Marco regulatório

Entidades assistenciais têm dúvidas sobre nova legislação

Lizie Antonello

As últimas semanas foram de intensa movimentação entre as instituições assistenciais de Santa Maria. No último dia 18, a Secretaria de Desenvolvimento Social promoveu um encontro, na Câmara de Vereadores, para tirar dúvidas sobre a Lei 13.019 _ o Marco Regulatório que, desde janeiro deste ano, regra as parcerias entre as entidades e a administração municipal. Representantes de 22 entidades da cidade compareceram no Plenário do Legislativo, num total de 33 pessoas. Entre os presentes, muitas perguntas e incertezas em relação ao funcionamento das entidades no futuro.

Entre as dúvidas, está como ficará a captação de recursos por parte das entidades. Até o ano passado, as instituições elaboravam projetos e captavam recursos junto a empresas. Essa verba ia para o Fundo Municipal correspondente à área de atuação da entidade. Depois, a instituição requeria, junto ao Conselho Municipal ao qual ela é vinculada, e recebia o dinheiro que havia conseguido na captação. As entidades desconfiam que, com a nova lei, não haverá garantia de que o dinheiro captado será destinado à instituição que captou o recurso. Além disso, as entidades dizem que não conseguem trabalhar com o orçamento engessado.

– Não temos como engessar uma folha de pagamento porque pode haver meses em que um funcionário tenha que cobrir outro que faltou. Então, que a gente tenha uma margem de segurança. Hoje, a conta de luz deu R$ 150, mas eu falei que iria dar R$ 140. E, agora, de onde tiro os R$ 10? A gente trabalha com captação de recursos cada vez menor. No acolhimento institucional, sobramos nós e a Aldeias (SOS). Fecharam todas. Ninguém quer mais trabalhar de graça, perdendo o sono e adoecendo. Quem ainda está trabalhando quer o apoio de vocês (prefeitura). Santa Maria é um município que depende muito do serviço social e que não tem nada próprio, depende das entidades. Estamos todos no mesmo barco. Então, precisamos levar para os nossos funcionários que vocês vão nos ajudar e que vamos conseguir nos manter... senão a gente fecha – desabafou Cláudia Winter, auxiliar administrativa do Lar de Mirian, aos participantes do encontro no Legislativo, no dia 18.

Lei que regra parcerias entre entidades e municípios promete mais transparência com os recursos públicos

Ela fez coro ao pedido das entidades para que tudo que for captado retorne para entidade, a chamada doação dirigida. Cláudia sugeriu que o município busque exemplos de outras cidades que teriam implementado dispositivos no sentido de manter esse tipo de doações.

– A lei é de 2014. Para nós, é que caiu aos 49 (minutos) do segundo tempo – disse Cláudia.

Para o representante da Escola Marista Santa Marta, o Irmão José Bittencourt, o marco regulatório apenas regulamenta as possibilidades de fazer as destinações de recursos que já existiam.

– Acho que, no país, todas as entidades e organizações estão passando por isso, da insegurança e desse sentimento de instabilidade, do que vai ser no ano que vem, no mês que vem e o que será amanhã. Todos nós que trabalhamos com essa área social ficamos com esse medo, e é natural. Se analisarmos, todos os convênios e as instituições dos municípios estão nesse impasse e não têm clareza do que fazer e de como fazer. A única coisa que temos clareza é que não podemos deixar a peteca cair. Os nossos atendidos precisam dos serviços. Vamos ter que dar conta de fazer e criar alguns processos para fomentar e não deixar esses serviços acabarem – afirmou o Irmão José Bittencourt.

Acolhimento de crianças foi parar na Justiça

 SANTA MARIA, RS, BRASIL. 19/10/2017.Lar de Mirian e Mãe Celita é uma das instituições que terá de se adequar ao marco regulatório, lei 13.019 para manter atendimentos. Entidade faz o acolhimento de crianças e adolescentes dos zero aos 17 anos.FOTO: GABRIEL HAESBAERT / NEWCO DSM
Foto: Gabriel Haesbaert / NewCO DSM

O Lar de Mirian e Mãe Celita é uma das duas entidades de Santa Maria que fazem o acolhimento institucional de crianças e adolescentes, de 0 a 17 anos, em situação de risco ou de vulnerabilidade. A outra é a Aldeias SOS. Atualmente, ambas funcionam com base em ações civis públicas, movidas pelo Ministério Público (MP) na Justiça Estadual, que bloqueiam recursos do município para garantir que os atuais cerca de 70 acolhimentos sejam mantidos.

