Tentativas de feminicídio triplicam em 2022 em Santa Maria

Maurício Barbosa

Tentativas de feminicídio triplicam em 2022 em Santa Maria
Luanne Garcez foi morta asfixiada pelo namorado em via pública no Bairro Itararé em abril de 2022. Foto: Maurício Babosa (Bei)

Após uma queda do número de ocorrências de violência doméstica de 2020 para 2021, a Polícia Civil registrou um aumento desses crimes neste ano. Embora as solicitações de medidas protetivas estejam em queda nos últimos três anos em Santa Maria, as tentativas de feminicídio dispararam entre 2021 e 2022. No período, Santa Maria computou uma morte, mas as tentativas de assassinatos de mulheres aumentaram 350%, passando de dois para nove casos.

A reportagem teve acesso com exclusividade aos números da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) que mostram prisões, registros de ocorrências, solicitações de medidas protetivas e outros dados. Segundo especialista, e também conforme uma das vítimas, esse aumento se deu, na maioria dos casos, devido ao machismo dos agressores.No ano passado, a Deam não registrou nenhuma vítima fatal, mas em 2022, a jovem Luanne Garcez da Silva, 27 anos, foi morta por asfixia pelo próprio noivo, Anderson Ritzel, 26. Ele confessou o crime. Conforme a delegada Elizabete Shimomura, titular da Deam, além da morte de Luanne, o ano que se encerra foi marcado por muita violência:

– Este ano já contamos com nove tentativas de feminicídio. As três últimas aconteceram em novembro em um período de menos de 10 dias. As três vítimas foram gravemente feridas. Uma delas permaneceu internada por um tempo. Esse é um panorama que nos preocupa bastante.

Shimomura destaca que, em geral, os crimes de violência doméstica são sempre violentos e tem sido dias difíceis para a polícia e para as vítimas.

– Tem nos chamado a atenção a violência empregada pelos agressores. Das três vítimas de novembro, duas foram esfaqueadas em várias partes do corpo. A terceira foi supostamente empurrada, conforme o agressor, embora os ferimentos não coincidam com a violência mencionada com o autor. Ela teve afundamento no crânio e encontra-se internada – revela Shimomura.

A delegada explica que, em sua maioria, os crimes são motivados pelo machismo dos companheiros que não aceitam o final dos relacionamentos ou que as vítimas levem ao conhecimento da polícia as agressões. Uma sensação de que a mulher pertence ao companheiro.

– O questionamento sempre que nos é feito, sobre qual foi a motivação? Os feminicídios, que são a última tentativa de controle do agressor em relação à vítima, têm como pano de fundo o machismo. A cultura de achar que a companheira ou a namorada é propriedade dessa pessoa. Mas a motivação principal realmente é o término do relacionamento e a não aceitação de retomar o relacionamento por parte da vítima – diz.

Ainda segundo Shimomura, o aumento do número de ocorrências com agressões graves preocupa, porém as ocorrências de violência doméstica não têm acompanhado essa alta. Shimomura diz que os registros se mantêm na média usual. O desafio é entender o cenário atual:

– A gente faz o questionamento do porquê. Se as vítimas têm nos procurado, se o Poder Judiciário tem dado a resposta imediata em relação as medidas preventivas e protetivas. Acho que nunca se prendeu tantos agressores na cidade. São números expressivos, tanto em prisões em flagrante, como de prisões preventivas.

FeminicídiosAnoConsumadosTentados202015,00202102,00202219,00

Medidas protetivas solicitadasAnoDPPADeamTotal20201.3223431.665,0020211.0572941.351,0020229643371.301*

Descumprimento de medidas protetivas202025120212202022283**

Agressores presos em flagrante20211222022147*

Prisões preventivas202039202139202242

Ocorrências de violência doméstica20202.84020212.63020222.707**

*Dados até 30/11/2022**Dados até 31/10/2022

Mais de 180 suspeitos de agressão foram presos este ano

De janeiro a novembro de 2022, 147 homens foram presos em flagrante em Santa Maria por violência doméstica 42 em cumprimento de prisão preventiva. No ano passado, foram registrados 122 flagrantes e 39 prisões preventivas.

A Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento (DPPA) tem sido importante no combate à violência contra as mulheres, por formar uma rede de proteção às vítimas. Segundo a delegada Elizabete Shimomura, os policiais têm autuado dia e noite os agressores, principalmente aqueles que estão descumprindo medidas protetivas.

– Um exemplo foi o mês de novembro, em que tivemos 21 flagrantes. Foi praticamente um flagrante por dia. Em uma cidade do porte de Santa Maria, é um número muito expressivo. Não sei os números de outros Estados, mas acredito que aqui é uma das cidades onde mais se prende – afirma Shimomura.

As prisões só são possíveis quando vizinhos fazem denúncias ou quando as vítimas procuram a polícia para denunciar.

– Inicialmente, as mulheres têm que nos procurar. Seja ela fisicamente ou por telefone. Temos vários canais, denúncias anônimas, mas o ideal é elas virem até a Deam, ou na DPPA ou em outras delegacias no interior, se for o caso. Que solicitem medidas protetivas. Aqui em Santa Maria as vítimas são afortunadas de ter uma casa de passagem onde ficam em segurança – diz a delegada.

Violência assusta advogados e a própria Polícia Civil

A advogada criminalista e especialista em violência doméstica Tâmara Camargo representa algumas das vítimas de agressão doméstica. Ela explica que imaginava que a violência aumentaria mais durante a pandemia, quando as pessoas ficavam mais em casa.

– É uma coisa bem assustadora para nós, como advogados, e também para própria Polícia Civil. A gente vê que não é uma ameaça, muitas vezes a ocorrência que é registrada ela já vem de uma lesão corporal, e muitas vezes até uma lesão corporal grave. A gente está vendo que as ocorrências que estão sendo registradas hoje, elas estão como uma ocorrência violenta. Não digo que seja menos grave, mas aquela ocorrência que não gera só violência física, mas também psicológica. Então, a gente vê que essas ocorrências que estão sendo registradas estão sendo mais graves. Já parte de ser uma violência psicológica, que vem acontecendo num relacionamento geralmente há bastante tempo, e aí ela passa a ser física e vêm sendo muito mais intensas, muito mais fortes – acrescenta.

Para a advogada, entre as causas das agressões, estão os problemas financeiros e o sentimento de posse.

– Como advogada, não sei dizer exatamente o que que vem acontecendo. O que está se passando pela cabeça dos autores. Porque realmente a gente vê que a violência que está sendo empregada é uma violência física bem assustadora. Atendi há poucos dias o caso de uma mulher que estava grávida do próprio agressor. Ela já tinha filho com o agressor, ele a empurrou e chutou a barriga dela, que estava deitada no chão. É muito assustadora essa violência. Não é mais um tapa no rosto da mulher, hoje tem sido socos – conta.

Tâmara ressalta que as agressões, muitas vezes, são por questão patrimoniais, em função de o homem ainda ter o sentimento de posse da mulher. Muitos companheiros, por exemplo, não deixam a mulher ter liberdade ou usar determinadas roupas. Inclusive, impedem-nas de trabalhar e ganhar o próprio dinheiro.

– A mulher jamais vai ser propriedade de um homem ou de qualquer outra pessoa. Cada um tem o seu querer. O seu sentimento de querer – afirma.

A especialista destaca que, em muitos casos, vítimas de agressões graves não procuram a polícia e não buscam medidas para se proteger de futuras agressões. O lado positivo é que a sociedade tem agido cada vez mais contra a violência doméstica.

– A gente vê flagrantes em que não têm nenhum pedido de medida protetiva, mas alguém, algum vizinho, escutou a briga e ligou para Brigada Militar. A polícia foi até o local e conseguiu fazer a prisão em flagrante. Agora, vemos que a sociedade também está se preocupando com a mulher. Está tentando protegê-la. E essa questão dos descumprimentos das medidas protetivas também.

Tâmara Camargo orienta as vítimas de agressões que procurem a polícia, que façam o registro de ocorrência e que procurem seus direitos.

