59 anos da Ditadura: como Santa Maria reagiu à intervenção militar de 1964 segundo jornal da época

Denzel Valiente,Letícia Almansa Klusener

59 anos da Ditadura: como Santa Maria reagiu à intervenção militar de 1964 segundo jornal da época
Em 31 de março de 1964, o presidente João Goulart foi deposto do cargo devido a um golpe cívico-militar. Nesta sexta-feira (31), os acontecimentos daquela noite completam 59 anos. O motivo principal citado pelos militares à época era a restauração da ordem no país, em um cenário de Guerra Fria, em que havia temor por parte significativa da sociedade quanto à implementação do comunismo no Brasil, além da impopularidade de Jango e seu governo reformista. O golpe, que foi manchete em vários jornais do período como revolução, prometia ser um governo de transição até novas eleições que seriam realizadas no mesmo ano. Entretanto, os militares tomaram o poder por 21 anos, em sucessivas gestões que ficaram marcadas pela censura, hiperinflação, cassação de direitos políticos e que deixaram centenas de mortos e desaparecidos. A reportagem realizou um resgate histórico, no acervo do extinto jornal A Razão, de como a sociedade santa-mariense teria recebido e reagido aos acontecimentos. 

A Ditadura

Ao avançar da ditadura, o clima de vitória “da democracia” foi sendo alterado por sucessivos atos institucionais que cercearam direitos, e cassaram mandatos e cargos, numa denominada “limpeza”. Foto: Nathália Schneider (Diário)

A Ditadura Militar, marcada por repressão e censura à imprensa, não cumpriu com a promessa de eleição direta para presidente. De acordo com a Comissão da Verdade — colegiado responsável por apurar as violações de Direitos Humanos no país que atuou entre 2011 e 2014 —, 434 pessoas foram mortas pelo regime ou desapareceram, e apenas 33 corpos foram localizados. 

O cenário propício para um golpe empresarial civil-militar

Detalhe de edição do A Razão de 1964. Foto: Nathália Schneider (Diário)

Em 25 de agosto de 1961, o 20° presidente eleito do Brasil, Jânio Quadros, renunciou depois de sete meses de governo. O desejo do então presidente era o retorno por aclamação popular, o que não aconteceu. Na ocasião, o vice-presidente João Goulart, o Jango, estava em viagem à China comunista, o que causou burburinho e acusações de intenções golpistas. Por consequência da viagem, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli assumiu o cargo. 

Uma figura importante para o período é Leonel de Moura Brizola. O então governador do Rio Grande do Sul mobilizou a população e Brigada Militar para a garantia da posse de João Goulart. Foi neste contexto que o governador criou a Cadeia da Legalidade, dentro do Palácio Piratini. A Assembleia Legislativa iniciou uma sessão permanente. Representações políticas, sindicais e estudantis se reuniram na Câmara Municipal de Porto Alegre e realizaram uma manifestação de rua.

A imprensa de rádio foi de grande importância no período para dar voz aos próximos passos da Campanha da Legalidade. Em 27 de agosto de 1961, Leonel usa os microfones para denunciar o golpe contra Jango. À época, as emissoras de Porto Alegre que haviam transmitido o discurso de Brizola foram censuradas. No mesmo dia, ele vai à Rádio Guaíba e transfere as transmissões para o Piratini. 

Mesmo com o movimento feito por Brizola, Jango negociava a posse, e implementa-se o parlamentarismo que, na prática, diminuía os poderes do Executivo. Tancredo Neves foi nomeado primeiro-ministro. Também ficou definido que em 1963 os eleitores decidiram qual regime queriam. Em Santa Maria, quando Brizola declara sua posição a favor da Constituição, líderes da classe trabalhadora e estudantil entram em greve e participam intensamente da Campanha pela Legalidade. Contudo, com o passar do tempo e o avançar da ditadura, alguns destes progressistas também mudam de lado. É o que explica o professor doutor Diorge Alceno Konrad da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM): 

— A mudança de lado tem a ver, por exemplo, com o setor militar. Tem a ver com a hierarquia de comando. Há mudanças na Brigada Militar, que passa a ser de comando de Ildo Meneghetti e que cada vez mais se aproxima dos golpistas.

O comício das reformas e a Marcha pela Liberdade

Um dos estopins para o golpe militar foi a defesa de pautas que interessam a minorias sociais, como a reforma agrária, por exemplo. Jango subiu no palanque da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, para discursar, em 13 de março de 1964, a favor da reforma. O evento organizado por entidades sindicais reuniu 200 mil pessoas e foi transmitido por rádio e TV.  

