Há 51 anos Luiz Eurico Tejera Lisboa era assassinado vítima da Ditadura Militar: veja como foi sua passagem por Santa Maria

Estima-se que foi na primeira semana de setembro, no dia 3 ou 4 de 1972 que Luiz Eurico Tejera Lisbôa, aos 24 anos, foi morto vítima da Ditadura Militar Brasileira. Ico, como era conhecido, viveu seus poucos anos de forma intensa alinhado com seus ideais políticos. A família, assim como a de tantos outros mortos durante o período, ficou anos sem resposta sobre o que teria acontecido com ele. Sete anos depois houve um retorno das tantas perguntas indagadas. Isso porque em 28 de agosto de 1979, foi promulgada pelo Congresso Nacional a Lei da Anistia, que concedia perdão aos perseguidos pelo regime militar e a quem lutou contra a ditadura, dando início a redemocratização do Brasil.

+ Receba as principais notícias de Santa Maria e região no seu WhatsApp


Foi então, há 44 anos, que veio a público que haviam encontrado os primeiros restos mortais de uma vítima da ditadura, o corpo de Ico. Em 29 de agosto de 1979, uma matéria chamada “Aqui está enterrado um desaparecido” estampava a capa da Revista IstoÉ. Com a luta da esposa de Ico para ter respostas sobre a morte de seu marido, muitas outras famílias encontraram seus entes amados enterrados no Cemitério de Perus, em São Paulo, onde ficaram muitos dos corpos dos desaparecidos políticos.  


Foto: Arquivo pessoal


A vida de Luiz Eurico é uma vírgula na construção da memória de uma história que ainda não teve fim. Quem ficou, remonta sua trajetória em todos os cantos. 


Dos seus 24 anos

Nascimento e infância

  • Luiz Eurico Teresa Lisbôa, mais conhecido como Ico Lisbôa, nasceu em 19 de janeiro de 1948 em Porto União, Santa Catarina. Morou em Caxias do Sul com a família, até se mudar para a Capital em 1965. Mas firmou laços e família em Porto Alegre e Santa Maria. 

Ico estudante

  • Estudou no Colégio Estadual Júlio de Castilhos em Porto Alegre até 1966. Como conta a esposa Suzana Keniger Lisboa, agora com 72 anos, lá ele tentava reativar o Grêmio Estudantil do Julinho, como é conhecido o colégio e foi expulso. Veio a Santa Maria em setembro de 1966 para morar com um primo. O principal motivo da vinda, na verdade, era o movimento estudantil. Passou no vestibular e começou a estudar Economia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Segundo o primo, foi aqui que ele se aproximou mais do movimento estudantil. 

O casamento e a sua morte

  • Fechou o ano de 1967 e voltou a Porto Alegre. Conheceu Suzana, se apaixonaram e casaram em 1969. Começou a trabalhar no Serviço Nacional de Indústrias (Senai) em Porto Alegre. Em outubro foi condenado a seis meses de prisão enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Isso levou o casal à clandestinidade, vivendo em Cuba. Em 19 de julho de 1972 teve o último contato com Suzana em Porto Alegre. Foi morto com um tiro na cabeça na pensão em que morava no Bairro da Liberdade, em São Paulo, nos primeiros dias de setembro e enterrado no Cemitério de Perus, com o codinome de Nelson Bueno.
Suzana, a mãe, Milke Waldemar Keniger, e Luiz Eurico, no dia do casamento delesFoto: Arquivo pessoal

A vinda para Santa Maria

Primos por parte de mãe, César de Ré, de 76 anos, e Ico foram criados juntos. César, nascido em Alegrete, veio para Santa Maria com seus pais aos 6 anos. O pai era líder sindical dos ferroviários e foi preso em 1964, quando o filho tinha 17 anos. Foi cassado e considerado morto. A família decidiu, então, ir a Porto Alegre. Havia um impeditivo, o contrato do aluguel da casa iria até o fim de 1966. A multa era mais alta do que o aluguel. O jovem César ficou em Santa Maria e o primo Ico veio de Porto Alegre para morar com ele, motivado pela atividade política


Acabado o contrato da casa que ficava na Rua Silva Jardim, os dois foram morar em uma república estudantil mantida pela Juventude Universitária Católica (JUC), localizada na Rua Pinheiro Machado, em frente ao Complexo Hospitalar Astrogildo de Azevedo. Os dois seguiram morando no prédio até o fim de 1967. Foi então que o jovem militante se inscreveu para o vestibular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e foi aprovado. Passou a frequentar as aulas de Economia e seguiu morando na república junto com seu primo


