Tenho buscado válvulas para escapar à pressão que temos vivido, especialmente nos últimos dias, às portas de um segundo turno em nível estadual e nacional nas eleições. Eu, que já venho há meses numa jornada de autoconhecimento por meio de leituras e exercícios simples de mindfullness, me peguei maratonando Autoconsciente podcast, de Regina Gianetti, um dos que mais tenho escutado nos últimos tempos. De modo geral, mindfullness está relacionado ao desenvolvimento de nossa atenção total ao aqui e ao agora. Sentir o ciclo completo da respiração e desenvolver a consciência corporal da cabeça aos pés são as práticas que mais realizo. Isto tem me poupado um pouco do peso do ontem e da ansiedade pelo amanhã; tem sido o modo mais direto para compreender que tudo o que tenho é o agora.
Pois foi ouvindo um episódio especial de Autoconsciente, Conversando sobre bem-estar, que fiz uma conexão quase involuntária entre as práticas em discussão no episódio e discursos sociais que têm sido bastante explorados ultimamente. Explico: a parte mais conhecida destes discursos tem citado bastante o primeiro dos dez Mandamentos do Evangelho, cuja ideia central é a de que deve-se amar a Deus sobre todas as coisas. Em Mateus, Jesus inclusive une esta a outra ideia – a de que devemos amar ao próximo como a nós mesmos. Ora, essa ideia nada tem de nova para mim. Inclusive, há muitos anos, desde a Crisma – um dos sacramentos pelos quais os cristãos católicos passam – ela passava a me colocar em um dilema. É que eu havia chegado à conclusão de que não conseguia e que provavelmente dificilmente conseguiria amar ao próximo – ou, melhor, a todo e qualquer próximo – como a mim mesma. Claro, havia próximos aos quais eu já dedicava amor neste grau e este grupo, felizmente, aumentou um tanto. Mas amar a todo e qualquer um, eu sabia que não conseguiria, impossível! O ânimo piorou quando, em João, eu entendi que não adiantaria reafirmar amor a Deus, caso odiasse um irmão. A lógica desta passagem da Bíblia é a de que, se eu não amasse alguém que vejo – o irmão – menos ainda amaria sinceramente a quem não vejo, Deus. Sentindo-me a última das criaturas – e a esta altura tendo desistido de dedicar minha vida totalmente à religião – lembro bem que pensei naqueles tempos adolescentes: “mas será que respeitar o próximo já não é suficiente? Acho que não estou tão mal assim”.
Pois não é que, a certa altura, o tal episódio de Autoconsciente me apresenta a fala de Márcia de Luca, estudiosa de Yoga, meditação e Ayurveda – medicina alternativa indiana – há mais de 40 anos? Márcia esclarece que, para nós, ocidentais, que vivemos em ritmo acelerado, ansiosos, mergulhados em estresses sem fim, a prática da Yoga, cujo princípio é esvaziar a mente, pode ser algo inalcançável, ao menos em um primeiro momento. Para começar, ela indica justamente a prática do mindfullness. Afinal, tornarmo-nos conscientes de o que se passa no aqui/agora realmente parece ser um primeiro passo para, mais tarde, limpar a casa. “Casa” entendida aqui como “mente”. Márcia não poderia e talvez nunca vá imaginar, mas libertou-me de cerca de 25 anos da angústia com o inalcançável amor ao próximo. É que, por analogia, eu cheguei a uma nova conclusão na vida, que substitui aquela anterior, tão carregada de senso de dever. Era a resposta que eu precisava (ou que, na realidade, por querer muito, acabei encarando como dada): eu posso não amar ao próximo como a mim mesma, mas um bom começo para isto é, mesmo, respeitá-lo. Não há amor sem respeito, afinal! Bingo! Em um episódio, o equivalente a anos de terapia!
Ao voltar o raciocínio para o mundo lá fora, um mundo bem próximo, diga-se de passagem, arrisco dizer que a relação expectativa X realidade pode ser bem mais grave do que a expressa por esses meus dilemas ou, creio, pelos dilemas da maioria das pessoas. É que se respeito ainda não é amor ao próximo, imaginemos quão longe desse amor deve estar quem comete racismo ou quem diz que jovens deveriam ser queimados vivos…
Quanto ao primeiro caso, refiro-me ao ataque racista de que o cantor Seu Jorge foi vítima no Grêmio Náutico União, em Porto Alegre, na noite de domingo (14/10). Em meio a imitações de sons de macaco, o cantor foi chamado de “negro safado” e de “vagabundo”. E há quem tenha inclusive tentado justificar a agressão sob pretexto de que Seu Jorge teria manifestado preferência político-partidária, o que iria contra cláusulas do contrato que teria assinado. Ora, ainda que isto tenha ou tivesse ocorrido, nada justifica racismo. Quanto ao segundo caso, refiro-me à fala do deputado federal não-reeleito Bibo Nunes, publicada no dia 09/10. No vídeo, ele insinua que estudantes da UFSM deveriam ser queimados vivos após se manifestarem contra corte de verbas. Em ambos os casos, desrespeito sem tamanho. Sobre o caso do ataque a Seu Jorge, paira uma dívida histórica para com as pessoas negras no último país do Ocidente a abolir a escravidão. No caso da fala do deputado, o remexer da ferida de uma cidade que sofre de dor e saudade há quase dez anos. Como o deputado inclusive deve saber muito bem, justamente aqui, o incêndio da boate Kiss vitimou 242 pessoas, cerca de metade delas universitários.
Amar ao próximo como a si próprio pode ser algo distante para muitos, talvez para a maioria, mas respeitar o próximo já nos coloca pelo menos na direção. Triste mesmo é a condição de quem sequer é capaz de respeitar o próximo. Quando chegará, então, a amá-lo?