Para se ter ideia do cenário social efervescente, poucos dias antes da instauração da ditadura, uma nota publicada no A Razão em 26 de março de 1964 dizia:

A Razão de 26 de março de 1964 (cinco dias antes do golpe). Foto: Nathália Schneider (Diário)

A BANDEIRA DO POVO PAULISTA: “Verá o presidente da República que a reação não é contra as reformas legítimas e sim ao esforço dos grupelhos vermelhos que querem a fina força montar nessas reformas e servir-se delas com o torvo objetivo de aniquilar a democracia.” 

O flerte com o comunismo

Marcha da Família com Deus pela Liberdade se dizia contra a implementação do comunismo no país. Na foto, edição do A Razão de 26 de março de 1964. Foto: Nathália Schneider (Diário)

A aproximação de Jango com Che Guevara e outras figuras de esquerda descontentava políticos, civis e militares. Como resposta ao comício, em 19 de março de 1964, 300 mil pessoas fizeram uma passeata em São Paulo. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi uma resposta ao que alguns setores da sociedade considerava uma “ameaça comunista”.  

Em 24 de março, um pequeno fragmento de A Razão relata a “não perspectiva de golpe”. Na ocasião, foi reproduzida uma fala do prefeito de Recife da época, Miguel Arrais. Juscelino Kubitschek também se pronunciou negando a possibilidade de golpe.

Foto: Denzel Valiente (Diário)Foto: Nathália Schneider (Diário)

O dia que durou 21 anos

Capa da edição de 1º de abril de 1964, primeiro dia da crise que culminou na Ditadura Militar. Foto: Nathália Schneider (Diário)

Em resposta ao discurso de Jango do dia 13, o general Olympio Mourão Filho mobilizou, durante a madrugada de 31 de março para 1º de abril, suas tropas de Juiz de Fora (MG) até o Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro — local onde estava o presidente. O Forte de Copacabana é tomado pelos militares que defendem o Palácio da Guanabara. Jango, então, é aconselhado a ir para Porto Alegre e lá encontra Brizola. Em 4 de abril de 1964, Jango parte para São Borja e depois se exila no Uruguai ao lado da família.

A Razão de 2 de abril de 1964 (dois dias após o golpe). Foto: Nathália Schneider (Diário)

O contexto político-social de Santa Maria

A Razão de 2 de abril de 1964 (dois dias após o golpe). Foto: Nathália Schneider (Diário)

“Nas andanças por todas as áreas urbanas a reportagem de A RAZÃO anatou nas fisionomias dos populares, operários, donas de casas, comerciantes, estudantes, uma sensação evidente de apreensão e de severa preocupação com o momento crucial que está vivendo a coletividade, frente aos acontecimentos que aqui se desenrolam em decorrência da crise nacional.”

Em Santa Maria, o contexto político se igualava ao do país, com polarização. A mobilização contrária à ditadura e a favor da Campanha da Legalidade, por exemplo, partia de sindicatos, principalmente da categoria dos ferroviários. A greve dos ferroviários durou até 3 de abril.

A Razão de 3 de abril de 1964 (3 dias após o golpe). Foto: Denzel Valiente (Diário)

“A Viação Férrea, que se encontrava em greve, decretada a partir do início dos acontecimentos políticos que abalaram o país, retornou, ontem, ao trabalho, com a solução da crise. Já na tarde de ontem, os serviços da rodovia aqui reiniciavam seus trabalhos normais, após a conclamação dada a conhecer pelo Conselho Representativo das Entidades Ferroviárias.”

Por outro lado, a posição favorável à ditadura estava presente na UFSM, à época denominada USM, no grande contingente de militares da cidade e no empresariado. Em nota que data do dia 17 de abril de 1964, o primeiro reitor da instituição, José Mariano da Rocha saudava as forças armadas: 

A Razão de 17 de abril de 1964 (17 dias após o golpe). Foto: Nathália Schneider (Diário)

“Em nome da Universidade de Santa Maria, saudamos as gloriosas Forças Armadas do Brasil, que em movimento oportuno e patriótico devolveram o nosso grande país à sendo da democracia, da ordem e do progresso, dentro de nossas tradições cristãs.”

Na pesquisa pelas edições históricas do jornal é perceptível o aumento do apoio por parte de A Razão à intervenção militar ao longo de abril e dos meses seguintes. Foram realizadas, no município, marchas em homenagem aos militares que contaram com ampla divulgação e cobertura  nas páginas do jornal. Empresas locais e instituições também publicaram notas agradecendo as forças armadas por “salvar o país do comunismo”. Entrevista do dia 3 de abril, com o general Mário Poppe, comandante militar dos estados do sul do país, exemplifica o sentimento cívico-militar da época na cidade.

