Foto: Charles Guerra (Diário)/Enquanto o ônibus não chega, rodoviária hospeda situações e pessoas desconhecidas
Valdionor traz na bagagem roupas, remédios e uma carga cansada dos tantos quilômetros percorridos no frenético trânsito da Capital gaúcha, onde trabalhou por 32 anos como taxista. Ireno tem até medo de se perder quando sai de uma baixada de coxilha, em Pinheirinho, localidade do município de Jaguari, fundão em que, segundo ele, "se gritar, o vizinho mais perto não escuta". Valdionor transpira sabedoria até mesmo quando fala da própria solidão. Ireno carrega curiosidade nos olhos.
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Eles não se conhecem e nunca se viram, mas a iminência de um novo ano reservou aos dois aposentados um certo tempo de espera na Estação Rodoviária de Santa Maria. No ordinário dos dias ou às vésperas de datas comemorativas, como o Réveillon, o local é vitrine de despedidas, encontros, chegadas e partidas. Não importa se o percurso é longo ou curto. Motoristas, cobradores e carregadores cumprem horário que nem sempre é alcançado pelos passageiros, que, muitas vezes, ficam à mercê de um box vazio.
Enquanto o ônibus não chega, a rodoviária vira abrigo temporário de situações e de pessoas desconhecidas. Permanência mesmo, só de quem trabalha por ali e vira espectador de destinos alheios e incertos.
Foto: Charles Guerra (Diário)
Adriana da Silveira Siqueira, 37 anos, trabalha há cerca de seis na manutenção da limpeza da rodoviária. Mais foi no dezembro de 2017 que ela presenciou uma cena que não vai mais esquecer. Já passava das 23h, era fim de expediente. Adriana se encaminhava para bater o ponto e deparou com uma mulher em lágrimas, em frente ao caixa eletrônico.
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Segurando em uma das mãos as malas, e, na outra, o filho pequeno, caiu em desespero quando o dinheiro que ela contava para pagar a passagem não estava na conta. O nome da mulher, Adriana não lembra, só sabe que a ida acabou não se concretizando. Os colegas de serviço até ofereceram um cobertor para a criança dormir em cima e R$ 10 para um lanche.
- Tentei consolar, mas a gente acaba não sabendo o que dizer. Fui embora e não sei o que aconteceu com ela depois - lembra a funcionária.
A HORA DA PARTIDA
Foto: Charles Guerra (Diário)
Às 18h do dia 30 de dezembro de 2017, talvez no momento em que alguns estiverem lendo esta reportagem, Clóvis Freitas, 78 anos, partirá. A ideia é que ele se dedique à família: esposa, filhos, netos e o bisnetinho, e ao trabalho voluntário que já faz há décadas. Depois de 55 anos como balconista do setor de bagagens e encomendas da Estação Rodoviária de Santa Maria, o funcionário mais antigo encerrará as atividades. Segundo seu Clóvis, homem sereno e que evita falar em excesso, será essa a partida mais esperada de toda sua vida, quando se despedirá de colegas e amigos.
- Comecei lá nas Dores em 1962. Já vi de tudo, é tanta história, tanta gente, tanto colega que não esquecerei...
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No dia seguinte, 31 de dezembro, em meio à desesperança de Valdionor ou à expectativa de Ireno, quando chegar a meia-noite e os fogos da virada estourarem, o velho ano dará lugar a novos 365 dias de uma mesma vida. Bagagens serão desfeitas, e novas viagens, realizadas. Quem sabe até uma visita a Porto de Galinhas (PE), pedido de Ano Novo e objetivo de 2018 de seu Clóvis.
VALDIONOR RETORNA PARA CASA
Foto: Lucas Amorelli (Diário)/Enquanto o ônibus não chega, rodoviária hospeda situações e pessoas desconhecidas
Pela segunda vez, Valdionor Rodrigues de Souza, 71 anos, passa pela rodoviária de Santa Maria. A primeira foi em 2015 , quando passou o Natal em Mata, na casa de amigos. Neste ano, também celebrou a data naquela cidade, mas abreviou a viagem. Era para ficar até o Ano Novo, porém, um desentendimento com o irmão o fez voltar para Viamão. Para o taxista aposentado, a sorte passou longe em 2017. O ano, segundo ele, apenas culminou em uma sucessão de perrengues que a vida lhe reservou.