– A gente fala muito sobre a questão da rede de apoio, que a mulher é aquela que já tem um familiar, um amigo de confiança. Procure esse amigo, procure esse familiar, converse com ele, faça o registro de ocorrência e, principalmente, peça a medida protetiva. Porque a medida protetiva consegue muita coisa. Muitas mulheres pensam que a medida não vai proteger, mas o descumprimento da medida protetiva está gerando, sim, a prisão. Está evitando sim algo mais grave ainda – afirma Tâmara, que também ressalta a inauguração, em novembro, do Centro de Referência da Mulher.

“Eu era obrigada a fazer sexo. É uma das piores coisas em um relacionamento”, desabafa vítima

A reportagem conversou com uma das 1.301 mulheres que solicitaram medidas protetivas à Justiça em Santa Maria. Ela era agredida e ameaçada pelo então companheiro, com quem vivia há 10 anos. Hoje ela já não está mais com o agressor e diz viver mais tranquilamente.

– O meu ex-marido me ameaçou. Ele me bateu com um facão e colocou o facão no meu pescoço. Foi um casamento de 10 anos e ele vinha em uma constância de aumento de violência a medida em que ele chegava alcoolizado em casa. Quando ele se juntava no bar com os amigos se fortalecia ainda mais o machismo, a ideia de domínio sobre o outro.Ele saia do bar com ideia de domínio e chegava em casa e queria realizar aquilo, mas quando chega em casa tem uma mulher que não aceita, que pensa, que raciocina e que não aceita. Isso que gera a violência, não aceitar o outro, é querer dominar o outro – desabafa a vítima.

A vítima conta ainda que dos 10 anos do casamento, em pelo menos seis deles, ela foi agredida física e psicologicamente, humilhada e até estuprada.

– Quando essa violência não vem de forma física, ela vem pelas palavras que machucam, que ferem, que doem e que destroem a estrutura psicológica das mulheres. Temos hoje uma sociedade feminina adoecida. Essa violência vem de dentro de casa, de homens que falam palavras duras, que machucam e que estão matando internamente as mulheres. Esses homens também estão adoecidos. Os homens que cometem a maior parte das violências são aqueles que estão sem trabalho, que não tiveram acesso à educação formal, vieram de lares violentos, sofreram violência física e psicológica dos seus pais e vieram de lares violentos. O homem que comete essas agressões é inseguro com a sua masculinidade. Quando a mulher está feliz com a relação, ela se arruma, se pinta e fica bonita para ela e para o companheiro, mas ele logo pensa que ela está se arrumando para outro homem. Quando eu ia fazer consulta na ginecologista, já não conseguia mais abrir as pernas para colocar na cadeira ginecológica. Daí a médica viu que eu estava com fibromialgia (dor e fraqueza muscular generalizada). Chegou ao ponto de ele me obrigar a fazer sexo quando não queria, chegou ao ponto do estupro, que foi o que aconteceu comigo. Porque eu fui abrigada a fazer sexo. Ele chegou a colocar dinheiro na cabeceira da cama como forma de agradecimento. Isso é humilhação. Isso é uma das piores coisas que uma mulher pode passar em um relacionamento – desabafa.

Após ser beneficiada pela medida protetiva e ter a vida de volta ao normal, ela orienta que todas as mulheres vítimas de violência denunciem seus agressores:

– Não desistam de vocês, não desistam da vida de vocês. Busquem as delegacias da mulher, busquem a Justiça, busquem a vida de vocês com saúde mental, com saúde física e, acima de tudo, eduquem os filhos para uma sociedade de paz, de justiça e igualdade. Que todos os meninos e as meninas saibam se respeitar e que ninguém é dono de ninguém.

Onde denunciar:

Disque – 180

Brigada Militar – 190

Delegacia da Mulher (Deam)Onde – Rua Duque de Caxias, 115, Bairro BonfimTelefone – (55) 3222-9646

Delegacia de Pronto Atendimento (DPPA)Onde – Av. Medianeira, 91Telefone – (55) 3222-2858

Centro de Referência da Mulher (CRM)Onde – Rua Doutor Pantaleão, 200, CentroTelefone – (55) 99139-4971

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