contra o preconceito

Onde é preciso avançar para coibir a violência contra transexuais

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data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Cassiano Cavaleiro (Diário)
Uma semana após os dois assassinatos, protesto pediu Justiça em nome de Mana e de Carolline

Mana e Carolline tiveram seus nomes estampados em faixas e cartazes de um protesto por Justiça, que reuniu cerca de 100 pessoas no dia 14 setembro. Elas também apareceram nas páginas deste e de outros jornais, além de figurarem em postagens nas redes sociais. Ambas só ficaram conhecidas após suas vidas serem ceifadas. Os assassinatos das duas transexuais, no dia 7, expõem o contexto de invisibilidade e de vulnerabilidade que vive a população trans. Hoje, a Polícia Civil dará uma entrevista coletiva à imprensa para mais esclarecimento sobre os dois casos.

Um levantamento de grupos da sociedade civil, mencionado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no ano passado, informou que a expectativa de vida do brasileiro médio é de 75 anos, e a de uma pessoa trans não passa dos 35. Não é por acaso.

Morte de transexuais revolta comunidade LGBTQI+ de Santa Maria

A falta de índices de criminalidade também mascara uma rotina de medo, preconceito e diferentes violências.

Alberto Barreto Goerch, presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), enfatiza:

- Não resta outra atividade, senão, subempregos. No caso local, Mana vivia como catadora, e Carolline, se prostituía. Em geral, quando elas começam a transformar seu corpo, quase sempre são expulsas de casa, a maioria tem Ensino Fundamental incompleto, e só resta a prostituição para sobreviver. O triste disso tudo é que elas são atacadas pelos próprios clientes, porque a sociedade que as discrimina é a mesma que as contrata.

Uma estimativa da ONG Igualdade aponta que Santa Maria tem cerca de 250 mulheres transexuais. Os números não são exatos, pois é uma população flutuante, que muda-se de cidade com frequência. Trans que já tenham nome social e emprego formal ainda são minoria.

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Renan Mattos (Diário)
Avenida Presidente Vargas é um dos locais onde transexuais fazem programa

Nos últimos dias, a reportagem do Diário percorreu a Avenida Presidente Vargas, via em que várias transexuais fazem programa. Os relatos de cinco delas eram de medo. A mãe das garotas, que não quis ter o nome divulgado, ligou duas vezes em menos de 40 minutos:

- Minha mãe sabe da minha situação (de prostituição) e depois das mortes passa me ligando preocupada - conta. data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Renan Mattos (Diário)
Esquina onde Carolline Dias foi morta

A esquina das avenidas Presidente com Borges de Medeiros, local onde muitas se reuniam e onde Carolline foi executada, permanecia vazia.

- Não voltamos lá por medo que aconteça de novo e para não lembrar do corpo da Carol estirado no chão - disse Yasmin Olaz, 22 anos, amiga da vítima que chegou minutos depois de ela ser atingida por um tiro.

O local é o mesmo onde Roice Campos foi visto pela última vez na madrugada de 2 de novembro de 2017, após subir na garupa de uma motocicleta. Ele também fazia programa.

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Renan Mattos (Diário)

SEM OPÇÃO
Na esquina da Conde de Porto Alegre, outro grupo seguia assustado, como Marcela Lambertini, 21 anos. Junto com ela estava Ingrid Souza, 22 anos. Segundo elas, as mortes recentes atestam a rotina limitada a escolhas.

- Hoje (última terça-feira) é o primeiro dia que retornei para rua desde o dia 7. O movimento diminuiu. Os caras estão assustados, o que é até bom, pois não é todo cliente que nos respeita. Duvido tu ouvir uma de nós que nunca tenha apanhado. Estou aqui para conseguir grana para fazer plásticas. Já larguei currículo por tudo. Até fui selecionada, mas o RH queria que vestisse roupas masculinas e fosse chamada pelo nome de nascimento - lembra Marcela.

Preso suspeito de assassinar transexual com tiro nas costas

Ingrid mora com a família, mas foi expulsa de casa pelos pais quando fez a transição de gênero. Hoje, o pai vive na mesma residência, mas não a dirige a palavra:

- Cheguei a trabalhar na cozinha de um restaurante, mas quando comecei a transição fui demitida. Poucas empresas nos dão oportunidade. Quando entramos em um shopping, somos apontadas. Aí, porque estamos na rua, as pessoas passam de carro e se acham no direito de xingarem, rirem e ameaçarem. Já atiraram garrafas, que é o mais comum, extintor de incêndio e até xixi. Nosso grupo é contra drogas, mas uma bebidinha (alcoólica) temos de tomar para "se soltar", senão, não aguentamos.

Nenhuma das entrevistadas tinha carteira com nome social.

FALTA DE REGISTROS
Coletivos, ONGs e a própria polícia são unânimes ao explicar o panorama que invisibiliza a comunidade transexual. Paradoxalmente, as pessoas não poderiam ser apenas um número ou mero nome para o Estado. No caso das trans, são necessárias estatísticas que as reconheçam, garantam direitos fundamentais e sejam direcionadas políticas públicas e oportunidades.

- Falam que ganhamos dinheiro fácil. Até é. Tem meses que se tu trabalhar bem, tira uns R$ 4 mil, mas não é sempre, e é um dinheiro nojento. A gente não está aqui porque gosta. Faço programa desde os 15 e já fui assaltada, já me furaram com uma faca, já registrei umas oito ocorrências, sempre com nome masculino, que nunca serviram para nada. No balcão da delegacia, viramos piada. A polícia sabe do que acontece, mas quem se importa com travesti? Receita para comprar hormônio pegamos uma das outras para não precisar ir no médico. Quando entramos na farmácia, acham que vamos roubar e ficam nos olhando. Nos postos de saúde é uma vergonha quando nos chamam pelo nome masculino, até quando ficamos doentes não somos respeitadas. Não existimos - relatou uma trans de 25 anos, que não quis ter o nome divulgado.

