Conheça Maria Rita Py Dutra, uma das homenageadas do 1° Prêmio Ana Primavesi

Foto: Beto Albert (Diário)

Pensar em um futuro melhor envolve ações e ideias de homens e mulheres de todas as classes, etnias e gerações. Neste processo, profissionais e trajetórias trilhadas nas áreas de pesquisa, ensino e extensão se destacam.

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Na busca por reconhecer o papel feminino neste cenário, surge o 1º Prêmio Ana Primavesi. Idealizado pelo Grupo Diário, a iniciativa homenageará profissionais de Santa Maria e região em uma cerimônia no dia 31 de julho, no Theatro Treze de Maio. Nesta reportagem, conheça a história da alfabetizadora, escritora e doutora em Educação, Maria Rita Py Dutra.

Família

Filha do mensageiro Albertino Py e da lavadeira Lucília de Lima Py, Maria Rita Py Dutra nasceu oficialmente em 20 de abril de 1948, em Santa Maria. Entretanto, segundo ela, a data teria sofrido alterações na documentação devido às leis da época:

– Naquela época, os responsáveis tinham um prazo para registrar os recém-nascidos. Caso atrasassem, era cobrada uma multa. Para fugir da multa, meu pai registrou as gêmeas no dia 30 de maio, como se tivéssemos nascido no dia 20 de maio.

Sobre a infância e adolescência, Maria Rita guarda histórias sobre brincadeiras, travessuras, aprendizados e momentos de superação, sendo que muitas já foram contadas em livros.

Nas lembranças da minha infância, eu nunca estou sozinha. Estou sempre com a minha irmã-gêmea, Maria das Graças. Apesar de sermos muito diferentes, nos dávamos muito bem. Uma das lembranças que eu tenho era fazer papel de malabarista. Naquela época, início dos anos 1950, perto do Esportivo, tinha dois campos imensos e sempre paravam burlantins, parques e circos. Nós, geralmente, íamos assistir. No dia seguinte, fazíamos a "reprise" em casa e sempre dava problema – relembra ela, rindo.

As memórias sobre os pais são ligadas ao amor e cuidado. Maria Rita e Maria das Graças nasceram após sete tentativas de Lucília de engravidar e manter a gestação. Por conta disso, as irmãs receberam um apelido, que também viria a fortalecer a autoestima das meninas negras.

Fomos criadas com muita beleza.A mãe e o pai sempre nos chamávamos de jóias preciosas. Lembro quando a mãe estava morrendo no hospital. Quando abriu os olhos, eu disse: “Dona Lucília, a senhora teve filhos?” Em um minuto de lucidez, ela disse: “Tive duas jóias preciosas que Deus me deu”. Então, esse conceito de joias sempre foi nosso – conta Maria Rita.

Ainda jovem, ela conheceu o policial civil Paulo Ênio Dutra, com quem viria a casar em 1972.

Conheci o Paulo entre 1962 e 1963 em um encontro de jovens espíritas, que aconteceu em Santa Maria. Naquela época, ocorriam encontros anuais, em que discutíamos temas previamente escolhidos pelos participantes. O grupo escolhia o tema e produzia uma "tese", que era defendida durante o encontro, denominado de “Confraternização da Juventude Espírita do Rio Grande do Sul”. Casei no dia 30 de dezembro de 1972. Eu permaneci casada por pouco mais de 14 anos, quando meu marido foi assassinado, em 30 de abril de 1986.

Desta união, nasceram as filhas, Tatiana Karina e Patrícia Rosane, hoje com 49 e 44 anos, respectivamente. Maria Rita também tem um neto: Júnior, de 26 anos.

