patrimônio perdido

Apenas cinco de 14 bustos resistiram à criminalidade na região central de Santa Maria

Apenas cinco de 14 bustos resistiram à criminalidade na região central de Santa Maria

Foto: Eduardo Ramos (Diário)

“Cada um que morre, vamos morrendo juntos e, cada um que some, também vamos sumindo juntos”. As palavras do pesquisador Marco Aurélio Biermann Pinto definem o que Santa Maria vem presenciando com mais intensidade nas últimas semanas com o desaparecimento de bustos de figuras históricas. Na verdade, não se sabe quando começaram os furtos dos monumentos, que aconteceram, justamente, diante da falta de olhar de todos para a própria cidade.

O Diário percorreu cinco espaços públicos para verificar a condição dessas estruturas. Dentre as 14 encontradas, cinco ainda tem o busto e apenas uma está com a placa de identificação. Nos locais, restam pilares quebrados, pichações, pinturas descascadas e pedestais vazios. Diante desse cenário, o “museu à céu aberto” presente na Praça Saldanha Marinho e na Avenida Rio Branco, conforme define o historiador José Francisco Alves, agora, deve ficar restrito apenas à memória dos santa-marienses.

Essa pauta, que já foi acompanhada pelo Diário em anos anteriores, voltou para o debate após o furto de três bustos da Praça Saldanha Marinho no mês de abril: do poeta Felippe D’Oliveira, do fundador da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mariano da Rocha, e do ator Leopoldo Fróes. A falta destes monumentos foi sentida poucos dias antes do início da Feira do Livro, no dia 28 de abril. Desde então, o acontecimento está sendo investigado e, de acordo com o delegado Carlos Alberto Gonçalves, da 1ª Delegacia de Polícia (DP), um suspeito é apontado como o autor dos três furtos.

O que poucos sabiam, porém, é que não eram somente esses três bustos que não estavam em seu local de origem. Assim como na Praça Saldanha Marinho, também tem obras de arte e placas de identificação faltando na Avenida Rio Branco, na Praça dos Bombeiros, na Praça General Osório (Praça do Mallet) e no Largo da Locomotiva. Em todos esses locais, existem câmeras de segurança.

Questionada, a prefeitura não informou o paradeiro nem o status de investigação das demais peças. O Executivo revelou que está trabalhando em um levantamento dessas obras. Contudo, ainda no ano de 1990 foi criada uma lei municipal para garantir o cadastramento e a conservação de monumentos históricos de Santa Maria (Lei nº 3.240/1990).

“O que vai ser de nós sem cultura?", questiona conselheiro municipal

Dentre as funções do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Santa Maria (Comphic), a principal tarefa, como o próprio nome diz, é cuidar do patrimônio histórico e cultural tombado da cidade. Como os bustos não são tombados, o Comphic não consegue nem tem competência para atuar na manutenção e preservação destes monumentos, como explica um dos conselheiros, Yann Ziegler:

- (Sobre os bustos) Podemos emitir apenas parecer, até porque não temos ingerência sobre a administração, não podemos determinar o que a prefeitura deve fazer com relação aos bustos. O busto é uma obra de arte, mas está colocado em praça pública e não é tombado, então, fica difícil dizermos o que pode ser feito para protegê-lo.

Ainda conforme o conselheiro, quem pode e, deve, gerenciar corte de grama, limpeza, polimento e manutenção dos bustos é a prefeitura.

- Quanto ao abandono e desleixo, isso vai muito do interesse da administração pública. Em todos esses 30 anos de trabalho da Associação dos Artistas Plásticos, ouvimos promessas de apoio e ajuda em discursos maravilhosos, só que na concretização nada acontece em tudo que diz respeito à cultura, infelizmente. Se é tombado, estamos atentos mas, se não é, estamos com as mãos amarradas - destaca Ziegler.