A Razão de 3 de abril de 1964 (3 dias após o golpe). Foto: Nathália Schneider (Diário)

“O povo brasileiro está de parabéns, pela grande vitória da democracia livre, pela erradicação do comunismo de nossa Pátria. Pátria essa que amamos com ardor e dedicação. Quero congratular-me com o povo pacífico e ordeiro de Santa Maria pela maneira com que se portou durante a crise político-militar.”

Ainda em 3 de abril, o governo municipal retornou ao trabalho normalmente. Em trecho publicado na época, lê-se “o Prefeito Municipal, em exercício, Professor Adelmo Simas Genro informou ontem a tarde que a Prefeitura Municipal reiniciou normalmente os seus trabalhos, sendo de calma e ordem a situação no Governo”. A posse de Castelo Branco em 15 de abril marcou edições comemorativas de A Razão, com grande parte do espaço do jornal dedicado aos militares, agora políticos.  

A Razão – 15 e 16 de abril de 1964 (15 e 16 dias após o golpe). Fotos: Nathália Schneider (Diário)A Razão – 15 e 16 de abril de 1964 (15 e 16 dias após o golpe)

Veja na galeria, algumas imagens do clima de comemoração que seguiu nas próximas edições

Foi organizada na cidade uma marcha em homenagem aos militares que contou com grande cobertura de A Razão. Fotos: Nathália Schneider (Diário)

O cenário mudou

Entretanto, ao avançar da ditadura, o clima de vitória “da democracia” foi sendo alterado por sucessivos atos institucionais que cercearam direitos, e cassaram mandatos e cargos, numa denominada “limpeza”. Exemplo disso é a cassação, dos antes apoiadores, prefeito e vice-prefeito de Santa Maria, Paulo Lauda e Adelmo Genro. Lauda, além de prefeito, era também professor da universidade e teve a cátedra cassada.

A Razão de 8 de maio de 1964 (38 dias após o golpe). Foto: Denzel Valiente (Diário)

O professor do Departamento de História, Diorge Konrad, explica o processo de “limpeza”, como chamavam a cassação: 

— As manifestações de manter a ordem, por exemplo, já estavam sendo preparadas. Foram situações planejadas antes mesmo do golpe. Também se intensificaram após os anos. Em maio de 64, a USM abriu uma comissão de inquérito para apurar “possíveis atividades subversivas no meio acadêmico”.

A Razão de 8 de maio de 1964 (38 dias após o golpe). Foto: Denzel Valiente (Diário)

— Foi assim que o que muitos acreditavam ser um governo provisório de restabelecimento da ordem, não demorou muito para evidenciar suas intenções golpistas. Manobras dos militares estenderam o mandato de Castelo Branco e o Brasil passou por seis presidentes militares eleitos indiretamente até o restabelecimento da democracia — comenta Konrad 

Sob o discurso de eliminar o comunismo do Brasil, militares ficaram no poder por 21 anos e realizaram perseguições a diferentes grupos sociais. Imagens de A Razão. Fotos: Nathália Schneider (Diário)

O professor Konrad conta que o período inicial da ditadura é marcado por muita desmobilização da parte da oposição e que somente em 1965 passam a acontecer manifestações contrárias ao regime, partindo de estudantes secundaristas. 

A memória

Com a Ditadura Militar, milhares de brasileiros tiveram que sair do Brasil e centenas foram mortos ou estão desaparecidos. Imagem de A Razão. Foto: Nathália Schneider (Diário)

Cada país teve a sua própria maneira de conduzir as investigações dos crimes cometidos durante o período.  Nestes, foram criadas Comissões da Verdade. A Argentina é o país que mais julgou casos de pessoas desaparecidas e condenou seus militares. O Brasil foi um dos mais atrasados a instaurar uma Comissão Nacional da Verdade. 

Contudo, a Comissão não julgou os crimes cometidos durante a ditadura, devido à Lei da Anistia de 1979, que perdoou crimes de cunho político. Alemanha, Peru, Argentina, por exemplo, tiveram seus processos julgados e as pessoas punidas, para que não haja esquecimento da história. O relatório, realizado pela Comissão, foi entregue em 2014, no Palácio do Planalto. O Brasil reconhece a prática de tortura, violência e execuções realizadas no período e caracterizada como crime contra a humanidade.

Ao avançar da ditadura, o clima de vitória “da democracia” foi sendo alterado por sucessivos atos institucionais que cercearam direitos, e cassaram mandatos e cargos, numa denominada “limpeza”. O país ficou décadas sem eleger um presidente pelo voto direto. Imagem do jornal A Razão. Foto: Nathália Schneider (Diário)

*Pesquisa realizada no Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria pela reportagem.

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