O Caso Kiss, que afeta diretamente a vida dos sobreviventes e dos familiares de vítimas da tragédia, bem como dos quatro réus do processo criminal, tem sido amplamente acompanhado pela sociedade e desperta interesse público, mesmo uma década depois. Poucos casos tiveram tamanha repercussão, tendo, inclusive, os julgamentos com transmissão ao vivo pela TV e internet. É que a proporção do incêndio de 27 de janeiro de 2013, que deixou 242 pessoas sem vida e 636 feridas, culminou em um dos maiores processos do judiciário brasileiro, e o julgamento mais longo da história do Rio Grande Sul.
Com a anulação do júri popular, ocorrido em dezembro de 2021, por dois votos a um, pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS), na última quarta-feira, são os rumos que o caso tomará que geram dúvida e apreensão. Com essa nova decisão, a sentença do último júri não é mais válida, e, por isso, os réus, que estavam presos desde dezembro, respondem em liberdade. Operadores do Direito estimam que a marcha processual a caminho de um novo Tribunal do Júri pode passar de dois anos.
Em entrevista à CDN, durante o programa F5, o juiz aposentado Alfeu Bisaque Pereira, que atuou por décadas em Santa Maria, falou que se surpreendeu com o voto dos desembargadores a favor da nulidade do júri. Bisaque considerava razoável não reconhecer a nulidade, mas diminuir as penas. Porém, este não foi o desfecho, e, por isso, ele observa um demorado caminho:
– Se todos os recursos prometidos forem interpostos, não será julgado em menos de dois anos. Um novo júri também estaria sujeito a recurso e nulidade. Então, esse processo vai muito longe ainda. Como eu disse ainda lá no começo, estão enganando as pessoas dizendo que será rápido o julgamento, que as famílias receberão mais de R$ 1 milhão de indenização e que os réus receberão 500 anos de cadeia. Nada disso aconteceu, o processo é demorado e tem que obedecer a lei. E a lei não dá vazão a isso.
Marcelo Peruchin, advogado especialista em Ciências Criminais e pós-doutor em Direito Penal que atua na Capital, diz que o novo júri depende do trânsito em julgado dos recursos que serão ajuízados para Brasília: o especial ao STJ e o extraordinário ao STF. Peruchin cogita que pode levar, em média, de seis meses a um ano, no mínimo.
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Petição ao STF
O Ministério Público encaminhou, na noite de quarta-feira, uma petição ao ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), solicitando a revogação da soltura dos quatro réus condenados em dezembro de 2021. De acordo com o procurador-geral de Justiça, Marcelo Dornelles, que assina o expediente, a intenção é fazer valer a decisão do ministro proferida em dezembro de 2021, logo após a conclusão do júri.
– Estamos recorrendo ao STF porque acreditamos que houve descumprimento de uma regra constitucional, utilizando, na argumentação, o que disse o próprio ministro em decisão que manteve presos os quatro réus, ou seja, que a prisão deve ser mantida até o trânsito em julgado, ou até decisão contrária do Supremo Tribunal Federal – explica o procurador-geral.
Segundo o Ministério Público, acolhida textualmente pelo presidente do STF, a soltura dos réus pode representar “abalo à confiança da população nas instituições públicas”, bem como ao “necessário senso coletivo de cumprimento da lei e de ordenação social”.
Também à CDN, o professor de Direito da Faculdade Palotina (Fapas) Guilherme Pittaluga Hoffmeister comentou o petição do MP:
– Eu acredito que é um expediente quase que anti-democrático, porque atropela todo o rito processual jurídico do processo mediante um instrumento político que recorre a uma pessoa, que tem o poder de mudar tudo que foi decidido. Esse é um ponto. Outro é que o MP sustenta que o pedido se justifica na medida em que há uma grave ameaça à ordem pública e à segurança, no sentido de que há um possível abalo na confiança da população nas instituições públicas. Estes são argumentos que beiram uma noção de opinião pública, ancorado em clamor social, que é legítimo que a população tenha, mas que não é legítimo que o Poder Judiciário se valha apenas disso para alterar decisões judiciais amparadas na lei.
Anulação
O professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e professor de Mestrado do Instituto de Direito Penal (IDP) em Brasília, Alexandre Wunderlich, é enfático:
– Todo erro tem uma consequência jurídica, e o Tribunal reconheceu uma série de erros. O TJ, por maioria, fez justiça, de forma técnica e na linha da lei. O Ministério Público errou desde o início do processo, fez um acusação errada e pagou um alto preço: a anulação do julgamento. Lamentável, os agentes do MP deveriam ser responsabilizados por essa gestão processual totalmente equivocada. O juiz errou nos quesitos, errou em fazer reunião com jurados sem defesa e acusação, agora pagou o preço. Fica o recado aos operadores do Direito: façam a coisa certa, cumpram a lei – destacou Wunderlich.
Por WhatsApp, o juiz Orlando Faccini Neto, que presidiu o Tribunal do Júri entre 1º e 10 de dezembro de 2021, limitou-se a responder acerca da anulação da 1ª Câmara Criminal:
– Não posso, não quero e não devo falar.
Com o júri anulado, em qual prazo deve ser marcado um novo julgamento?
O agendamento do novo júri vai depender do prazo que os recursos a serem interpostos vão tramitar. Isso porque o novo júri depende do trânsito em julgado dos recursos que serão ajuízado para Brasília: o especial ao STJ e o extraordinário ao STF. Caso transite em julgado a decisão da anulação, o processo será baixado para que o juiz marque uma nova data. Não há, conforme especialistas, como prever um tempo exato. Peruchin cogita que, em média, pode levar de seis meses a um ano, no mínimo. Bisaque fala no prazo de dois anos.
Os réus podem voltar a ser presos?
Sim, pois o MP ajuizou a petição junto à Presidência do Supremo. Em até 48 horas, essa decisão deve ser emitida, conforme Peruchin.
Há risco de prescrição?
Em princípio, no cenário da condenção por homicídio doloso, a prescrição é de difícil ocorrência, pois o prazo prescricional é de 20 anos. Na hipótese de ocorrer um novo julgamento, e, se houver o afastamento do dolo eventual pelo júri, o que é uma possibilidade, aí, sim, o cenário da prescrição pode ser possível. O critério de cálculo de prescrição no Brasil é a pena máxima do crime ou, no caso de condenação, a pena aplicada.
Os réus podem ser indenizados pelo Estado após a anulação do júri?
No país, em casos como esse, apesar de possível, é difícil o cenário indenizatório, diz Peruchin.
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