Ziegler, que representa a Associação dos Artistas Plásticos de Santa Maria, uma das várias entidades culturais que têm papel dentro do Comphic, afirma que os últimos furtos são preocupantes. Ele reitera que é importante o setor de segurança criar estratégias para evitar que os desaparecimentos aconteçam, sendo o videomonitoramento um exemplo. Isso já é uma realidade em Santa Maria. Todos os locais que passaram pelo levantamento do Diário tem câmeras de segurança.

No espaço em que estava o busto de Antônio da Fontoura Ilha, por exemplo, na Avenida Rio Branco, os taxistas que trabalham nas proximidades afirmaram que os furtos começaram ainda antes.

- Primeiro, levaram nossas duas câmeras da casinha. Na noite seguinte, derrubaram o pedestal e levaram o busto. Ninguém veio aqui (verificar isso). As placas já tinham sido levadas há muito tempo. Isso é preocupante porque vão apagando a história de Santa Maria - lamenta o taxista Valmir Martins de Oliveira, 62 anos.

No Comphic, segundo o conselheiro Yann, a pauta do desaparecimento dos bustos deve ser debatida na próxima reunião, marcada para a próxima semana. O questionamento do representante que fica para o poder público e para a sociedade é como será o futuro em uma cidade que depreda os monumentos históricos e culturais:

- É uma grande perda para a cidade, aqueles bustos são de pessoas que tiveram importância para a nossa coletividade. É uma forma de serem sempre lembradas por essas homenagens. Além disso, também são obras de arte. Isso preocupa muito porque no momento em que está sendo dilapidada nossa cultura, o que vai ser de nós no futuro sem a cultura? Precisamos de medidas urgentes, mas nós do Comphic não temos condições para isso - reforça Ziegler.

A invisibilidade dos bustos históricos

Lacunas e dúvidas são o que devem permanecer após um breve passeio pelo Centro Histórico de Santa Maria. Isso porque, não somente os bustos, mas os monumentos estão depredados e sobraram poucas placas de identificação das peças expostas nos espaços públicos.

No levantamento feito pelo Diário, foi possível observar que a Praça Saldanha Marinho e a Avenida Rio Branco concentram a maioria dos bustos da cidade. O historiador e Doutor em História da Arte, José Francisco Alves, comenta que Santa Maria tinha o privilégio de ter um “museu à céu aberto” diante do amplo número de monumentos instalados com proximidade em um local central.

Na Saldanha Marinho, dos seis que deveriam estar posicionados nos pilares, restou apenas um, do General José de San Martín, com pintura deteriorada e sem as placas. Já na Avenida Rio Branco, ainda existem dois. Um deles, do Coronel João Niederauer Sobrinho, é o único que está completo, ou seja, tem o busto, a placa de identificação e o pilar em bom estado.

- Teve uma comissão que angariou fundos para a construção da erma ao Coronel Niederauer, ou seja, os santa-marienses da época se juntaram e criaram condições para que aquilo saísse. Foram famílias de santa-marienses que permitiram isso estar aí, que estavam preocupados em homenagear as pessoas que julgavam importantes - esclarece Marco Aurélio Biermann Pinto, pesquisador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.

O outro busto que se manteve no Rio Branco foi o do Barão de Mauá, uma obra doada para Santa Maria pelo irmão do poeta Felippe D’Oliveira, João Daudt de Oliveira. Apesar da estrutura estar conservada, a placa foi levada.

Em outra área verde, na Praça do Mallet, o que já tinha chamado a atenção em 2018 era o busto de Cezimbra Jacques, que teve a cabeça retirada do restante da estrutura. Agora, quem passa por lá, consegue ver apenas uma pedra em mármore vazia no lugar do patrono do tradicionalismo gaúcho.

Esses são exemplos de acontecimentos que vêm se repetindo e se intensificando em Santa Maria. Segundo Biermann Pinto, é como se os moradores não possuíssem nenhum vínculo com essas obras, que contam a história do município:

- É uma perda para as pessoas que têm interesse na cultura e na história da cidade, é uma perda para o patrimônio do município, nós não teremos aquelas mesmas obras novamente. Cada um que morre, vamos morrendo junto e, cada um que some, também vamos sumindo junto. Não são todas as cidades que têm um conjunto de artistas em um mesmo espaço (como a Praça Saldanha Marinho). É uma lástima que esses vínculos com o passado vão sumindo e as pessoas vão perdendo a referência de quem foram esses moradores ilustres de uma cidade - detalha Biermann Pinto.