Maria Rita com as filhas Tatiana (à esq.) e Patrícia

Amor pelo ensino

O amor pelo ensino nutrido por Maria Rita vem da infância. Assim como muitos núcleos familiares negros da época, a família Py se dedicava ao trabalho, lutando por uma vida digna. Ainda criança, Maria Rita auxiliava a mãe no trabalho de lavadeira. Entre pilhas de lençóis e roupas, um episódio de racismo a fez tomar uma decisão:

– Ajudávamos a carregar as tais trouxas de roupas. Cada uma levava um pouco de roupa quando se devolvia para a casa da patroa. Morávamos perto da Casa de Saúde. Passávamos pela Rua 7 e a Avenida Rio Branco para chegar ao centro da cidade. Quando chegamos nessa residência, tinha uma senhora muito querida, mas que era muito nervosa. Mal chegamos, e ela perguntou pelo lençol canarinho. A mãe disse que não tinha. Como eu já escrevia, fazia a relação das peças, citando tantos lençóis brancos, de casal, etc. Então, eu sabia que não tinha. Aquela mulher maltratou muito a mãe. Humilhou-a, por causa do tal lençol, e a mãe começou a chorar. Quando saímos dali, ainda na rua, eu disse para a minha mãe: “Não vou ser lavadeira como a senhora. Eu vou ser professora”. Ela me abraçou, me beijou, passou a mão na minha cabeça e disse: “Eu vou pegar mais lavado para te ajudar a ser professora” e eu fiquei sem reação. Eu sempre digo que essa história foi a mola propulsora que me levou a tomar muito cedo uma decisão profissional.

Sonhando com o futuro, Maria Rita começou a realizar pequenas ações ligadas à educação ainda na adolescência:

Com 12 anos, eu fui trabalhar na Vila da Lata. Nos sábados ou domingos, eu dava aulas para as crianças. Eu já tinha aptidão para fazer joguinhos, brinquedinhos. Nós recebemos um material de como fazer dobraduras, e eu fui aprendendo. Com 15 anos, eu fui para o Instituto de Educação Olavo Bilac. Ali, eram 3 anos e 6 meses, sendo 6 meses de estágio. Mas acho que no 2º ano, nós já éramos estimulados a ir às salas de aulas, fazer visitas e nos acostumarmos com as crianças. Quando eu fui para o estágio, já tinha um bom preparo e uma boa identificação, porque era aquilo que eu queria. Eu sou apaixonada. Você ver uma criança excluída, em situação de vulnerabilidade social, adquirir a lectoescrita é uma emoção muito grande.

Em 1969, Maria Rita ingressou no curso de Química na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), porém não concluiu o curso. Acompanhando o marido, mudou-se de Santa Maria para outros municípios gaúchos, chegando a morar em Porto Alegre. Em 1975, ela iniciou os estudos no curso de Pedagogia e Supervisão Escolar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Após a graduação em 1979, tornou-se especialista em Supervisão Escolar pela Faculdade Porto-Alegrense. Enquanto professora, Maria Rita dedicou 30 anos da carreira ao Ensino Fundamental.

Pesquisas

Por volta de 2000, a professora vivenciou mais um momento marcante, desta vez, envolvendo o neto. Na escola – espaço de apreço para Maria Rita – Júnior foi vítima de racismo. A situação serviu de inspiração para o livro de estreia da pedagoga na literatura infantil: “Os problemas de Júnior”. A obra foi lançada em 13 de maio de 2003 e é considerada uma referência para profissionais na luta antirracista.

– Essa é uma questão muito séria. Desde a Educação Infantil, a criança que vem de família afro-brasileira precisa se enxergar na história. Precisa construir a própria identidade. Hoje, ela pode se enxergar na professora com cabelo parecido, com o nariz parecido. É um espelho. Ela vai se enxergando e vai se gostando. A construção da identidade é um trabalho muito específico e que requer estudo. Na Universidade de Santa Maria, por exemplo, os estudantes estão entrando pelas cotas e temos pessoas adultas que, depois que concluem o curso, vão entender o que é ser negro. Isso acontece porque você precisa se identificar com a negritude. Encontrar pontos positivos para querer ser. Mas, o que dizem de nós negros na educação? O que a história conta do nosso povo? Ela não conta. E se conta é apenas a escravidão, que os negros atravessaram o Atlântico em navios negreiros. Você vai se orgulhar de ser descendente de um escravizado? Tem que trabalhar muito a mente. A história que devemos contar é que fizemos a travessia forçada na época das grandes navegações, da exploração e começo do Capitalismo. Que a Europa ou o colonizador nos explorou. Hoje, temos que entender que foi o nosso povo que construiu esse país. Então, não podemos mais aguentar relatos de discurso racista e do genocídio de crianças negras. Deu. Chega. Essa precisa ser uma bandeira de todos os brasileiros – afirma a ativista.

