reportagem especial

Em março, 47% dos funerais seguiram protocolos de isolamento

Maurício Araujo

data-filename="retriever" style="width: 100%;">Fotos: Pedro Piegas (Diário) 

Na linha de frente para atender os casos de mortes, as funerárias de Santa Maria também sentiram os impactos da Covid-19 e o quanto o aumento de mortes significa na cidade. Quatro funerárias prestam o serviço em Santa Maria, e, conforme os registros de obituários disponibilizados pelas empresas foram 715 funerais na cidade no primeiro trimestre deste ano, 37% deles eram casos de coronavírus ou suspeita de contaminação. Ano passado, conforme os registros de janeiro, fevereiro e março, foram 455 sepultamentos. O aumento de um ano para o outro é de 57%.  Em uma reportagem especial, o Diário vai além dos números de mortes e mostra como é a rotina de quem trabalha nas funerárias e a história de quem perdeu um familiar, além de falar sobre como é o luto em tempos pandêmicos. 

Leia também: 

Coronavírus fez número de mortes disparar em Santa Maria 

Após perda na família, a memória de Léo foi eternizada na pele do pai e do irmão 

A história da mãe que perdeu o filho e do filho que perdeu a mãe

O Ministério da Saúde publicou o Guia para o Manejo de Corpos no Contexto do Novo Coronavírus e dá várias recomendações, como: não são recomendados velórios e funerais de pacientes confirmados ou suspeitos da doença; a cerimônia de sepultamento deve ocorrer em lugares ventilados e, de preferência, abertos; durante todo o velório o caixão deve permanecer fechado para evitar qualquer contato com o corpo.

O coronavírus se intensifica desde janeiro, mas é em março que os números foram ainda mais tristes. Um levantamento feito pelo Diário aponta que no mês passado, as funerárias de Santa Maria, juntas, fizeram 307 serviços fúnebres. Destes, 146 foram sem velório, o que representa 47% do total. Nas funerárias, o aumento é perceptível. Para o subgerente da funerária Cauzzo, Fábio Coelho Monteiro, a situação foi de aumento e tensão no mês de março, quando foram 46 serviços funerários na Cauzzo e metade envolveu suspeita ou confirmação do vírus. Situação semelhante aconteceu na funerária São Martinho. Conforme o proprietário, Felipe Knackfuss, números altos assim são registrados no inverno. No mês passado, 49% dos serviços fúnebres foram por conta do coronavírus:

- É comum nos primeiros meses do ano termos um número menor de óbitos, mas o que acontece neste ano é diferente. Estamos com taxas semelhantes as de julho e agosto, que normalmente têm crescimento de mortes.

Foram considerados os registros de obituários de santa-marienses sepultados no município. Casos em que os obituários registraram "sem velório", conforme as funerárias, significam que a pessoa morreu por confirmação ou suspeita de Covid. São raros os casos de mortes não relacionadas à Covid em que a família opta por não fazer esse ritual.

PROCEDIMENTO
Conforme o gerente administrativo e comercial da funerária São Martinho, Silvio Borges Cabral, o processo para o sepultamento de casos de Covid é ainda mais delicado, pois os familiares, assim que comunicados do falecimento, procuram as funerárias sem ter tido contato com o ente que perdeu a batalha para o coronavírus. A última despedida dessas famílias é feita, normalmente, direto no sepultamento.

Ao ser acionada pelos hospitais, explica Silvio, a funerária vai até o local e recebe o corpo do paciente que morreu em decorrência da Covid em um saco plástico lacrado. Os agentes funerários colocam a pessoa na urna e, imediatamente, fecham o caixão. Dependendo do horário, o corpo já é encaminhado ao cemitério escolhido pelo familiar, onde uma pequena e restrita despedida - com pouquíssimas pessoas - acontece ali mesmo, em todos os casos com o caixão cerrado.

As despedidas comoventes, sem velório e com a urna fechada, também sensibilizam quem já está acostumado com esses rituais. Agentes funerários mudaram suas rotinas e adaptaram-se à nova realidade. Toda vez que acionados para atender uma morte por coronavírus, os trabalhadores se preparam com proteção completo, com máscaras, luvas, óculos e vestimenta adequada. A cada novo trabalho, o equipamento é desinfectado.

Junto aos familiares que acompanham o cortejo no cemitério, os agentes funerários Volmar Cassanego e Alciomar Trindade relatam as cenas, em que os rituais de despedida, culturais no país, precisaram ser abolidos em casos de coronavírus.