O historiador José Francisco Alves compartilha a mesma posição. Ele, que pesquisa e acompanha a condição dos monumentos, especialmente, em Porto Alegre, conta que Santa Maria não representa um exemplo pontual, mas que as práticas de descaso e indiferença com as estruturas são recorrentes em todo país e até na América Latina:

- A destruição em grande escala é recente. Historicamente, os monumentos nunca foram cuidados no Brasil e nem na América Latina, mas isso nunca foi motivo para que se roubasse tudo. O espaço urbano se tornou abandonado por todos, pelo povo e pelo reflexo do povo, que são os nossos governantes. As prefeituras municipais que cuidam da nossa casa, que são responsáveis pelo lugar que moramos, deixaram de fazer muito. A única cidade que tem um departamento para isso é o Rio de Janeiro. De modo geral, não há um acompanhamento por parte das prefeituras nem por parte da sociedade. Os organismos que colocaram o monumento também esquecem - comenta Alves.

Para o historiador, esse contexto de abandono que está em curso estimula a perda de autoestima, dos valores e da memória. O resultado é só um: “tudo que fazemos no presente podemos ter certeza que no futuro vai ser esquecido também”. Conforme Alves, ao mesmo tempo em que há uma degradação, muito ativa recentemente, existe como resposta uma inação passiva oriunda tanto de um problema educacional, da sociedade, quanto administrativa, do poder público.

- Não são só os monumentos que sofrem isso. O problema dos monumentos é que são bens infungíveis, ou seja, não tem substituto. De modo geral, quebram e arrasam tudo que se tem no espaço público, paradas de ônibus, tampas de bueiros, iluminação, mas isso tudo tem substituto, agora, as obras de arte, a história não tem. Dois fenômenos contribuem para isso: o roubo do metal para o comércio derreter e o vandalismo fortuito. Pessoas infelizes picham, quebram. Os monumentos estão parados, indefesos e sempre são alvos dessa insatisfação, social ou pessoal. Juntou o vandalismo com o roubo e resultou nesse caos todo - avalia.

A esperança que resta, assim como os monumentos, é pouca. A sugestão dos especialistas é que se invista no desenvolvimento do vínculo e da sensação de pertencimento da população com a história da cidade, sendo o poder público um dos principais atores fomentadores dessas ações:

- Falta educação patrimonial, não temos o costume de saber quem são, não tem passeios explicativos, o turismo cultural, a visibilidade desses monumentos, o cuidado. Embora estejam em espaço público, eles não são visíveis, há uma invisibilidade desses monumentos e isso é que os transforma em coisa qualquer. Talvez se tivéssemos fomento, à compreensão do personagem, do escultor. Tendo um cuidado maior, sendo inserido em uma cadeia de economia de cultura talvez demorasse um pouco mais para desaparecerem - conclui Biermann Pinto.

O que diz a prefeitura sobre o sumiço dos bustos

Diante dos casos que se acumulam na cidade, a prefeitura de Santa Maria afirmou que fará um levantamento da situação de bustos e monumentos para proceder nas intervenções necessárias. Conforme a secretária de Cultura, Rose Carneiro, mesmo com o monitoramento eletrônico e o serviço de Guarda Municipal, houve danificação, furto e depredação destes patrimônios. Ela reforça que, junto aos órgãos competentes, tem sempre realizado esforços para recuperar os materiais.

- Entendemos que há um cenário de criminalidade e que esses bustos e monumentos são de interesse em função da composição: ferro e bronze. No caso mais recente, o do escritor Felipe D'Oliveira, estamos com investigações avançadas e a pessoa que retirou o busto do local já foi encontrada e está sendo investigado o caminho até a possível localização do busto. A comunidade pode ajudar, denunciando caso presencie um ato de vandalismo, caso saiba de repasses de materiais históricos. Queremos contar com o apoio de todos - destacou a secretária.

