Geoparque Quarta Colônia contribui para a luta e a resistência das comunidades quilombolas da região

Geoparque Quarta Colônia contribui para a luta e a resistência das comunidades quilombolas da região

Fotos: Nathália Schneider (Diário)

O representante e liderança da comunidade de São Miguel dos Carvalhos, Roberto Potássio Rosa, 67 anos, e o neto Eliézer de Souza Rosa, 7 anos


Muito mais que um símbolo do passado, a luta e a resistência das comunidades quilombolas são movimentos contemporâneos. Os quilombolas são grupos de pessoas que trazem nas práticas cotidianas a cultura, a memória e a identidade dos seus antepassados. Pela primeira vez, o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou o número de quilombolas no Brasil. No Rio Grande do Sul, a população representa apenas 0,16% do total de habitantes. Na região da Quarta Colônia, o município de Restinga Sêca contabiliza a maior população em território oficial: as comunidades de São Miguel dos Carvalhos e Rincão dos Martimianos, além da comunidade quilombola de Barro Vermelho. Os locais apresentam um diferencial importante por fazerem parte do Geoparque Quarta Colônia, que, por meio do reconhecimento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ganham mais um aliado na luta pela visibilidade e pela conquista de direitos garantidos por lei.


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Em 24 de maio de 2023, os geoparques da Quarta Colônia, formado por nove municípios, e de Caçapava do Sul foram reconhecidos pela Unesco e passaram a integrar a Rede Mundial de Geoparques (GGN). Para a manutenção do selo de geoparques mundiais é preciso continuar e aumentar o trabalho de conscientização sobre a importância do patrimônio geológico, histórico-cultural e arqueológico da região na história e na sociedade de hoje.


Na região da Quarta Colônia, composta pelos municípios de Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova Palma, Pinhal Grande, Restinga Sêca, São João do Polêsine e Silveira Martins, a imigração italiana e alemã, geralmente, ganham destaque. No entanto, as comunidades quilombolas também estão há mais de um século nesses territórios, mas, sem tanto reconhecimento.


Geoparque como um aliado

Atualmente, segundo o dicionário de Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o termo quilombo não se refere a resquícios arqueológicos de ocupação. Também não se trata de grupos isolados, pois são grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida. Ou seja, uma comunidade quilombola mantém as tradições por meio da preservação da natureza, da religião, da cultura, e a maior ligação que os une é a permanência da identidade dos antepassados.  


A comunidade quilombola de São Miguel dos Carvalhos, em Restinga Sêca, na zona rural, existe desde o final do século 19, a partir da luta de Geraldo de Carvalho e do sobrinho Ismael Cavalheiro, que fugiram do sistema escravista, e idealizaram para o território atual da comunidade, uma organização social e cultural de resistência contra o regime da época. O representante e liderança da comunidade, Roberto Potássio Rosa, 67 anos, conta que o local existe a partir da luta pela ancestralidade. Atualmente, o local conta com 216 famílias, em uma área de 46 hectares. O território da comunidade é considerado um geossítio ligado ao valor patrimonial, ecológico, cênico, histórico-cultural e arqueológico.


– Partindo do pressuposto que estamos invisíveis aos olhos da sociedade e da administração pública, nós temos que pensar onde estão bustos e estátuas de ancestrais negros? Vemos de outros povos, mas nenhum cenário que expresse a contribuição desse povo que veio para cá. Enquanto remanescentes de quilombos que somos, destacamos a importância da Unesco, como instituição, por ter esse olhar sob os pontos culturais que existem. Isso está sendo feito hoje com o reconhecimento do Geoparque – reforça Roberto.


A pedagoga e filha de Roberto, Fabiana Leonir Rosa, 41 anos, e o filho Eliézer


Para ele, a validação da Unesco e os projetos desenvolvidos pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) contribuem para aumentar a visibilidade do povo quilombola na busca por políticas públicas mais diversas.


– A visão futura que temos é de melhorias por igualdades de oportunidades. Temos pessoas se formando na universidade e é isso que queremos: o conhecimento. A educação é que vai permitir a oportunidade da pessoa viver uma vida digna. Todos nós somos capazes de nos qualificar, nos formar e ser instrumento pensante no país. Por isso, os geoparques vão abrir uma visão de mundo. É um momento muito promissor para nós – conta o líder da comunidade São Miguel.


Apesar da existência de mais de um século dos quilombos na região, o presidente do Consórcio de Desenvolvimento Sustentável da Quarta Colônia (Condesus) e prefeito de São João do Polêsine, Matione Sonego (MDB), afirma que com a vinda dos avaliadores da Unesco, em 2022, foi quando se teve o resgate dessas comunidades:


– Temos várias comunidades quilombolas organizadas, que há muito tempo fazem trabalhos muito legais. Muitas pessoas da região, realmente, não sabiam disso. E os geoparques são isso, trazer todas as riquezas culturais para o público. O objetivo da Unesco é o resgate da cultura que integra também nossa região, que faziam um trabalho isolado, mas agora é um projeto em conjunto.  


