa para guardar a arma (veja mais no quadro). Segundo o especialista, o documento não vem acompanhado de um concurso público para aumentar o efetivo da PF. Para Pazinato, a medida administrativa flexibiliza o acesso à posse de arma de fogo, mas não cria mecanismo algum de fiscalização. Inclusive, a rastreabilidade e a integração entre as bases de dados da PF e das Forças Armadas em relação às armas e aos projéteis são sinalizações políticas, mas não há nenhuma garantia de que vá ocorrer.

- Ficam ausentes as possibilidades de que o decreto contribua para a defesa da cidade. Até porque o Estado não pode delegar segurança da sua população para terceiros ou para entes privados, sob pena de quem tem condições de ter uma arma dar o encaminhamento dessa burocracia ou contratar uma empresa privada ser beneficiado em detrimento da maioria das pessoas - defende Pazinato.

O especialista ainda afirma que a medida favorece a indústria de armas no Brasil:

- Sem fiscalização e sem a fixação de penalidades, a medida é totalmente ineficaz. Muitos são os proprietários que não obedecem a essas regras. O discurso de Bolsonaro só tem aumentado o valor das ações de empresas como a Taurus, por exemplo. Grande parte da chamada "bancada da bala" no Congresso Nacional já teve suas campanhas financiadas pela indústria de armas. Agora, eles estão devolvendo o investimento.

FLEXIBILIZAÇÃO DA POSSE NÃO É CONSENSO ENTRE OS ESPECIALISTAS

Comandante do 1º Regimento de Polícia Montada (1º RPMon) da Brigada Militar, Erivelto Hernandes Rodrigues acredita que as mudanças são positivas e que o tempo mostrará se a decisão foi a mais adequada ou não.

- A sensação de segurança é inegável para quem a possui (arma) e detém a técnica de seu manuseio. Os resultados em outros países, principalmente nos desenvolvidos, são muito satisfatórios no tocante à legislação semelhante e aos baixos índices de homicídios em decorrência das armas legais - avaliou Hernandes.

Para Sandro Meinerz, delegado regional da Polícia Civil, a flexibilização do prazo para renovação do registro da arma (que passou de cinco para 10 anos) é um ponto considerado negativo, pois não oferece condições à pessoa para usá-la adequadamente durante este período em que ela ficaria, em tese, em desuso.

- É desnecessário essa alteração no prazo, mas não vejo o fato de ter armas em casa uma preocupação. Os criminosos continuam armados, e quem tem a posse vai fazer o uso da arma em casos de extrema necessidade. A medida não traz uma sensação de insegurança, mas também não aumenta a segurança só por tê-la em casa, já que o porte continua restrito - comenta o delegado.

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Para o especialista Marcos Rolim, o decreto estará ligado diretamente ao aumento do índice de mortes por arma de fogo no país:

- Facilitar o acesso em sociedades marcadamente violentas como a brasileira é uma irresponsabilidade que irá cobrar seu preço em taxas maiores de homicídios, feminicídios, suicídios, mortes e ferimentos acidentais. Isso não é uma opinião, mas a evidência científica mais forte encontrada na esmagadora maioria dos estudos sobre o tema. Nesse quadro, o decreto é um retrocesso, porque reforça uma visão totalmente equivocada sobre a segurança das pessoas.

Já Pazinato menciona que, mesmo nos exemplos favoráveis à arma de fogo, há a necessidade de fiscalização para verificar se as condições iniciais permanecem.

- Ao meu ver, é um absurdo liberar a posse por 10 anos. Se a pessoa tiver algum problema psicológico ou clínico, ou como prevê a própria legislação, tiver algum inquérito ou processo criminal, quem vai fiscalizar nesses 10 anos para verificar isso? Do ponto de vista jurídico e do ponto de vista técnico no âmbito da segurança pública, não evolui em nenhum aspecto - diz Pazinato.