Nasceu em Candelária e, com 9 anos, mudou-se junto da mãe e dos irmãos para Porto Alegre. Trabalhou em oficina mecânica e fez outros "bicos". Por 32 anos, foi taxista e, apesar das boas histórias que ouviu, não esquece as seis vezes em que foi assaltado. Mesmo com as agressões físicas, nunca foi esfaqueado ou baleado nos crimes. Em 2011, já em Viamão, ele se viu obrigado a se aposentar. Com a catarata avançada nos dois olhos, não conseguiu renovar a Carteira de Habilitação.
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Tem dois filhos advogados e três netos, mas prefere viver sozinho desde que a mulher saiu de casa e nunca mais voltou, no início deste ano. Também foi neste ano que passou por três cirurgias no olho direito após sete anos de espera na fila do SUS. Ficou apenas com 10% da visão. O olho esquerdo também necessita de correção.
- Passei uma vida miserável, trabalhando no trânsito, e me aposentei com um salário mínimo. Foi difícil querer dar as coisas para os filhos e não conseguir, mas eles se encaminharam. Se tem uma coisa que não sou, é ignorante, mas, agora, estou aqui quase cego e tendo que pagar R$ 100 de passagem para ir ali na frente porque não tinha mais lugar comum. Desde quando maloqueiro é executivo? - diz Valdionor, em um raro momento de descontração e sarcasmo.
Valdionor Rodrigues de Souza, 71 anos, taxista aposentado
O senhor está na ida ou na volta? Volta.
De onde e desde quando? Fui dia 24 passar o Natal em Mata. Ia ficar mais, mas não deu certo e, hoje (dia 27), estou voltando para virar o ano na minha casa, em Viamão.
O que o senhor vai fazer depois? Se tu deixar, vou tomar meu sorvete em paz.
O que o senhor traz na bagagem? Colírio, chinelo velho e cueca furada.
E na bagagem da vida? Nem sei onde deixei, ficou tudo para trás, em anos trabalhando feito um desgraçado.
O que o senhor deixaria em 2017? Minha ex-mulher.
O que o senhor levaria para 2018? Eu, sozinho com as malas.
..
E se pudesse ter um pedido realizável, qual seria? Morrer.
IRENO VIAJA PELA PRIMEIRA VEZ
Foto: Charles Guerra (Diário)
- Sou nascido e criado lá em Pinheirinho. Ali da coxilha até Jaguari, dá uns 38 ou 39 quilômetros. Depois disso, só conheço Mata. Posso dizer que nem pisei em Santa Maria. Em agosto, só desci do carro que me trouxeram para assinar uns papéis no Sindicato (Rural). Neste ano, passei várias vezes no hospital com insuficiência (respiratória e cardíaca). Mas ajeitaram e saiu a aposentadoria, que consegui porque guardo os blocos de produtor. Com um pouco do dinheiro, vou fazer esta viagem e pagar para mim e para elas - conta, faceiro, Ireno Almeida Alves, 60 anos.
Elas, as quais o aposentado se refere, são a nora Juliane Dias, 30 anos, e a neta Giovana Dias Alves, 7. As duas foram buscá-lo para passar o Réveillon em Bagé, onde moram seus filhos. É a primeira vez que Ireno viaja e repete, sem vergonha, que tem medo de se perder. Ainda que não conheça muito do mundo, não esconde o orgulho de ser agricultor. Chegou a comprar um chapéu de palha novo para se proteger do sol e para mostrar de onde vem. Também fica feliz ao contar que, na sua terra, planta de tudo: milho, feijão, batata, moranga e mandioca. Vai se virando, já que mora sozinho desde que se separou da mulher, há 30 anos. No mercado, que fica em Jaguari, cidade com cerca de 6 mil habitantes, vai apenas para comprar a carne e outros mantimentos. Toda semana, toma o ônibus para ir às compras e ao banco. Afinal, agora é um aposentado.
Ireno Almeida Alves, 60 anos, agricultor aposentado
O senhor está na ida ou na volta? Ida.
De onde e quando? Saí do interior de Jaguari (dia 28) e vou até Bagé visitar o filho.
E o que o senhor vai fazer depois? Conversar com o pessoal de lá.
O que senhor traz na bagagem? Roupa, chinelo e o chapéu de palha.
E na bagagem da vida? A lavoura. Ali aprendi de tudo um pouco.
O que o senhor deixaria em 2017? A doença (insuficiência cardíaca e respiratória).
O que o senhor levaria para 2018? Mais viagens.
E se pudesse ter um pedido realizável, qual seria? Uma motinho.