Há um ano, Júri da Kiss iniciava com diferentes expectativas para sobreviventes, familiares e réus da tragédia de 2013

Denzel Valiente

Há um ano, Júri da Kiss iniciava com diferentes expectativas para sobreviventes, familiares e réus da tragédia de 2013
A noite de 27 de janeiro de 2013 durou, ao menos, 106 meses para familiares, amigos e sobreviventes da tragédia da boate Kiss. Por outro lado, para os 242 mortos no incêndio, em sua maioria jovens, já são quase 10 anos de sonhos enterrados. Há exato um ano, em 1º de dezembro de 2021, começava no Foro Central de Porto Alegre o julgamento dos quatro réus do Caso Kiss. Aquele que ficou conhecido como o júri mais longo da história gaúcha, condenou a mais de 18 anos de prisão Elissandro Spohr, Mauro Hoffman, Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Com a pena proferida pelo juiz Orlando Faccini Neto, no dia 10 do mesmo mês, sobreviventes e familiares puderam, de certa forma, virar o calendário para 28 de janeiro. Contudo, a espera por justiça se desfez oito meses depois, com a anulação do júri. Nos próximos parágrafos o Diário retoma os fatos que marcaram o caso, os julgamentos e o que pensam os principais “atores” desta história.

Nesta reportagem:

A tragédia da Kiss

O Tribunal do Júri

Julgamento dos recursos e anulação

Um ano depois, o que mudou e o que pensam as partes?

O incêndio

Bombeiros e voluntários quebram parede de fachada da boate. Foto: Germano Rorato (Arquivo/Diário)

Era noite de 27 de janeiro de 2013, quando mais de 800 pessoas, na maioria jovens universitários, participavam de uma festa promovida por cursos de graduação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). No palco, quem embalava a noite era a Banda Gurizada Fandangueira.

Por volta das 2h30min, entretanto, o que poderia ser uma brincadeira, resultou na maior tragédia do Estado e uma das maiores do país. Um dos integrantes do grupo musical disparou um artefato pirotécnico que acabou incendiando a cobertura de espuma acústica que revestia o teto do salão. Foram poucos minutos para que o fogo e a fumaça se alastrasse pelo ambiente fechado e sem janelas.

Durante o pânico que tomou conta das pessoas que tentavam a todo custo deixar o local, muitas caíram e foram pisoteadas, outras tantas, ao buscarem por uma saída, acabaram presas nos banheiros da boate. O material tóxico expelido pela fumaça da espuma e o fogo foram responsáveis pela morte de 242 pessoas e deixaram mais de 600 feridos.

A estreita Rua dos Andradas, onde a boate ficava localizada, se tornou um cenário de terror. Bombeiros e voluntários tentavam a todo custo salvar o maior número possível de vidas e prestar os primeiros socorros. Nos hospitais, acumulavam-se vítimas e famílias desesperadas em busca de seus filhos, sobrinhos e netos. Houve ainda aqueles sobreviventes que ao retornarem para o interior do local para salvar vidas, acabaram não conseguindo voltar.

Familiares e amigos buscavam por vítimas em hospitais. Foto: Jean Pimentel (Arquivo/Diário)

Aos poucos as proporções da tragédia foram sendo compreendidas pelos santa-marienses. O incêndio na Kiss chocou não só o Brasil, mas o mundo e foi destaque no noticiário internacional. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem pelo Chile e veio a Santa Maria junto com o governador do Estado, Tarso Genro, prestar solidariedade aos sobreviventes e familiares.

Como noticiado na primeira edição do Diário impresso pós-tragédia, o então prefeito Cezar Schirmer decretou luto oficial de 30 dias no município. A 11ª edição do Santa Maria Vídeo e Cinema (SMVC) daquele ano foi cancelada. A rodada do Campeonato Gaúcho daquele domingo, foi suspensa, assim como o Planeta Atlântida, que ocorreria nos dias 1° e 2 de fevereiro.

Desde aquele janeiro, foram nove anos de dor e sentimento de impunidade para os sobreviventes e familiares que juntaram forças, unidos, por meio da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e de outros grupos. Já para os acusados, a sensação foi de incerteza sobre o futuro. Até que chegou o dia do júri.

