Jornadas de Junho

Há 10 anos, o Brasil tomava as ruas em protesto e a Câmara de Vereadores de Santa Maria era ocupada, exigindo justiça pelas vítimas da Kiss; relembre

Há 10 anos, o Brasil tomava as ruas em protesto e a Câmara de Vereadores de Santa Maria era ocupada, exigindo justiça pelas vítimas da Kiss; relembre

Foto: Fernando Ramos (Diário/ Arquivo)

Há exatos 10 anos acontecia a Copa das Confederações no Brasil. Enquanto a bola rolava em seis estádios do país, a população tomava as ruas com cartazes empunhados e ecoando coros que, diferente dos que se ouviam das arquibancadas, traziam variadas manifestações. Esse clima que se instaurou em junho de 2013, na verdade, surge antes do início da competição futebolística e não era de apoio à Seleção Brasileira.


Conhecidos como “Jornadas de Junho”, os atos que mobilizaram milhões de pessoas na metade do ano de 2013 completam seus 10 anos. A movimentação, que se espalharia por centenas de cidades do Brasil, surge de forma tímida no dia 6 de junho, na capital de São Paulo, em ato liderado pelo Movimento Passe Livre (MPL). Na ocasião, cerca de mil manifestantes protestavam contra o reajuste de 20 centavos no preço da passagem do transporte público municipal que havia entrado em vigor no dia 2 de junho.


Os protestos seguiram durante os primeiros dias do mês de junho sendo convocados através do bordão “vem pra rua”. Além de São Paulo, a população do Rio de Janeiro também atendeu ao chamado diante dos também 20 centavos de aumento na tarifa do transporte público carioca. No dia 13 de junho, considerado um marco nas Jornadas de Junho, numa tentativa de evitar que a marcha chegue à Avenida Paulista, a Polícia Militar (PM) de São Paulo reprime o movimento com balas de borracha e gás lacrimogêneo. Com a confusão, mais de 200 pessoas são detidas e outras tantas ficaram feridas, incluindo jornalistas.


O primeiro sinal do sentimento de descontentamento nacional é percebido no dia 15 de junho pelo Governo Federal. Na ocasião, data da abertura da Copa das Confederações, manifestações tomam conta do entorno do Estádio Nacional Mané Garrincha. Do lado de dentro, a presidenta Dilma Rousseff e o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, eram vaiados pelo público das arquibancadas durante as falas que antecipavam o jogo entre Brasil e Japão.


Foto: Agência Brasil (divulgação)


Após esse marco, os protestos se massificam nos dias seguintes pelos quatro cantos do Brasil. No dia 17 de junho cerca de 250 mil pessoas protestam em 12 capitais e outras 16 cidades. Uma das cenas mais emblemáticas das Jornadas de Junho ocorre nesse dia em Brasília, quando manifestantes ocupam a marquise do Congresso Nacional, onde ficam as cúpulas da Câmara e do Senado. Após isso, outras manifestações seguem ocorrendo nas ruas do país, agora carregando uma difusão de pautas para além da reivindicação inicial dos 20 centavos da tarifa do transporte público.


Em 19 de junho, Fernando Haddad, prefeito de São Paulo à época, revoga o reajuste do aumento da tarifa, medida também tomada pelos gestores municipais de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Aracaju. Cinco dias depois foi a vez do Governo Federal atender as reivindicações vindas das ruas. Após reunião com representantes das manifestações, prefeitos e governadores, a presidenta Dilma Rousseff anuncia pactos em cinco áreas, além de propor uma Constituinte responsável pela reforma política no país.


Manifestações em Santa Maria


Em Santa Maria, a mobilização, motivada pelas manifestações nacionais, começam a ser articuladas no dia 18 de junho com uma panfletagem no centro da cidade convidando as pessoas para um ato no dia 20. Na época, a informação sobre um suposto reajuste nas tarifas locais teria se espalhado, tornando-se uma das principais pautas das manifestações da cidade. O psicólogo Alex Monaiar, um dos representantes do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em 2013, relata que as mobilizações contra o reajuste do transporte público no município são anteriores aos protesto nacionais:


— Antes de acontecer todos os movimentos de São Paulo, a gente já sabia, por acompanhar o conselho de transportes, que o aumento (na tarifa do ônibus) viria. Naquele momento nós já planejamos, junto aos diretórios acadêmicos, com um mês de antecendecia, atividade de mobilização para tentar barrar o aumento. O ato do dia 19 de junho já estava planejado quando, na mesma semana, estourou em São Paulo as manifestações pelos 20 centavos — relembra Alex.


