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Existe idade para buscar conhecimento? Conheça Marliza, caloura de 68 anos da UFSM

Por Maria Júlia Corrêa e Mirella Joels

Existe idade para buscar conhecimento? Conheça Marliza, caloura de 68 anos da UFSM

Fotos: Eduardo Ramos (Diário)

No último andar do prédio 74-A da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), as discussões evocadas na disciplina de Lógica instigam os alunos do curso de Filosofia bacharelado. Na primeira fileira, próximo à carteira do professor, uma aluna anota com afinco as observações da aula e, com algumas pausas, se refresca do calor santa-mariense abanando um leque. Interessada nas explicações e, ao mesmo tempo, amigável e sorridente com os colegas, a caloura Marliza Leoratto Viário chama a atenção não apenas pela dedicação e simpatia, mas também pela determinação que a levou a ingressar pelaprimeira vez no Ensino Superioraos68 anos. Ela é a bixo com maior idade a ingressar neste primeiro semestre de 2023 na UFSM, o que torna a conquista ainda mais especial.

Natural de Jaguari, Marliza se mudou ainda criança, aos 7 anos, para Itaqui. Foi lá que realizou o Segundo Grau com foco no Curso Técnico em Contabilidade. De lá para cá, foram anos e mais anos lidando com legislações trabalhistas e tributárias. Mesmo trabalhando com números, outras áreas sempre chamaram a atenção de Marliza, uma delas era a filosofia, curso que se dedicou para passar pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A “vovó da turma”, como gosta de ser chamada, estudou durante um ano, revisando conteúdos em uma apostila e vendo aulas no YouTube.  

— Quando a gente é jovem muitas vezes tem que se decidir por uma profissão e não se tem disponibilidade para escolher o que mais se gosta, né? Eu sempre tive uma paixão maior pela filosofia. Procurava frases e conselhos dos filósofos. Para mim, ter passado na chamada (oral) é a realização de um grande sonho — comenta.

O sonho não acaba ao ingressar na universidade, pelo contrário, é só o começo. Para a universitária de 68 anos, o curso é uma oportunidade de direcionar o conhecimento adquirido para uma atividade social voluntária, voltada principalmente às camadas mais vulneráveis da sociedade, para realizar um trabalho de base:

— Nós sempre podemos também prestar um serviço para a sociedade. Não podemos ser só mais um, nós temos que fazer valer a nossa voz. Ainda sinto que me falta muito conhecimento, então, depois de eu fazer Filosofia, ainda pretendo, quem sabe, se estiver com saúde e boa disposição, fazer outro curso na área assim do Serviço Social ou da Sociologia — enfatiza. 

Os três irmãos mais velhos, a filha, o genro e o neto de Marliza se empolgaram ao saber que ela voltaria a estudar. A rotina da universitária se divide em passar a manhã com o neto  Bernardo, estudar em casa de tarde e ir para a faculdade durante a noite. O dia cheio é motivo de alegria, afinal, a vovó da Filosofia consegue dividir o tempo com a família e com a vida universitária.

— A gente não pode parar nunca de aprender. Meu objetivo não é adquirir um diploma, estou em busca de conhecimento e não tem idade para isso não, né?! Lembrando a memorável frase de Sócrates "eu só sei que nada sei" — finaliza.


Acolhimento em sala de aula

A primeira semana de aula, do dia 20 a 24 de março, foi agitada e marcada pela primeira edição da Calourada na Gare. A vovó da turma participou do acolhimento dos veteranos no primeiro dia de aula, na segunda-feira (20). Os novos alunos participaram de uma gincana, passearam pela universidade e ainda pintaram os rostos com tinta. Logo após, começou a aula de Linguagem da Filosofia. A comemoração do primeiro dia seguiu na Gare, mas Marliza preferiu acompanhar pelas redes sociais:

— Infelizmente, não pude participar no dia, mas a fofoca rolou solta nos grupos do WhatsApp. Tava muito animado, né? Eles sabem se divertir, foi muito legal ver os vídeos deles. O entrosamento com todos os colegas é super bacana, eles me tratam com carinho, com amor, e eu também os trato com muito respeito. Estou gostando muito — diz. 