O serviço de acolhimento é de responsabilidade do município, que, por não ter condições de prestá-lo, promove esse trabalho por meio das entidades. No caso do Lar de Mirian, até 2016, a parceria era estabelecida em convênio. Mas o contrato venceu em novembro de 2016. À época, a administração fez um contrato emergencial que expirou em 4 de junho deste ano. Desde então, as tratativas entre a entidade e a prefeitura se intensificaram.

É que, sem contrato, o município fica impossibilitado de repassar recursos ao Lar – cerca de R$ 144,9 mil por mês –, sob pena de ser apontado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) a ter de devolver cinco vezes o valor pago de maneira indevida. E sem o dinheiro, o Lar não tinha como manter o atendimento nas três casas alugadas onde estão a maioria das crianças e adolescentes e na sede própria onde ainda ficam alguns acolhidos. 

Diante do impasse e da dificuldade para conseguir aprovar as contas dos últimos anos, o Lar de Mirian procurou o MP. A Promotoria da Infância e da Juventude moveu Ação Civil Pública contra o município em setembro. No dia 16 deste mês, uma reunião entre todos os envolvidos acordou que o pagamento ao Lar será feito por bloqueio judicial mensal no valor necessário para manter os acolhimentos. Afinal, todos concordaram que a prioridade é garantir o direito das crianças e adolescentes acolhidos.

– A solução não é para o Lar de Mirian, é para proteger as crianças – disse o prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom, após a reunião com a instituição e o MP.

Em meio a tudo isso, prefeitura e Lar discutem a adequação da entidade ao Marco Regulatório, já que, a partir da publicação do decreto, neste ano, o município só pode estabelecer parcerias com base nas novas regras, ou seja, por chamamento público com organizações da sociedade civil que não tenham pendências.

– O que as instituições precisarão é fazer uma adequação à Lei 13.019, de 2014. A ideia é que haja o chamamento público, com novo marco legal, e que coisas aconteçam de maneira regular e periódica sem esse tipo de solução judicial – analisou o promotor Ricardo Lozza, que acompanha os casos da infância e da juventude.  

Mesmo com o dinheiro assegurado pela Justiça, o Lar de Mirian, que também administra o acolhimento de mulheres vítimas de violência, diz que está em processo de regularização. Só dessa forma conseguirá participar do chamamento público, que deve ocorrer nos próximos meses.

– Estamos nos adaptando, com documentação pronta, mas com algumas pendências. Temos que ajustar essas questões. É interesse deles (prefeitura) e nosso – disse o presidente do Lar de Mirian, Alfredo Luiz Corrêa Rodrigues.

– Das três pendências pelas quais fomos notificados, de pedidos de explicações, estaremos entregando nesta semana (passada). Se tem alguma outra, não fomos notificados. Se tiver, teremos prazo para nos defender – informou o contador da instituição, Paulo Irajá Coelho de Abreu.

Atualmente, o Lar de Mirian tem em torno de 55 funcionários entre os setores de administração, manutenção e de assistência. Para judar na manutenção, o Lar faz um brechó com roupas e objetos doados pela comunidade.

Lares para idosos se mantêm com benefícios e doações

 SANTA MARIA, RS, BRASIL. 18/10/2017.O Lar Vila Itagiba de Santa Maria é uma das entidades que deve se adequar à nova legislação para manter atendimento.FOTO: GABRIEL HAESBAERT / NEWCO DSM
Nestor Ribeiro da Cruz, 70 anos, ajuda a dobrar as roupas dos colegas do Lar Vila Itagiba para passar o tempoFoto: Gabriel Haesbaert / NewCO DSM

A reportagem encontrou seu Nestor Ribeiro da Cruz, 70 anos, entrando no refeitório do Lar Vila Itagiba, na tarde do dia 18 deste mês. O lanche era apenas uma paradinha na atividade que ele desempenha todos os dias na instituição: dobrar as roupas de todos os asilados, depois de lavadas e secas.

– Não posso parar. Se parar, eu penso. Se penso, choro – disse o idoso, em referência clara ao abandono familiar e à necessidade de abrigo.

Seu Nestor é exemplo de bom humor e proatividade no lar. Entre a arrumação de uma peça e outra, ele não perde a chance de uma piada. Contou que, depois de ter trabalhado na área rural de uma cidade da região até a juventude, saiu país afora e viveu por anos em um circo. Depois de peregrinar por vários locais, acabou vindo para Santa Maria. Passou um tempo na Casa de Passagem, até que foi buscar abrigo no Vila Itagiba.