O julgamento

Familiares, amigos e sobreviventes logo após final do décimo dia de júri. Foto: Pedro Piegas (Arquivo/Diário)

Marcado para ocorrer em dezembro de 2021, o júri que inicialmente seria realizado em Santa Maria, foi transferido para Porto Alegre por decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS). Inicialmente, o desaforamento (troca de cidade) havia sido concedido a três dos quatro réus: Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann e Marcelo de Jesus. Luciano Bonilha Leão foi o único que não manifestou interesse na troca (o julgamento chegou a ser marcado em Santa Maria), mas, após o pedido do Ministério Público (MP), o TJ/RS determinou que ele se juntasse aos demais.

O primeiro dia de julgamento no Foro Central de Porto Alegre foi marcado por emoção e encontro entre os sobreviventes do incêndio. Todos os dias eles, acompanhados de familiares e amigos, chegavam ao local para assistirem os depoimentos. Duas sobreviventes foram as primeiras a falar.

– Era um labirinto. Eu mesma, que trabalhava lá, não conseguia sair. – afirmou a sobrevivente Kátia Siqueira, durante depoimento que levou mais de quatro horas, à época.

Interior da Kiss em março de 2012. Foto: Jean Pimentel (Arquivo/Diário)Interior da boate durante reforma cerca de um ano antes da tragédia. Foto: Jean Pimentel (Arquivo/Diário)Interior após ser consumido pelo incêndio. Foto: BombeirosInterior em novembro de 2021. Foto: Renan Mattos (Arquivo/Diário)

Os dias que decorreram foram marcados por longos depoimentos de testemunhas, além de confrontos de versões sobre a estrutura e reforma realizada na boate Kiss pouco tempo antes do incêndio. Os debates acerca do edifício foram marcados por divergências técnicas e interferências. Testemunhas de acusação e de defesa fizeram longos depoimentos durante os dias.

O número de testemunhas chegou a ser reduzido, para que o julgamento, previsto inicialmente para ter 15 dias, chegasse ao fim mais cedo. Os réus do caso, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate; Marcelo de Jesus, vocalista da banda e Luciano Bonilha, roadie da banda, foram ouvidos entre o 9° e o 10° dia. 

Réus e advogados durante a leitura da sentença. Foto: Pedro Piegas (Arquivo Diário)

Às 17h45min de 10 de dezembro do ano passado, o juiz Orlando Faccini Neto começou a ler a sentença dos réus. Todos foram condenados por homicídio com dolo eventual. No entanto, um habeas corpus preventivo possibilitou a eles recorrer da sentença em liberdade. 

A anulação

O julgamento das nulidades foi realizado em Porto Alegre, no dia três de agosto de 2022. Foto: Nathália Schneider (Arquivo/Diário)

Eles seguiram presos até três de agosto deste ano, quando, durante o julgamento dos recursos das defesas, os três desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) chegaram à decisão de anular o julgamento. Na noite do mesmo dia todos foram soltos. Desde então, enquanto novos recursos são apresentados pelo MP no TJ/RS, ou ainda em tribunais superiores, como recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou extraordinário para o Supremo Tribunal Federal (STF), os réus seguem em liberdade.

Os quatro, até então condenados, foram presos cinco dias depois, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux suspendeu o habeas corpus. Luciano e Marcelo se apresentaram em São Vicente do Sul, Elissando em Porto Alegre e Mauro em Tijucas (Santa Catarina). Elissando e Mauro foram transferidos para a Penitenciária Estadual de Canoas.

– Posso seguramente afirmar que em menos de um ano não haverá uma resolução. O processo sendo retornado a um novo tribunal do júri, recaberá novos recursos no STJ. Com a anulação do julgamento, nada do que foi dito no primeiro júri teve qualquer valor. Se, por exemplo, os réus forem condenados – em um novo júri –  e não houver nenhuma nulidade para ser julgada, a defesa pode alegar que houve julgamento contrário às provas dos autos. – analisa o advogado e juiz de direito aposentado Alfeu Bisaque Pereira.

Com a realização do novo julgamento, o que ainda deve levar, no mínimo, um ano para acontecer, caso os réus sejam condenados, com todos os recursos que ainda serão apresentados e julgados, o Caso Kiss só deve ter uma resolução definitiva por volta de cinco anos. Mesmo assim, devido à complexidade do processo, Pereira frisa que é difícil precisar por quantos anos o processo ainda se desenrolará. Mesmo assim, é certo que o incêndio da boate Kiss completará 10 anos – em janeiro próximo – sem que haja um término no processo, e com o sentimento de incerteza, tanto para sobreviventes como para os acusados.

Um ano depois, o que mudou e o que pensam as partes?