- É difícil para a gente ver aquela situação de muito sofrimento, sem ninguém ao menos poder se despedir como culturalmente estamos acostumados. Mas precisamos ser resistentes, porque naquele momento nós precisamos ser o que há de mais forte para aquelas famílias - diz Trindade.

style="width: 100%;" data-filename="retriever">

Registros nas funerárias em 2021*

Janeiro

  • 226 mortes
  • 66 por Covid-19 ou suspeita (29%)

Fevereiro 

  • 182 mortes
  • 51 por Covid-19 ou suspeita (28%)

Março

  • 307 mortes
  • 146 por Covid-19 ou suspeita (47%)

Total de mortes no primeiro trimestre de 2021

  • 715
  • 263 por Covid-19 ou suspeita - 37%

* casos "sem velório" nos obituários São considerados confirmados ou suspeitos de coronavírus
*obituários e dados das quatro funerárias que prestam o serviço no município

COMO ENFRENTAR O LUTO 
Em 1917, o pai da psicanalise Sigmund Freud trouxe no livro "Luto e Melancolia" que o luto é um processo lento e doloroso. As características passam por tristeza profunda, afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos do que foi perdido, perda de interesse no mundo externo, entre outras definições. Especialistas não conseguem estipular em quanto tempo o luto é superado, já que ele ocorre de forma diferente para cada pessoa. O que se sabe, é que este processo dura meses. Não cumprir com os rituais estabelecidos na sociedade, como o velório, torna ainda mais complicado.

O psiquiatra Vitor Crestani Calegaro foi um dos primeiros a atuar no ambulatório de psiquiatria do Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (Ciava), criado em função da tragédia da Boate Kiss. O profissional também lidera uma pesquisa nacional sobre saúde mental na pandemia. Para o psiquiatra, os rituais de passagem na nossa cultura, como velório, enterro e missa de 7º dia fazem com que a pessoa compreenda melhor a morte. Ao não ver o ente querido, como nos casos de enterros de Covid, o processo de luto se torna ainda mais difícil.

Segundo Calegaro, o luto faz parte da nossa existência, mas como não falamos com naturalidade desta realidade acabamos por não ter um bom preparo para enfrentar a morte, ainda mais de uma pessoa amada. Um processo de luto pode passar por várias fases, como revolta, negação - intensificada ainda mais nos casos de Covid por não ver a pessoa -, até a aceitação e estabilidade emocional, assumindo que o ente morreu e que ficam as boas memórias.

- Vivenciar a tristeza da morte é algo que ajuda neste processo de luto, já que ele faz parte da nossa existência.

ALTERNATIVAS

Buscar outros rituais para superar o luto, como rezas, lembranças e homenagens podem ajudar a superar a dor, explica Calegaro, apesar de não ser a mesma coisa. Casos em que o luto toma proporções que geram prejuízos, como evoluir para um quadro depressivo, devem receber atenção de profissional.

O psicanalista Volnei Dassoler, coordenador do Santa Maria Acolhe - criado em 2013 para atender as vítimas diretas e indiretas do incêndio na Boate Kiss -, também cita as redes sociais como uma forma de expressar os sentimentos neste momento em que não pode haver contatos físicos, já que as plataformas são maneiras de compartilhar memórias, manifestar a dor e de receber acolhimento.

Assim como Calegaro, Dassoler ressalta que todas as culturas estabelecem estratégias simbólicas e ritos de despedidas. O velório é entendido como um momento de acolhida dos familiares e amigos, sendo também um espaço de despedida para quem partiu. A impossibilidade destes atos impactam na elaboração do luto, dando a sensação de que o ciclo ainda não está encerrado:

- No mínimo, não ter estes ritos estabelecidos na sociedade, causa um sofrimento ainda maior. Então, o tempo é um fator importante para elaborar o luto. Entende-se que nestes casos, devido à pandemia, é impossível ter velório, mas essa ausência dificulta ainda mais o processo - explica o profissional.

Outra maneira, diz Dassoler, que muitas pessoas encontram para aliviar o sofrimento é indo aos cemitérios. Para ele, as pessoas não terem este acesso, mesmo em um espaço aberto e de pouca aglomeração, gera uma angústia ainda maior às famílias.

Durante a pandemia, as visitas aos cemitérios administrados pelo município eram agendadas. No entanto, afirma a prefeitura por meio de nota, as visitas estão suspensas enquanto vigorar a bandeira preta no modelo de distanciamento controlado do governo do Estado. O agendamento, diz o Executivo, voltará a ser realizado quando a região de Santa Maria for classificada em outra bandeira que não a preta.

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

A história da mãe que perdeu o filho e do filho que perdeu a mãe Anterior

A história da mãe que perdeu o filho e do filho que perdeu a mãe

Idosos com 62 anos ou mais serão vacinados na próxima semana Próximo

Idosos com 62 anos ou mais serão vacinados na próxima semana

Saúde