Na sala de aula, o colega Thalles Lucas Ferreira da Fonseca, 24 anos, tem uma boa relação com a “vovó”. Para ele, a idade nunca foi um empecilho para desenvolver afeto:

— Somos seres sociais, precisamos de vivência, e os e os seres com mais idade tem a sabedoria para passar pra gente. Além de dar uma diversificada no ambiente, ela traz essa sensação de maturidade, de que podemos falar abertamente sobre várias coisas, e que a universidade é um espaço de debate — conclui.

E não são apenas os alunos que percebem o enriquecimento do ambiente acadêmico com a chegada dos alunos mais velhos. De acordo com Frank Sautter, 55 anos, professor de Lógica, o curso de Filosofia tem um histórico de receber alunos mais velhos e gerar experiências acadêmicas positivas para esse público. 

— Vários colegas meus, que inclusive estão a ponto de se aposentar, se veem muito animados a eventualmente fazer um outro curso, além daqueles em que eles atuaram a vida toda. Creio que é um sinal de quanto a pessoa está saudável, ela ainda ter essa disposição para querer estudar e aprender — comenta. 



Nos corredores do prédio 74-A, também é possível encontrar o terceiro aluno mais velho com matrícula ativa nos cursos de Graduação da UFSM. Bem humorado e de andar tranquilo, Paulo Henrique Félix, 74 anos, se sente realizado por voltar ao ambiente acadêmico. Ele recorda que na década de 1970 cursou Licenciatura em Filosofia, mas a vontade de voltar a estudar só surgiu depois que se aposentou e viveu uma reviravolta na vida:
— Eu estava com aquela doença que é bem complicada atualmente, a depressão, né? Consegui superar e como conquista disso, voltei a estudar filosofia — ressalta.

No curso de bacharelado em Filosofia, o que mais chama atenção de Félix são as perguntas e os questionamentos. Em casa, ele segue os estudos na companhia dos livros e da escrita. Aliás, ele gosta tanto das disciplinas que pretende seguir os estudos:

— Se eu tiver tempo, vou fazer mestrado e quem sabe doutorado. É um objetivo que precisa de muita luta para conquistar, né? Mas pretendo conquistar isso se tiver tempo.


Contexto dentro da UFSM

De acordo com dados disponibilizados pela UFSM, a universidade possui, atualmente, 18.577 alunos regulares na graduação, sendo 17.837 no modelo presencial e 740 na Educação a Distância. Desse total, 1.774 são universitários entre 40 e 81 anos.

Em 2022, eram 1.416 alunos. É possível perceber que, após o ingresso através do Sisu e das chamadas orais de 2023, houve um aumento de 358 pessoas nessa faixa de idade.

Dentro desse universo, a pluralidade de idades chama a atenção. O aluno mais velho da graduação, por exemplo, é do curso de Licenciatura em Educação do Campo, na modalidade EAD do campus de São Sepé e possui 81 anos.

Já o segundo aluno mais velho cursa o superior de Tecnologia em Gestão de Turismo, na modalidade presencial, com 75 anos.

São pessoas com muita vivência, que mesmo com uma idade já avançada, decidem seguir em busca de seus sonhos. Mesmo com tanta experiência de vida, ingressar no mundo universitário não é uma tarefa fácil. A UFSM não possui um programa focado em acolher esse público de forma diferenciada,o acolhimento é feito de forma geral; em conexão com a Coordenadoria de Ações Educacionais, atua em demandas específicas, se foram solicitadas.


Relembre caso de etarismo em São Paulo

O ingresso de alunos acima de 40 anos nas universidades não é facilmente assimilado por todos. Um exemplo disso aconteceu no mês de março deste ano. Em um vídeo que tomou conta da internet e gerou muita repercussão, três estudantes do curso de Biomedicina de uma faculdade particular em Bauru (SP) debocham de uma colega da turma por ela ter mais de 40 anos. Após a repercussão do caso e pelas represálias, as três universitárias pediram o desligamento do curso, informação confirmada pela instituição na época.

A vítima é Patrícia Linares, caloura do curso que completou 45 anos em março. Ela ficou sabendo do vídeo porque foi alertada por outros dois colegas, que lhe mostraram as imagens. Ao ver do que se tratava, a mulher ficou em choque.

Patrícia registrou boletim de ocorrência por injúria e difamação contra as três jovens, na Delegacia de Bauru, onde o caso segue em investigação.

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