No dia 20 de junho a Associação de Transportadores Urbanos de Santa Maria (ATU) publicou um comunicado nos jornais locais informando que não encaminhou nenhum pedido de reajuste na tarifa. Mesmo assim, cerca de 15 mil pessoas participaram do primeiro ato que aconteceu em Santa Maria numa quinta-feira de muita chuva. Além das reivindicações quanto ao sistema de transporte público, as pautas levadas para as ruas giravam em torno de questões voltadas à saúde, educação, combate à corrupção e contra os gastos da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil. Mesmo com a convergência com pautas nacionais, uma questão local se destacava em meios aos cartazes e vozes: justiça pelas vítimas da tragédia da boate Kiss.


Na manhã do dia 22, cerca de 30 mil pessoas participaram do segundo ato organizado em Santa Maria. Além das que saíram em marcha pelas ruas da cidade, outras tantas apoiaram a manifestação das janelas dos prédios, com bandeiras do Brasil, panos brancos e aplausos durante a passagem dos manifestantes. À medida em que aumentou o número de pessoas, as reivindicações também atingiram um caráter ainda mais amplo, sendo o movimento tomado pela insatisfação generalizada e demonstração de enfrentamento contra todo o sistema. Alex analisa esse excesso de pautas como uma forma de fragilizar as pautas principais:


— Em Santa Maria, assim como a nível nacional, as elites perceberam que era um movimento possível de ser cooptado para emplacar as suas pautas e até tiraram à força as pautas principais, no caso de Santa Maria, transporte e a justiça pela tragédia da Kiss. Simbolicamente, era um movimento que não tinha uma pauta definida e que eles podiam emplacar o que os interessassem ou, então, abordar tantas pautas que no final não dariam em nada — aponta.


Ocupação da Câmara de Vereadores


O ápice das Jornadas de Junho em Santa Maria aconteceu no dia 25, quando a Câmara de Vereadores foi ocupada em ato de protesto pela apuração da tragédia da Kiss. Na ocasião, o Legislativo dava andamento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Kiss em meio a discórdias quanto a sua instauração. A CPI, instalada para apurar irregularidades, ações ou omissões, dos poderes constituídos, foi protocolada a partir da base governista municipal, gerando desconfiança e insatisfação nos familiares e sobreviventes. 


Horas antes da ocupação, o presidente do Legislativo Municipal, Marcelo Bisogno (PDT), havia recebido as gravações de uma reunião entre os vereadores Maria de Lourdes Castro (PMDB) e Tavores Fernandes (DEM), onde manifestavam que a orientação era que as investigações não dessem em nada, além das críticas à decisão de chamar o advogado da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria. (AVTSM) para compor a comissão. Bisogno relembra que sempre buscou dialogar com os manifestantes, considerando o Legislativo como um importante interlocutor para as angústias da época.


— O primeiro passo que tivemos foi respeitar a posição dos manifestantes. A gente vive numa democracia, e os locais públicos, eles são os únicos instrumentos para a população se manifestar, desde que haja uma ordem e bom senso baseado no diálogo. Nós estabelecemos o entendimento na força do diálogo. Eu nunca tratei como invasão, eu sempre me referi como ocupação, ali era o instrumento de manifestação. Eles não estavam invadindo para tomar, eles estavam ocupando para poder estabelecer um diálogo — defende Bisogno.


Após seis dias de ocupação e constantes negociações, a Câmara Municipal foi desocupada pelos manifestantes após a assinatura de um termo de compromisso onde o presidente Marcelo Zappe Bisogno (PDT) se comprometeu a afastar, em até 30 dias, o procurador jurídico da Casa, Robson Zinn, além da sugestão de renúncia de três vereadores que integram a CPI, Maria de Lourdes Castro (PMDB), Sandra Rebelato (PP) e Tavores Fernandes (DEM). No mesmo dia, 1º de julho, ocorreu o ato nomeado “A Luta Continua”, como forma de continuar pressionando o Poder Público pelas pautas do transporte público, sendo elas: retorno do passe livre, redução da tarifa, melhorias no transporte e licitação para as empresas de ônibus. Outras manifestações, com menor adesão, seguiram durante o mês de julho. Flavio Silva, um dos pais da AVTSM que esteve constantemente nas negociações, reconhece a importância do apoio do movimento estudantil naquela época:


— Nós agradecemos até hoje o movimento estudantil por se manterem firmes e fortes ao nosso lado, e determinados. A determinação dos jovens foi algo que validou a ocupação — afirma Flávio. 