Dois suspeitos de assassinar mulher transexual são presos em Santa Maria

Carla Dolores de Castro, titular da Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate a Intolerância (DPICOI) de Santa Maria, diz que, desde abril, estão abertos 15 procedimentos que apuram casos de ameaças, injúrias e crimes de internet contra a população LGBTQI+. A delegacia setorizada é uma das únicas do interior do Estado.

- Estamos engajados com as ONGs LGBTQI+, conhecendo de perto. Trabalhamos para fortalecer essa rede muito incipiente no município. Existe uma cifra nos grupos de criminalidade em que os casos que chegam à polícia não refletem a realidade. Queremos diminuir essa cifra e mudar o estereótipo em relação à polícia no tratamento desse público. A Polícia Civil se comprometendo e isso virando uma bandeira institucional já é uma evolução - afirma a delegada.

As mortes de Carolline e Mana foram investigados pela Delegacia de Polícia e de Homicídios e Proteção à Pessoa (DPHPP), que tem como titular Gabriel Zanella. Desde 2016, quando a delegacia foi criada, não há registros de homicídios a transexuais.

VULNERABILIDADE

  • Segundo a ONG Igualdade, estima-se que Santa Maria tenha pelo menos 250 mulheres transexuais. Cerca de 80% trabalha na prostituição
  • Em 2019, 15 procedimentos apuram casos de agressões, injúrias e crimes de internet contra a população LGBTQI+ na Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate a Intolerância (DPICOI)
  • Juizado da Violência Doméstica não informou que tenham havido casos de medidas protetivas a transexuais nos últimos três anos

SEM PROTETIVAS
Em junho de 2016, uma decisão inédita da Justiça de Santa Maria concedeu medida protetiva a uma transexual. À época, a jovem de 20 anos sofria violência do seu companheiro há pelo menos um ano e meio. Ela já havia procurado a Polícia Civil outras vezes, mas como ainda não tinha a Carteira Social, e a lei estabelecia que apenas mulheres podem requerer medidas protetivas, ainda não havia conseguido uma solução. O pedido foi encaminhado pela Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam), e a decisão foi do Juizado da Violência Doméstica. O titular do Juizado, o magistrado Rafael Pagnon, diz não ter lembrança de outra medida protetiva deferida na cidade. Um possível motivo, segundo ele, é porque transexuais ainda não confiam na proteção do Estado. 

- O Judiciário trabalha, mas as trans ainda fogem da tutela estatal, não confiam no sistema e temem que reproduzam uma discriminação que ouviram a vida inteira - diz Pagnon.

CAPACITAÇÃO
Está prevista para os próximos dias uma capacitação para delegados e agentes da Polícia Civil de Santa Maria, com objetivo de melhorar o atendimento à população trans e demais temas relacionados. A iniciativa é do titular da Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento (DPPA), Eduardo Flores Machado, por meio de um projeto da Universidade Franciscana (UFN), encampado pela enfermeira e professora da instituição Martha Souza, que, desde a década de 1990, milita na causa LGBTQI+.

Conforme o delegado, todos os servidores estão sendo constantemente orientados a um atendimento humanizado em qualquer delegacia, mas a DPPA, que fica na Rua dos Andradas, é a única que atende 24 horas, concentrando a maioria das ocorrências. Ele também admite a dificuldade em obter registros específicos da população trans e avalia a necessidade de um sistema informatizado, que não limite gênero nos campos de preenchimento e garanta mais dignidade a transexuais. Situações semelhantes e algumas inconsistências são descritas pela titular de Deam, Elizabeth Shimomura:

- As trans procuram bastante a Deam, pois se sentem bem por ser voltada à mulher, mas temos um problema. Por exemplo, se alguma precisa de uma medida protetiva, a gente tem de fazer um documento por fora. Se preenchermos o nome da vítima masculino (nome de nascimento da trans) e do agressor também masculino, o sistema de ocorrência tranca. Então, não temos como mensurar os casos.

APLICATIVO PARA PROTEÇÃO
Outra medida que visa coibir a violência é a vinda do aplicativo "TiaLu". Quem desejar, pode baixar o aplicativo no celular e cadastra dois contatos de familiares ou amigos. Se o usuário estiver em situação de violência ou perigo iminente, basta acionar o botão de pânico. Feito isso, automaticamente será enviada uma notificação com um pedido de socorro para os dois números cadastrados com a localização da pessoa que está em situação de violência. O aplicativo recebeu esse nome em homenagem a Luciano Bezerra, um dos maiores representantes da causa LGBTQI+ do Brasil, que morreu em dezembro do ano passado. A ferramenta foi desenvolvido pela Rede Gay Brasil, que teve início no Estado da Paraíba e em São Paulo.

Segundo a coordenadora da ONG Igualdade, Marquita Quevedo, o TiaLu será lançado na quarta-feira durante uma audiência pública em Porto Alegre. A ideia é que se popularize em Santa Maria até o fim do ano.

Em 2007, a 3ª Delegacia de Polícia chegou a fazer um levantamento de transexuais que trabalhavam como profissionais do sexo. O objetivo era diminuir agressões e investigar os assaltos que esse público sofria na época.

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