Muita além das atividades de sala de aula, os dois primos se envolviam em compromissos extraclasse. César conta que a percepção da forma que o tempo passava naquela época era diferente. As discussões se prolongaram, se viviam as atividades culturais e se adentrava a noite lendo livros. Sobre a ditadura em Santa Maria, César pontua: 


– Costumávamos nos reunir para discutir política em lugares nossos, em auditórios e outros locais. Mas a gente sabia quando entrava no local que alguém estava ali só para vigiar e não discutir conosco. Eram pessoas mais velhas e que não estavam vestidas como universitários. Além disso, por mais que fosse o início da ditadura aqui, era óbvio que se você fosse panfletar em alguma rua da cidade você ia apanhar, a polícia ia bater. Evitávamos isso por conta da censura – explica. 


Conforme explica o professor do Departamento de História da UFSM, Diorge Konrad, o primeiro ano da ditadura militar, em 1964, foi de desmobilização da oposição. A partir de 1965, passam a acontecer manifestações contrárias ao regime, partindo de estudantes secundaristas.


Luiz Eurico era poeta, por isso nos 50 anos do seu assassinato, em 2022, foi organizado um livro para registrar suas produções intitulado Condições ideais para o amor: poemas, manifestos e correspondência de um poeta-guerrilheiro. O livro conta com depoimentos de pessoas que fizeram parte de seus 24 anos de vida, como sua esposa Suzana. O primo diz lembrar de Eurico como uma pessoa inteligente: 


– A forma que ele pensava era surpreendente para a juventude dele. Era uma pessoa inteligente. Era admirável. Ele tinha uma capacidade de debate e de discutir ideias enorme. 

Diante disso, Cézar relembra uma situação: 


– Teve uma discussão que eu lembro na universidade. Foi feito um debate sobre Marxismo. Na situação estavam presentes grandes intelectuais de Santa Maria e dirigentes do Partido Comunista, que embora na clandestinidade a gente sabia que estavam ali. Mesmo com esse pessoal, que eram vistos como ícones do pensamento marxista, o Ico se sobressaiu na discussão. Ele tinha essa capacidade. 


'Trapo' para Ico

Ico nutria um carinho pelo Sport Club Internacional. Talvez, como contam seus parentes e admiradores, pela característica como Clube do Povo e pela cor vermelha.  Em uma situação, pelas ruas de Porto Alegre, quando estava com a sua companheira Suzana, entregou um chaveiro com o símbolo do Inter para a esposa. Na ocasião, disse que sempre que ela olhasse para o adereço conseguiria lembrar dele. Essa história foi contada por Suzana, nas vezes que a historiadora Paula Blume, 32 anos, moradora de Porto Alegre, esteve com ela: 


– Ela contou para a gente que estava na Rua dos Andradas, em Porto Alegre, e o Ico entregou o chaveiro para ela e disse que lembraria dele com aquilo. Essa história ficou na minha cabeça durante muito tempo. 


"Paulinha", como é carinhosamente chamada por Suzana, e alguns colegas trabalharam na construção do arquivo deixado por Ico. Foi através de um professor enquanto ainda era estudante de História que o vínculo se criou: 


– Eu fiquei pensando no que ela me falou e levei isso para alguns companheiros de arquibancada. Eu pensava “mas que coisa, né? Luiz Eurico, além de terem tirado a oportunidade dele de viver, tiraram também a oportunidade de acompanhar o Inter”. 


Foi por conta de sua posição política, como relata Paula, que Eurico teve retirado o direito de viver seus amores, um deles o Internacional. Depois do retorno da conversa com Suzana, do trabalho no arquivo, e de muito pensar e discutir com os amigos, foi decidido que seria produzida uma faixa em memória ao colorado Ico. A bandeira existe desde metade de 2019, mas foi em 2020 que ela foi pela primeira vez ao Gigante da Beira-Rio. De lá para cá, sempre que a logística permite, eles a colocam em algum setor do estádio: 


– Sabemos do poder de mobilização do futebol por conta da sua popularidade. Volta e meia, colocamos ela no estádio ou em algum lugar que vamos para assistir aos jogos. Assim, as pessoas se perguntam sobre a história dele. É uma forma de manter viva a memória dele. 