Participação de Maria Rita na Hora do Conto da Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi em novembro de 2023

Na busca por desenvolver pesquisas sobre o tema, Maria Rita ingressou também no mestrado em Ciência Sociais da UFSM em 2010. Durante a formação, resolveu mapear a presença de profissionais negros nas instituições de ensino:

Os quesitos raça e cor precisam estar em tudo, porque são eles que indicam a necessidade ou não de políticas públicas para aquela comunidade nas áreas de saúde, educação ou trabalho. No município, eu tentei entrevistar professores e professoras negras para o meu mestrado, mas não tinha dados. Em determinado momento, alguém me disse: “Olha na escola tal, que tem uma professora”. Fui lá e falei com uma professora maravilhosa. Depois, ela me indicou uma escola estadual que tinha outra professora. Isso tudo em 2010. No ano passado, uma moça do Pará, que mora aqui em Santa Maria, também tentou pesquisar sobre professoras negras e não conseguiu os números. Então, ainda há dificuldade em sabermos onde estão essas pessoas. Nós precisamos saber quem são e quantas são as professoras negras que trabalham nos anos iniciais e nos anos finais em Santa Maria. A mesma coisa na Universidade.

Dentro da instituição, a pesquisadora também buscou dialogar sobre a importância das cotas raciais, a permanência na instituição e o futuros dos jovens negros. Os esforços resultaram na criação, em agosto de 2011, do Grupo de Trabalho (GT) Negros, vinculado ao Núcleo de Estudos Contemporâneos da UFSM (Necon).
– Nós, do GT negros, produzimos uma oficina que chamo de oficina de estereótipos raciais. Nela, tentamos detectar onde se guarda o racismo. É um estudo que deverá ser feito por estudantes brancos, porque se eu, mulher negra, for fazer esse trabalho de associação de ideias na frente da turma e perguntar: “o que é preto?”, o estudante poderá ficar, de certa forma, com medo de me ofender ou com receio de me magoar. Por isso, considero ser uma oficina ideal a ser trabalhada pela branquitude. Nós precisamos enfrentar o racismo juntos. Racismo é crime. Para mim, isso é muito tranquilo. Tem que buscar a lei, mas é preciso efetividade no cumprimento – reforça a pesquisadora.

Três anos depois, Maria Rita iniciou um doutorado em Educação na UFSM, e a tese da pesquisa refletia mais uma preocupação da ativista: a relação dos cotistas com o mundo do trabalho. O doutorado foi concluído em 2018, sendo divulgado por grupos e movimentos raciais.

Registro de uma das reuniões do GT Negros/Necon, do qual Maria Rita foi coordenadora

Prêmios

Nas trajetórias acadêmica e literária, Maria Rita acumula títulos e conquistas. Em 2018, ela foi eleita patronesse do Mês da Consciência Negra da UFSM, subindo ao palco ao lado de diversos ativistas de Santa Maria e região. Para a escritora, a indicação ao Prêmio Ana Primavesi é um estímulo para continuar lutando.

Eu fiquei muito feliz. Com humildade, eu recebo e partilho com todos esse prêmio, porque entendo que esse reconhecimento deve servir de estímulo para quem está vindo. Tem muita gente pensando que não pode fazer a diferença, mas pode e tem que fazer, sim. Fiquei feliz também com todas as mensagens de amigas e pessoas conhecidas que recebi, porque foram muitas. Para mim, o prêmio chega como um “você estava certa. Continue!” – conclui Maria Rita.

Em 2018, Maria Rita foi Patronesse do Mês da Consciência Negra da UFSM Foto: Dartanhan Figueiredo

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