Se há um ano, todos os réus eram condenados a penas de mais de 18 anos de prisão por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio, hoje, com a anulação, eles voltaram à categoria de réus e respondem em liberdade. A reportagem foi atrás dos principais “atores” que participaram do júri. Elissando, Mauro, Luciano e Marcelo preferiram se manifestar por meio das defesas. O juiz Orlando Faccini Neto foi procurado e não quis falar.

Veja abaixo o que disse cada uma delas: 

Elissando Spohr

“A defesa de Elissandro Spohr pede aos promotores de justiça encarregados do caso que aceitem o julgamento proferido pela 1ª Câmara Criminal e desistam dos inúmeros recursos ainda cabíveis, permitindo que a nova sessão de julgamento se realize ainda no primeiro semestre de 2023. Assim como o Kiko, tenho certeza que também os familiares das vítimas não aguentam mais esse martírio. Esse caso precisa ir logo a novo Júri.” – defesa do ex-sócio.

Mauro Hoffman

“Há quase 10 anos, estamos envolvidos com esse caso que é doloroso para todos os envolvidos. Foram 10 dias de muito trabalho, sempre com foco na sensibilidade e na técnica que fazem parte do nosso jeito de advogar, mas também foram 10 dias de muito sofrimento para todos. E, depois de tudo, ainda tivemos de lidar com manobras jurídicas impensáveis e irresponsáveis que, além de condenaram os quatro réus, condenaram, igualmente, o Direito Penal. Nossa expectativa, agora, é que possamos, enfim, ter um julgamento justo.” – defesa do ex-sócio.

Marcelo de Jesus dos Santos

“Sentimento (é) de justiça. Sabemos que ainda não acabou e que há um longo caminho para que realmente ocorra um novo júri e que se encerre o processo. Foi um ano difícil, e não será um mês qualquer, mas um mês de lembranças de 10 dias tristes e árduos para todas as partes, onde a ferida dessa tragédia ainda permanece e permanecerá por muito tempo aberta. Mas, continuamos em busca de justiça e não vingança!” – defesa do ex-integrante da banda.

Luciano Bonilha Leão

“Foram 10 dias muito difíceis, de muito trabalho, discussão e principalmente emoção. O Luciano foi absolvido pelo Brasil e, infelizmente, condenado por aquele tribunal que para mim estava contaminado por todo aquele ambiente que foi cercado o julgamento. Todas as mensagens que recebemos eram de absolvição e o conselho veio a condená-lo. Posterior, foi anulado o julgamento e nós esperamos, breve, tenha um novo júri e que o Luciano seja absolvido.” – defesa do ex-roadie da banda.

Gabriel Rovadoschi Barros

“Foi uma experiência que fez a história se intensificar durante aqueles 10 dias, principalmente para quem acompanhou presencialmente. Foi um processo muito sério, e que resultou em afetações na própria qualidade de vida. Com a sentença proferida foi a primeira vez que eu como sobrevivente senti que não tinha culpa de isso que aconteceu comigo. Foi muito significativo ter a justiça, saímos com a perspectiva de uma esperança. Com a anulação, se coloca em grave risco não somente a saúde dos familiares e sobreviventes, mas se coloca em risco a vida de todos, porque a impunidade potencializa os danos que a tragédia causou.” – sobrevivente e presidente da AVTSM.

Lúcia Helena Callegari

“Eu tinha certeza que sairia o julgamento. Era um julgamento que exigia muito dos profissionais, muitas horas. Entendo que para as famílias, quando houve um resultado, foi um alívio. Nós temos agora esse novo momento que estamos vivendo, que é o resultado da anulação, mas eu tenho certeza que nós vamos reverter em Brasília, no STJ. Mas até lá, para as famílias, cria uma situação de total descrédito, novamente, nas instituições. Eu entendo que nenhuma das nulidades se sustenta e isso é mais um tempo de espera que eu acho que não vai ser pouco.” – promotora do MP.

Antonio Vinicius Amaro da Silveira

O judiciário se preparou durante meses para viabilizar que o evento acontecesse. Houve essa dedicação em função da importância, é lamentável, mas importante. Foi longo, o tempo de espera é muito longo e evidentemente, nós lamentamos o tamanho dos prazos. Agora, faz parte, é um processo com muitos detalhes, com centenas de pessoas. No caso do julgamento que acabou anulado, é uma questão jurisdicional, cujas decisões são fundamentadas. É complicado se sustentar mais um ano de espera, mas está dentro do contexto. – desembargador e 2º vice-presidente do TJ/RS. 

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