Conforme o prefeito de Restinga Sêca, Paulo Ricardo Salerno (MDB), a relação com as comunidades quilombolas do município é institucional e de parcerias:


– No último mandato fizemos a construção de um posto de saúde em São Miguel, mantemos escolas, então temos uma relação tranquila com eles. O reconhecimento do geoparque muda o perfil da região, no meu ponto de vista, o trabalho do turismo. Nós, moradores da Quarta Colônia, precisamos enxergar nossa região diferente e reconhecer no território a importância de cada população, localidade, que ajudou a formar tudo que nós temos hoje.


Atuação da UFSM

A comunidade Quilombola Rincão dos Martimianos também é descendente de Geraldo de Carvalho. O local surgiu por volta de 1870, também no século 19. Com a chegada de Martimiano Rezende de Souza, que após se casar com Alzira, filha de Geraldo de Carvalho, conseguiu, por meio do trabalho, comprar as terras. A partir dos descendentes de Martimiano, deu-se a formação da comunidade quilombola.


Atualmente, cerca de 58 famílias vivem no local que recebeu a titulação e certificação em 2004. A presidente da Associação da comunidade, Clédis Rezende de Sousa, 54 anos, conta que é o primeiro quilombo rural a ser reconhecido no Rio Grande do Sul. Clédis, que já atuou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do Estado, explica que apesar da comunidade construir projetos e buscar por direitos há muitos anos, o reconhecimento dos geoparques e a atuação da UFSM na comunidade contribui para somar na resistência dessa população.


A vice-presidente da Associação do Rincão dos Martimianos, Teresinha Aparecida Lopes Pain, 58 anos


– Foi uma bênção para nós ter eles como parceiros, para trabalhar nas questões da comunidade. Participamos já dos cursos do Progredir que é projeto da UFSM, junto com o Geoparque Quarta Colônia. Fizemos o Afroturismo, que foi realizado dentro da comunidade – relata Clédis.


A vice-presidente da Associação de Rincão dos Martimianos, Teresinha Aparecida Lopes Pain, conta com sorriso no rosto que já participou de cinco cursos do Progredir. Ela é artesã e já expôs seus produtos em várias feiras, mas sempre com dificuldades de conseguir recursos. Com a parceria da UFSM, o curso de Afroturismo contribui para divulgar o artesanato, culinária e mostrar a cultura da comunidade para outros locais do Estado.


–  Produzimos compotas, bolos, bolachas, temos uma organização ampla. O Geoparque vem para somar cada vez mais na comunidade. Ainda temos que correr atrás dos nossos direitos, assegurados por lei, mas que não são reconhecidos. Ainda temos muito a trabalhar – ressalta Teresinha.    


Pelo curso de Afroturismo, as comunidades vão participar da primeira “Caminhadas da Natureza do Geoparque Quarta Colônia”, em parceria com a Emater e a prefeitura do município. O roteiro percorrerá as comunidades Quilombolas de Restinga Sêca, tendo como tema central “Caminhando com os Quilombolas: história e ancestralidade”. A iniciativa vai ocorrer em 11 de novembro, e começa pela Comunidade de São Miguel.    


O coordenador de Desenvolvimento Regional e Cidadania da Pró-Reitoria de Extensão da UFSM, Victor de Carli Lopes, junto com o professor do Estado Elias Costa, ministrou a primeira edição do curso de Afroturismo na comunidade. O curso foi pensado para trazer mais visibilidade e também gerar renda em torno da cultura e dos saberes da população.


–  Os geoparques trabalham na questão do desenvolvimento socioambiental também. As pessoas precisam ter o desenvolvimento das comunidades locais. Já tínhamos ações de extensões nessas comunidades, mas sempre com dificuldades para encontrar coordenadores, muito se deve pela baixa representatividade de pessoas negras na academia. Por isso, não tínhamos tantas ações nessas áreas, mas por isso a intenção é sempre dar visibilidade da força das comunidades – afirma Victor.


"Ser quilombola é ser um testemunho da presença africana"

Líder da Associação Vovô Geraldo, Roberto Potássio (à partir da esq.); a pedagoga Fabiana Leonir Rosa; o estudante Eliézer de Souza Rosa; a tesoureira da Associação Leci Teresa de Souza Rosa; a dona de casa Lidiane Nathália Rosa Pedroso; o instrutor de capoeira e pedreiro Roberto Juliano da Silva


Próximo à ERS-149 e a Escola Municipal Manuel Albino Carvalho, encontra-se a Comunidade São Miguel dos Carvalhos. As casas de madeira e de alvenaria na estrada de chão abrigam as 216 famílias da comunidade. O verde da natureza é o cenário cotidiano dos moradores. O sustento vem por meio de várias formas, com a produção de milho, feijão, mandioca, cana, o artesanato e pelo acesso à educação. Além disso, a capoeira, o grupo de dança afro Rei Zumbi e a religião de matriz africana são os pilares da comunidade.


A pedagoga Fabiana Leonir Rosa, 41 anos, filha do líder da Associação Vovô Geraldo, é coordenadora e professora do grupo de dança. Ela conta que, atualmente, 18 mulheres participam e dançam ao som do tambor.