O QUE MUDA COM O DECRETO Nº 9.685

Em uma loja de armas da cidade, o sócio-proprietário André Scheflben diz que a demanda aumentou muito desde terça-feira

As alterações se referem ao decreto que regulamenta o Estatuto do Desarmamento, lei federal aprovada em dezembro de 2003 que restringe a posse e o porte de armas no país. A medida assinada na última terça-feira não muda a lei, pois alterações no estatuto precisam passar pelo Congresso. Porém, o texto modifica outro decreto, de 2004, que regulamenta o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo e munição. Veja as principais mudanças:

Necessidade de posse - Até então, a legislação não definia critérios objetivos. Antes, era obrigatório comprovar a necessidade da posse de arma junto à Polícia Federal. Até então, se a justificativa apresentada pelo cidadão não fosse considerada suficiente pelo órgão, ele teria o pedido de registro negado. Com as alterações, "presume-se a veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade", de acordo com uma lista de situações estabelecidas pelo governo federal. Dentre elas: residentes em área rural; titulares ou responsáveis legais de estabelecimentos comerciais ou industriais; colecionadores, atiradores e caçadores, devidamente registrados no Comando do Exército, e residentes de áreas urbanas de Estados mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes no ano de 2016, conforme dados do Atlas da Violência de 2018, o que contemplaria todas as unidades da federação. Portanto, na prática, o decreto considera que todas as pessoas do país têm possibilidade de ter uma arma .

Renovação do registro - O prazo de validade do registro de arma de fogo já havia sido ampliado de três para cinco anos em 2017, que autoriza o proprietário de arma de fogo a mantê-la exclusivamente no interior de sua residência ou no seu local de trabalho. A partir da publicação do decreto, os requisitos deverão ser comprovados, periodicamente, a cada 10 anos, junto à Polícia Federal, para fins de renovação do Certificado de Registro. Os Certificados de Registro de Arma de Fogo expedidos antes de terça-feira e que não chegaram a completar cinco anos ficam automaticamente renovados.

Armazenamento da arma - Antes, a lei falava apenas em cautelas necessárias para que pessoas menores de 18 anos ou com deficiência mental não tivessem acesso às armas. Agora, é preciso apresentar declaração de que a residência possui cofre ou local seguro com tranca para o armazenamento da arma de fogo. O decreto não fala em "comprovação" nem faz menção à fiscalização.

Quantidade de armas - O decreto estabelece que é possível ter até quatro armas de uso permitido. Contudo, a pessoa pode requerer o registro de mais armas, desde que comprove que tem necessidade e apresente circunstâncias que justifiquem o pedido.

QUEM PODE ADQUIRIR UMA ARMA DE FOGO

  • Primeiro, é necessário pedir a autorização para possuir uma arma junto à Polícia Federal. Se o requerente cumprir os requisitos (ter idade mínima de 25 anos; comprovação de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo; comprovação de capacidade técnica para o manuseio de arma de fogo; declaração de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal; apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e ter residência física), a compra é liberada
  • Depois de comprada, é preciso solicitar o registro junto à PF e pagar uma taxa. Será emitido o Certificado de Registro do armamento adquirido que será entregue ao cidadão ou a seu procurador mediante contato telefônico prévio
  • Por fim, é emitida uma autorização de transporte (Guia de Trânsito) para levar a arma da loja ao local onde ela ficará armazenada. Durante o transporte, ela deve estar descarregada e embalada de forma que não possa ser utilizada

Fonte: Polícia Federal

REGISTROS DE ARMA DE FOGO

Há, no Brasil, segundo dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), 677.771 registros ativos de armas de fogo, sendo 345.884 em nome de pessoas físicas . No Rio Grande do Sul, são 75.321 registros ativos de armas, sendo 55.737 em nome de pessoas físicas.

2014

  • 748 registros emitidos 

2015

  • 1.410 registros emitidos

2016

  • 1.162 registros emitidos 

2017

  • 1.078 registros emitidos 

2018

  • 1.253 registros emitidos

A duração do processo de deferimento ou indeferimento de aquisições, renovações ou transferências de arma de fogo leva de 30 a 60 dias, prazo para que o requerente tenha uma resposta .

O índice de homologações referente aos pedidos de registros de armas fica em torno de 80%.

Em Santa Maria, há duas lojas que vendem armas registradas, de acordo com a Polícia Federal: SM Caça & Pesca (Rua Pinheiro Machado, 2.768, Centro) e Titan Guns Store (Rua Valentim Fernandes, 50, Bairro Nossa Senhora de Lourdes).

Fonte: Núcleo de Controle de Armas e Produtos Químicos (Nuaq) da Delegacia de Polícia Federal em Santa Maria, que abrange 31 municípios da região

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