Finalizamos, semana passada, a primeira turma de experiência que surpreende a muitas pessoas: grupos reflexivos de gênero masculinos. Seu público: homens condenados criminalmente pela prática de violências contra mulheres. “Mas grupos reflexivos, ao invés de cadeia”? Sim e não. Ainda que toda violência contra a mulher seja inaceitável, e que suas marcas fiquem gravadas nas peles e nas almas das vítimas, a legislação prevê penas breves (e sem efetiva reclusão) para boa parte das infrações cometidas em contexto de violência doméstica contra mulheres. Ameaças. Injúrias. Difamações. Calúnias. Perturbações. Vias de fato (agressões físicas que não deixam marcas físicas). Fatos como esses não conduzem o agressor para Santo Antão de regra. Antes, o cumprimento da pena de prisão era suspenso – porque a lei assim comanda –, com aplicação de limitações de final de semana. Sujeitos iam para a cadeia. Nos finais de semana somente. E lá permaneciam. Sem nada produzir. Sem refletir sobre suas ações. Sem qualquer possibilidade de mudanças. Somente retribuição. Sem recuperação.
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Hoje, a substituição da pena de prisão toma um conceito totalmente diverso. Treze encontros. Um mundo de possibilidades. Ouvem – e falam – sobre o papel do homem e da masculinidade em nossos tempos. Saúde do homem. Autocuidados. Álcool e drogas. Gênero. Feminismos. Lei Maria da Penha. Direitos. Deveres. Obrigações. Assunção de responsabilidades.
O tempo ocioso da cadeia transmuta-se em – talvez – a primeira oportunidade de pensarem nas dificuldades de ser homem hoje. O que a sociedade espera de nós. E como sair do labirinto em que, sem nos darmos conta, nos encontramos.
A violência doméstica é um fenômeno complexo. É um problema jurídico aparentemente simples do ponto de vista técnico, mas que demanda enfrentamento por diversas frentes. Não é somente a repressão que dará cabo do problema. Ela é sempre necessária. Uma atuação rígida do Estado com os agressores é caminho indesviável. Não o único, porém. Já prendemos muito em Santa Maria nos últimos anos. Em determinado momento, no Estado do Rio Grande do Sul, somente prendemos menos agressores de VD que Porto Alegre. Prendemos muito. Prenderemos outros tantos mais – especialmente aqueles que descumprem medidas protetivas. Só direito penal e cadeia, no entanto, não são suficientes. Porque o drama da violência doméstica é, além de uma complexa questão médica, econômica, social e de saúde pública, um problema cultural.
E, para mudar a cultura, precisamos entrar na mente desses homens que agridem mulheres. Sujeitos que se criaram, em grande parte, em lares onde o tratamento do homem sobre a mulher foi violento. Levando-os a reproduzirem os padrões de relação e “cuidado” que lhes foram ensinados. Para que pensem e repensem o que a vida lhes entregou. E não formem mais uma geração de homens violentos (tampouco forjem em suas famílias mulheres que normalizam relações de controle e dominação do masculino sobre o feminino). A solução “processa e prende”, singela, não se aplica em nossa área. Serve a crimes com objetivos econômicos: furto, roubo, tráfico. Nesses, há escolha racional de quem os comete. Sujeitos que analisam os benefícios (dinheiro rápido e fácil), contrapõem os custos (probabilidade de ser descoberto e eventual prisão), tomando sua decisão de violar a lei. Violência doméstica apresenta outra lógica. Por vezes, o agressor assim não se percebe. Não se vê um criminoso. Age dentro da cultura em que foi (de)formado. Porque somos todos frutos do que nossas famílias nos apresentaram. Até que nos libertemos do que fizeram conosco. E passemos a reescrever e reinventar nossa história. Os grupos reflexivos de gênero servem a isso.
Sem esquecer jamais da rígida intervenção do Estado quando deferimos medidas protetivas de urgência, proibindo contato, tirando agressor de casa – medidas sempre diligentes, ágeis. Que salvam vidas.
Sem olvidar o cuidado com as vítimas. Mas encontros que possibilitam a reescrita de padrões de relacionamento. O redesenho da vida desses homens. Da vida de suas mulheres. E do futuro de seus filhos. (Re)pensamos masculinidades. (Re)escrevemos nossas relações.