O processo de produção das faixas é artesanal. O grupo desenha o que desejam produzir e aí encaminham para a gráfica. No caso da faixa do Ico, separaram uma foto colorida, transformaram ela em negativo e imprimiram. Na situação, imprimiram em diversas folhas do tamanho A4 para pintar, tendo em vista seu tamanho. As letras foram escritas manualmente. Juntas formam o pensamento de Paula: Luiz Eurico morto pela Ditadura impedido de viver seus amores um deles era o Inter



Os responsáveis pelo “trapo”, como chamam as faixas, foram os integrantes da Coluna Vermelha.  Diferente de uma torcida organizada, é um movimento, não há um setor específico que se localiza no estádio, nem há uma ligação oficial com o clube, apenas a paixão. Desde 2016, pessoas com as mesmas ideias e viés políticos se somam e se organizam para estarem juntos. Composta por cerca de 100 torcedores, o grupo vive em prol do Internacional, mas o engajamento vem de 20 pessoas. Estas são responsáveis pela confecção de faixas, bandeiras e adereços que compõem a arquibancada em dias de jogos.  


Foto: Reprodução


Apesar da alcunha de Clube do Povo, das minorias e pela diversidade, no auge da Ditadura ele teve ligações com um responsável pela tortura do período. Em Condor FC, os autores Fabiano Neme e Matheus Bellé, discorrem sobre a relação do futebol e o período ditatorial da América Latina. Em um trecho da obra, os autores levantam o questionamento sobre a presença no vestiário do torturador e delegado Pedro Seelig durante as comemorações, na década de 70. Ele era torcedor fanático do Colorado e foi um dos nomes mais notórios da polícia da época. O ídolo Paulo Roberto Falcão era quem aproximava o vestiário de Seeling. 


Da memória

Desde a morte do marido, Suzana Lisboa convive com a luta na busca dos desaparecidos e por aqueles que foram mortos por suas atividades e posicionamentos políticos. Vive também com a ausência de uma pessoa amada que teve seu direito de viver impedido. Desde o desaparecimento do companheiro, ela buscou saber da realidade que passava por diversas famílias brasileiras. E talvez por isso, por ter tido retirada a possibilidade de viver ao lado do marido, que hoje há um sentimento de constrangimento quando a questionam sobre as preferências dele: 


– Tem tantas coisas que eu gostaria de lembrar do Ico. Me perguntam algumas coisas dele, que acho que eu até sei, mas a nossa memória acaba deixando de lado coisas que não julgamos importantes. Eu não sei o sabor preferido de sorvete dele. Não sei também que filme ele gostava. 


Em 1980, Suzana e a família de Ico entram com uma solicitação de reconstituição de identidade. Na certidão de óbito constava que Luiz Eurico havia cometido suicídio. Em 1995, durante a produção de uma reportagem do Globo Repórter, um morador da pensão em que Ico estava relata como aconteceu o momento de seu assassinato. Em 2013, durante a Comissão da Verdade, um laudo é produzido que atesta que a morte dele não condiz com um suicídio. Suzana fez um pedido para que a certidão de óbito de Luiz Eurico seja mudada, e a Justiça de São Paulo negou por unanimidade. O processo, atualmente, corre em segredo de Justiça. 


– Não há interesse, não há vontade política de encarar essa realidade. Não tenho surpresa em nada daqueles que diziam que iam fazer e fizeram. Há indignação dos governos que se sucederam e que não tiveram a capacidade de manter os arquivos no pós-ditadura. Não tivemos acesso a eles e eles desapareceram. Os crimes durante a ditadura só alimentam e auxiliam na morte da população atual. Hoje se sabe como matar sem deixar pistas – conclui.


De acordo com a Comissão da Verdade — colegiado responsável por apurar as violações de Direitos Humanos no país, que atuou entre 2011 e 2014 —, 434 pessoas foram mortas pelo regime ou desapareceram, e apenas 33 corpos foram localizados. 


Cada país teve a sua própria maneira de conduzir as investigações dos crimes cometidos durante o período. Nestes, foram criadas Comissões da Verdade. A Argentina é o país que mais julgou casos de pessoas desaparecidas e condenou seus militares. O Brasil foi um dos mais atrasados a instaurar uma Comissão Nacional da Verdade. 

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Faxinal do Soturno organiza campanha para arrecadar doações às vítimas do temporal no RS Anterior

Faxinal do Soturno organiza campanha para arrecadar doações às vítimas do temporal no RS

10 rodovias estaduais apresentam bloqueios devido às chuvas; confira Próximo

10 rodovias estaduais apresentam bloqueios devido às chuvas; confira

Geral