– O grupo existe desde 1998. Nos apresentamos em escolas, no município e em cidades vizinhas também. Enquanto Deus me permitir, vou continuar dançando.


O que ele mais gosta é aprender golpes e ginga com o tio, Roberto Juliano da Silva, 43 anos, que é instrutor de capoeira. O líder da Associação, Roberto Potássio, que é membro fundador da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), comenta que a capoeira e a dança para eles são mais que atividades, são corpos em movimento que reclamam por espaço e por visibilidade.



A comunidade de São Miguel vislumbra um futuro com expectativas melhores, em relação às políticas públicas, com o reconhecimento do Geoparque Quarta Colônia. O líder da associação relata que as lutas da comunidade ainda são pelo reconhecimento de oportunidades iguais para a comunidade e a legitimação de todo o território do local, que passaria para 96 hectares.


– Pertencer a uma comunidade quilombola é pertencer a sua cultura religiosa, não é uma cultura sem espaço religioso. Temos a relação com a natureza, as ervas, o acesso ao rio, às águas. Ser quilombola é ser um testemunho da presença africana no desenvolvimento do Brasil – conta Roberto.


"Todos os projetos partem das nossas reivindicações"

A vice-presidente da Associação dos moradores de Rincão dos Martimianos, Teresinha Aparecida Lopes Pain, e a presidente da Associação, Clédis Rezende de Sousa


A pouco mais de 2 quilômetros do monumento da Cruz Luminosa, na ERS-149, está localizado o Rincão dos Martimianos. Como a comunidade de São Miguel, o verde da várzea e do pampa são parte da paisagem do quilombo rural. Logo na entrada do local, encontra-se a igreja e a sede da associação das 58 famílias. A predominância é a religião católica, mas com presença da evangélica e da religião de matriz africana também. O artesanato e a gastronomia típica são o forte da comunidade.


A líder da associação de moradores, Clédis afirma que a comunidade se estende muito além do território, porque algumas pessoas saem para trabalhar ou para estudar, mas não deixam de ser da comunidade quilombola. A amiga de longa data e vice-presidente da associação, Teresinha explica que o início da organização não foi fácil. 


– A associação existe há 13 anos. Conseguimos ampliar nosso trabalho dentro da comunidade, participando de projetos. Agora, temos um trator, um galpão, estamos construindo a pracinha para as crianças, um caminhódromo e uma academia ao ar livre, mas estamos caminhando em busca de mais oportunidades – reforça Teresinha, que é presidente da Federação dos Quilombos do Estado do Rio Grande do Sul.



Ao longo dos anos, a comunidade, por meio de reivindicação de direitos básicos, conquistou o acesso à água potável, à eletricidade, à escola e à saúde. Ainda, precisam de melhorias em relação ao posto de saúde que fica longe da comunidade e também lutam pela legalização de todo o território que ocupam.


A presidente e a vice contam com muito orgulho que conseguiram, por meio de projetos, alfabetizar quase toda a população mais velha da comunidade. As conquistas do Rincão dos Martimianos tomam proporções maiores com o Geoparque Quarta Colônia.


– Todos os projetos partem das nossas reivindicações. O Geoparque contribui para a nossa luta. Neste ano, conseguimos partilhar um estande na Feicoop com as comunidades de Caçapava do Sul. Vimos a importância e visibilidade que tivemos lá dentro. Estávamos com a mesma proporção de visibilidade que a comunidade italiana e alemã – reflete Clédis.


População quilombola segundo dados do Censo 2022

De acordo com os números do levantamento do Censo de 2022, fechados em agosto do ano passado, o país tem 1.327.802 quilombolas em 1.696 municípios. Ao todo, são cerca de 500 mil domicílios onde moram quilombolas. O Rio Grande do Sul ocupa a 13ª posição nacional em números absolutos de quilombolas. Ao todo, o Estado tem 10.880.50 habitantes. Sendo assim, essa população representa apenas 0,16% desse total.


O Estado gaúcho também registra mais quilombolas fora de territórios quilombolas do que dentro: nesses locais, há 2.892 pessoas desta população. Fora, existem 14.604 — ou seja, 83,43% do total. Os dados consideram tanto os territórios oficialmente delimitados (ainda em processo de reconhecimento), quanto os titulados (processo já finalizado).


Conforme o coordenador de subárea do IBGE de Santa Maria, Mário Ávila, o mapeamento das localidades quilombolas foi realizado por uma metodologia desenvolvida em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.


Segundo os dados, dentre os municípios da Quarta Colônia, Restinga Sêca tem dois territórios quilombolas oficiais, São Miguel e Rincão dos Martimianos, tendo a maior população quilombola em território oficial da região. Nos municípios de Ivorá, Agudo, Faxinal do Soturno e Pinhal Grande, não foram identificadas comunidades quilombolas.



Municípios da Quarta Colônia com população quilombola (segundo dados do Censo 2022)

  • Dona Francisca – 267 (fora de territórios quilombolas)
  • Nova Palma – 127 (fora de territórios quilombolas)
  • Restinga Sêca – 756 
  • São João do Polêsine – 17 (fora de territórios quilombolas)
  • Silveira Martins – 1 (fora de territórios quilombolas)

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