O lar é uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) filantrópica. Naquele dia, abrigava 77 pessoas com mais de 60 anos, entre elas, 30 cadeirantes. Mas a quantidade é variável. O lar se mantém com o percentual de 70% dos benefícios que os idosos recebem (de forma geral, um salário mínimo nacional no valor de R$ 937 cada) e com as doações que recebe da comunidade. O dinheiro serve para manutenção e despesas como água, luz e telefone, alimentação, compra de medicamentos e pagamento dos 43 funcionários, que vão da assistência à limpeza. Os últimos reparos na estrutura foram feitos com verba de doação dirigida – a entidade apresentou projeto ao Conselho Municipal do Idoso e captou dinheiro junto à sociedade. No ano passado, a entidade também conseguiu verba por meio de outro projeto encaminhado ao Conselho Municipal de Assistência. Desde 2013, a instituição não recebe recursos do Fundo Nacional do Idoso – recurso federal que era repassado ao município e destinado às entidades. 

No processo de adequação do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, o Vila Itagiba está com dificuldade para obter alguns documentos – o alvará sanitário e dos bombeiros. Enquanto isso, entidade e município buscam uma solução.

– Esses recursos são de suma importância para manter as instituições. Já trabalhamos com a equipe mínima, conforme o estatuto (do idoso). Se chega a fechar, para onde o município vai encaminhar esses idosos que estão institucionalizados? – disse uma funcionária que preferiu não ter o nome divulgado.

Apae teme pela manutenção do atendimento

 Santa Maria - RS - Brasil 17/10/2017_ A Apae de Santa Maria é uma das entidades que deve se adequar à nova legislação e que está preocupada com o futuro.
Foto: Lucas Amorellli / New Co DSM

Depois de um passeio ao Mantenedouro de Fauna São Braz, a aula da educadora especial Tatiane Marques foi para lembrar e falar um pouco sobre tudo o que as crianças e adolescentes viram por lá. A turma estuda na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Santa Maria, que atende 82 pessoas, de crianças a adultos, entre a unidade escolar e as atividades de lazer e convivência.

A instituição existe há 51 anos. Sempre enfrentou dificuldades econômicas. Mas, de um tempo para cá, a diretoria e a equipe que trabalha no local andam mais preocupadas. A entidade está entre as que tiveram aplicações de recursos questionadas por terem tido valores usados em finalidade diferente da prevista no plano de trabalho.

Parte do dinheiro que mantém a entidade vem do Fundo Nacional de Assistência Social – cerca de R$ 6 mil por mês – e é usada, basicamente, para pagar os educadores especiais. Outro montante, a entidade consegue de destinação de recursos do Imposto de Renda – o valor arrecadado no ano passado foi de aproximadamente R$ 130 mil. Ambos os valores caem na conta do Fundo Municipal de Assistência e são repassados pelo município. O receio da Apae é de não conseguir se regularizar e, com isso, não poder participar do chamamento público, ficando sem a verba federal e, ainda, sem acesso às doações do Imposto de Renda.

As despesas de água, luz e telefone são pagas com verbas federais que vêm para o centro de reabilitação, que funciona em um prédio anexo ao mesmo terreno. A entidade mantinha outros convênios com o município, que estão em vigência, mas cujos prazos estão findando.

– Qualquer transferência de recursos de ente público para uma entidade privada, com a nova lei, tem de ser por meio de chamamento público. Isso é complicado, porque, em Santa Maria, temos a Apae, a Colibri e a Francisco Lisboa que fazem o mesmo tipo de atendimento. Fazendo uma concorrência, somente um ganha. Como as outras se manteriam? Essa é a grande pergunta – questiona Júlio Brenner, que presta consultoria de forma voluntária à Apae.

A maioria dos frequentadores das atividades está na faixa acima dos 17 anos e encontra na instituição um local de convivência e sociabilidade.

– Se não conseguirmos manter o atendimento que é feito por meio dos educadores especiais, vamos ter que parar. E aí? Como ficam essas pessoas todas? – pondera Brenner.

A entidade tem 42 funcionários entre assistência e manutenção.

Um acordo de cooperação foi firmado em junho deste ano entre o município, por meio da Secretaria de Educação, e a Apae para cedência de profissionais – dois professores e três estagiários – à entidade sem custos à administração pública.

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