Ao relembrar os dez anos de luta, Flavio reconhece que não imaginou que fosse demorar tanto tempo para que a justiça fosse feita.


— O tempo passou e a gente, envolvidos de corpo e alma por justiça, não se deu conta que passou todo esse tempo. Nós não vimos esse tempo passar da mesma forma que quem tem o olhar externo. A gente adoeceu nos últimos dez anos. A tragédia tirou a vida dos nossos filhos, mas o judiciário gaúcho já tirou dez anos de nossas vidas — conclui.


Junho de 2023; os dez anos depois


Nos últimos dez anos, muitas mudanças na política brasileira são associadas às Jornadas de Junho. Porém, para a cientista política Rosana Soares Campos, é preciso entender um contexto anterior à junho de 2013.


Segundo ela, as manifestações começam com uma pauta social e econômica vinda da periferia. Isso se dá pelo fato do modelo de política desenvolvimentista, que estava sendo construído nos anos anteriores, com valorização do salário mínimo e do emprego formal, acabava por estimular um maior consumo dessas classes ao mesmo tempo que não permitia que as pessoas tivessem uma mobilidade social.


Além de se apropriar dessa insatisfação social, a cientista política destaca que o fator corrupção é agregado a esses discursos. Para ela, são três momentos políticos que a direita ganha destaque de forma progressiva nos últimos 10 anos, sendo elas, as jornadas de junho em 2013, a movimentação pelo impeachment em 2015 e a ascensão da direita ao poder em 2018 a eleição de Bolsonaro


— Diante da insatisfação das classes populares, surge um espaço, muito propício e oportunista para a direita que vê a possibilidade de tomar um território que está vazio. Tínhamos uma esquerda fragilizada, que tinha que controlar os problemas do governo e os problemas internos da própria esquerda — explica Rosana.


O que fica de junho de 2013?


“A gente precisa olhar esses dez anos como momentos diferentes mas interligados, atores diferentes e palcos diferentes, que vão constituindo uma estrutura para a direita tomar o poder. As instituições foram colocadas em xeque, a democracia tem sido colocada em xeque. Precisamos estar em alerta, a democracia brasileira é uma democracia frágil.” Rosana Soares Campos, cientista política 


“Pouca coisa avançou nesses dez anos. Foi um tempo de sobrevivência. Santa Maria, assim como em outros lugares, permaneceu do mesmo jeito, segurando suas fichas na espera do terremoto passar. Os movimentos posteriores, que trouxeram à pauta da mobilidade urbana, voltaram a ser insuficientes para conseguir fazer alguma mudança e muito dificilmente vão chegar próximo ao que foi em junho de 2013. Se em 2013, com todo aquele movimento, não se teve muitos avanços, é muito difícil que hoje se tenha. É desesperançoso, mas que sejam 200 ou 500 pessoas se manifestando, é melhor que nada.” 

Alex Monaiar, psicólogo

“Tudo que acontece no país, reflete em Santa Maria por ser uma cidade universitária. No momento em que mobiliza uma bandeira nacional, aqui, por ter essa consciência social, acaba por também passar a ser manifestada. Hoje, ainda está tendo muita coisa atrasada, mas algumas questões conseguiram avançar. Tem pautas, como questões do racismo, homofobia, preconceito, entre outras, trazidas nas manifestações da época, trouxe um novo olhar para a imprensa, judiciário e da sociedade como um todo. Mas a cidade ainda tem muitas coisas para estabelecer uma construção coletiva.” 

Marcelo Bisogno, radialista e presidente da Câmara Municipal de Vereadores em 2013

“Uma grande lição que a gente aprendeu com junho de 2013 é que, no nosso país, só a luta pode mudar as coisas. A gente tira isso como exemplo, que os nossos direitos só são reconhecidos quando a gente luta e corre atrás.” 

Flavio Silva, integrante da AVTSM.

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