Rose Carneiro afirmou que, enquanto membro da Secretaria de Cultura, lamenta pelas perdas:

- Sabemos que estátuas e bustos roubados não podem ter réplicas. As réplicas se dão somente quando o artista está junto à obra original. Então, são perdas e não teremos como recuperar essa história para Santa Maria.

Praça Saldanha Marinho

Felippe D’Oliveira: homenagem ao poeta santa-mariense, obra doada pela Sociedade Felippe D’Oliveira, do Rio de Janeiro, inaugurada em 1935, feita em bronze pelo escultor ítalo brasileiro Victor Brecheret. Condição atual: sem busto, furtado em abril de 2023

José Mariano da Rocha Filho: homenagem ao fundador e 1º reitor da UFSM, inaugurado em 1999, placa feita em bronze. Condição atual: sem busto e sem placa, furtado em abril de 2023

Leopoldo Fróes: homenagem ao ator, compositor, letrista e cantor brasileiro, obra em bronze oferecida pela Escola de Teatro Leopoldo Fróes à Santa Maria, inaugurada em 1958. Condição atual: sem busto sem placas (furtados em abril de 2023) e sem assinatura (desde, pelo menos, 2017)

José Artigas: general conhecido como “protetor dos povos livres", busto em bronze oferecido à Santa Maria pelo Uruguai, inaugurado em 1986. Condição atual: sem busto e sem placa. O último registro feito pelo Diário da Praça Saldanha Marinho que o busto ainda aparece foi em dezembro de 2022

José de San Martín: homenagem ao general argentino, obra oferecida pelo Núcleo de Integração Brasil-Argentina (NIBA) à Santa Maria. Condição atual: com busto (deteriorado) e sem placas

Serafim Valandro: homenagem oferecida pela Associação Comercial de Santa Maria, busto em bronze, inaugurado em 1935. Condição atual: sem busto, sem placas, pilar quebrado, parte da estrutura está caída. O último registro feito pelo Diário da Praça Saldanha Marinho que o busto ainda aparece foi em janeiro de 2023

Avenida Rio Branco

João Niederauer Sobrinho: homenagem do Exército ao coronel, busto em bronze feito pelo escultor português, Rodolfo Pinto do Couto, inaugurado em 1922. Condição atual: com busto conservado e com identificação

Foto: Eduardo Ramos (Diário)

Margarida Lopes: homenagem à educadora, busto em bronze. Condição atual: sem busto e sem placa

Irineu Evangelista de Souza (Barão de Mauá): homenagem ao Barão de Mauá, que atuou na industrialização do país, feito pelo escultor Rodolfo Bernardelli, inaugurado em 1946. Condição atual: com busto conservado, estrutura tem apenas uma frase rabiscada e uma parte está danificada, sem placa

Foto: Eduardo Ramos (Diário)

Antônio da Fontoura Ilha: homenagem pelo pioneirismo no ensino comercial na cidade, busto em bronze, inaugurado em 1963. Condição atual: sem busto, pilar quebrado, estrutura caída e sem placa

Praça dos Bombeiros

John Wesley: homenagem ao fundador do movimento metodista, inaugurado em 2003. Em 2006, o Diário noticiou pichações no busto. Condição atual: com busto (deteriorado), sem placa e pilar pichado

Foto: Eduardo Ramos (Diário)

Praça do Mallet

Manuel Luís Osório: homenagem ao General Osório. Condição atual: com busto conservado e sem placas

Foto: Eduardo Ramos (Diário)

Cezimbra Jacques: homenagem ao patrono do tradicionalismo no Rio Grande do Sul, inaugurado em 2002. Em 2018, o Diário noticiou que haviam retirado a cabeça do busto. Condição atual: sem busto e sem placa

Largo da Locomotiva

Getúlio Vargas: homenagem ao ex-presidente da República, inaugurado em 2000. Condição atual: sem busto e sem placa

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