No último artigo do ano, vamos falar de uma coisa mais leve: Medicina Narrativa. É provável que boa parte das pessoas desconheçam a expressão. Rita Charon, professora da Universidade de Columbia, em Nova York, é a grande mentora dessa disciplina médica. Não é uma especialidade médica.
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Trata-se de um olhar particular para os doentes e as doenças, enraizado e continuamente perpassado pelas humanidades médicas. Rita Charon conceitua a Medicina Narrativa como “a medicina praticada com a competência narrativa para reconhecer, absorver, interpretar e se comover com as histórias de doenças”.
Humanização
Humanidades médicas? Bem, surgidas na segunda metade do século XX, como um movimento contrário a tecnologização e mercantilização da Medicina, que faz dela mais um produto sendo oferecido pelo mercado.
As humanidades médicas procuram beber em outras fontes, nas artes plásticas, na literatura, no cinema, na antropologia, sociologia e psicologia maneiras de enriquecer a prática médica, através da utilização de saberes não contidos na ciência biomédica. A maneira peculiar como a Medicina tem sido exercida ao logo da segunda metade do século XX e no século XXI, quando o imperativo tecnológico aproximou os médicos das máquinas e paulatinamente foi afastando-os dos pacientes. A Medicina é um trabalho profundamente humano, e falar-se em humanização da Medicina torna-se quase um contrassenso.
Porém, uma coisa pode ser cultivada: a humanização dos médicos, o sujeito essencial na prática médica, cujos esforços se voltam basicamente em um sentido: o cuidado do paciente. O paciente é o centro de todo o trabalho médico, a Medicina existe somente e exclusivamente no sentido de beneficiar o paciente com o que existe de melhor tanto em termos diagnósticos como terapêuticos. Esta é a missão da Medicina. E o cuidado de um ser humano por outro ser humano é algo que enobrece a prática médica, tornando a profissão tão singular. Porque a Medicina nunca pode ser definida como um comércio: seus objetivos e funções transcendem questões pecuniárias.
Trata-se de vidas, de dor, de doença, de sofrimento, de morte. De curar, aliviar ou consolar. As humanidades médicas cresceram como um contrapeso à progressiva transformação da Medicina em uma disciplina essencialmente científica e baseada em organizações cada vez mais complexas, onde os hospitais ocupam um papel relevante.
História das Doenças
Cultivada como uma arte e uma ciência, a Medicina é devolvida ao seu papel essencialmente humano, centrada no paciente. E a Medicina Narrativa se insere como um catalisador das humanidades médicas, dando-lhe forma e conteúdo, auxiliando o médico em uma de suas funções fundamentais: a formulação de um diagnóstico, a partir do qual pode-se abrir um leque de opções terapêuticas. E a Medicina Narrativa impõe ao médico duas funções das quais nunca deveria ter se afastado: a capacidade de ouvir e a capacidade de narrar histórias.
E a história das doenças está intrinsecamente ligada à vida da pessoa, aos seus valores, suas expectativas, tornando a experiência do adoecer muito singular: as doenças são semelhantes em seu curso, mas seu impacto em cada ser humano é diferente. Rita Charon, que além de médica é doutorada em língua e literatura inglesa, foi a grande divulgadora da Medicina Narrativa. Escreveu vários livros sobre o tema, artigos para revistas de relevância como o New England Journal of Medicine e o Journal of the American Medical Asssociation. Na cátedra de Medicina Narrativa da Universidade de Columbia, são oferecidas diversas formações, desde cursos curtos até pós-graduações strictu sensu. A Escola Paulista de Medicina, UNIFESP, oferece possibilidades de estudo na área.
Tive a oportunidade de frequentar uma disciplina eletiva de Medicina Narrativa, ministrada pelo professor Afonso Carlos Neves, neurologista de formação e que navega há muito tempo nas humanidades médicas. Dante Gallián, historiador, autor do livro “A literatura como remédio” tem um grupo de trabalho na mesma instituição, muito bem sucedido. Há alguns anos, um simpósio sobre Medicina Narrativa organizado pela instituição, contou com a presença honrosa de Rita Charon. Sua fala extraordinária juntou artes e tecnologia, escuta e escrita, tendo por centro a prática médica.
Toda sua fala foi baseada em quadros de artistas que expostos nos grandes museus novayorquinos, lugares que são frequentados durante os cursos de Medicina Narrativa, e que buscam a sensibilização e a expansão dos horizontes dos médicos e profissionais de saúde.
Sucesso Terapêutico
As pessoas idosas certamente se beneficiam deste olhar humano e cuidadoso, onde a escuta atenta e a narrativa pessoal do paciente sobre sua mazelas, amplia de forma significativa a possibilidade de sucesso terapêutico. As pessoas idosas precisam de um tempo maior de escuta, muitas vezes sua movimentação é mais lenta, e frequentemente a convivência com doenças crônicas não transmissíveis vem de muitos anos.
Escutá-los os privilegia enquanto sujeitos de seu próprio cuidado, sana dúvidas e fortalece aquilo que é o fulcro da prática médica: a relação médico-paciente, formando-se uma conexão segura e de confiança, fundamental para um exercício ético e idôneo da Medicina.