Luto em luta

A história de mães que lutam por mudanças em memória dos filhos

Arianne Lima e Mirella Joels

Há limites para o amor de mãe? Esta não é uma resposta simples, e difícil de descrever em palavras, mas sim em atos. 

Quando uma mãe perde seu filho, ela deixa de ser mãe? A resposta é: jamais. As maneiras de lidar com o luto, porém, são muitas. São muitas, também, as circunstâncias que tiraram os filhos do convívio com suas mães.

Sejam vítimas de tragédias, acidentes ou violência, em Santa Maria muitas mães lutam pela memória de seus filhos, com o intuito de que casos como estes não se repitam.


“Quando você deseja a criança, perder depois do parto é como perder parte da tua vida, do teu projeto de vida”


Era consenso médico que a gestação de Vicente, filho da professora Bruna Fani, não era de risco. Ela acompanhou por meses a evolução do bebê com ultrassom, exames de sangue e outras exigências do pré-natal e, de acordo com profissionais da saúde, tudo indicava que mãe e filho eram saudáveis. 

O período gestacional foi de muita expectativa para segurar o bebê nos braços, mas também de muito estudo sobre o processo de gestar. Tanto que, na busca por conhecimento sobre o parto, Fani se deparou com o termo “violência obstétrica”. O que ela não sabia naquele momento é que o conhecimento não impediria que ela e o filho vivessem essa violência.

— Eu já me senti violada ali no parto. Eu sabia sobre violência obstétrica, conhecia os meus direitos e vi eles sendo tirados de mim naquele atendimento. A informação nos ajuda, mas ela não nos protege de passar por uma situação de violência.

De acordo com Fani, o parto foi traumático e Vicente nasceu com sequelas no dia 12 de março de 2016. Esse foi só o início das negligências médicas que seguiram durante os 45 dias de vida do nenê, tanto na UTI neonatal, quanto na UTI pediátrica.

— Eu perdi o meu filho, né? Ele acabou falecendo ali no final do mês de abril. Depois do falecimento dele, eu tive muitos sentimentos e pensei “eu preciso escrever sobre isso”. Eu fiz um relato do parto no Facebook e ele viralizou na região. Teve mais de 30 mil leituras. Muitas mulheres se identificaram, e foi assim que, despretensiosamente, acabei parando na luta contra a violência obstétrica — conta.

Fani ainda destaca que ter uma rede de apoio, com amigas, dança, terapia e outras pessoas que vivenciaram a mesma situação foi muito importante durante o processo de tentar lidar melhor com as emoções que surgiram. 

— Eu estava na condição de quem tinha perdido tudo. Quando uma mãe perde um filho que foi gestado com tanto carinho, com tanta recepção… Quando você deseja a criança, perder depois do parto é como perder parte da tua vida, do teu projeto de vida. 


Do luto à luta

A luta contra a violência obstétrica foi a forma que Fani encontrou de redesenhar a maternidade. São sete anos levando a temática para debate nas ruas e nos espaços políticos para trazer mais conhecimento sobre o tema. Entre as conquistas, Fani destaca a criação de lei que institui a Semana da Conscientização sobre Violência Obstétrica – que ocorre na terceira semana de novembro –, e o reconhecimento do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da criação de uma frente parlamentar na Assembleia Legislativa.

— O amor que ficou por ele me fez levar essa vivência para as ruas porque era o que eu podia fazer pelo meu filho, pela memória dele e pela justiça. Continuei falando sobre isso incansavelmente, mesmo que me machuque, eu penso que é por ele. Já vi resultados positivos em Santa Maria. Essa luta previne que outras mães e outras famílias passem pelo que eu passei.


Falta de representatividade no Dia das Mães 

Quando um comercial de Dia das Mães aparece na televisão, ele tem espaço para uma mãe sem filho vivo? Existe espaço para reconhecimento da maternidade da mãe de um filho morto? Esses questionamentos pertinentes já passaram pela cabeça de Fani e, provavelmente, pela mente de muitas outras mães que convivem com a ausência do filho.

— Eu só tive um filho e este filho faleceu. Hoje eu não tenho nenhuma outra criança que visivelmente materialize o meu título de mãe, né? Eu sou mãe de um filho morto, mas eu não deixo de ser mãe. Eu vejo que as pessoas têm dificuldade de entender que eu também sou mãe, de legitimar esse título, de reconhecer esta maternidade como uma maternidade, que, mesmo enlutada, existe. É um processo de amor que teve vivências interrompidas. 

Cada pessoa tem o seu processo para vivenciar o luto parental. O de Fani já passou por várias fases. No Dia das Mães, ela gosta de receber um abraço, um carinho, uma lembrança, mesmo que seja um dia marcado pela ausência.

— As mulheres lidam de forma diferente, por exemplo, eu me reconheço como mãe e gosto de receber “Feliz Dia das Mães”, mesmo que seja um dia uma data em alguma medida dolorida — conta.

Uma das boas lembranças que Fani guarda dessa data é a cesta de Dia das Mães que ela costumava receber da mãe de uma aluna. Religiosamente, no segundo domingo de maio, Fani recebia uma cesta de café da manhã acompanhada de uma cartinha da aluna e dos 5 irmãos dela. 

— Foi um gesto de uma sensibilidade tão única, de empoderamento, sabe? Em um dia que poucas pessoas lembram da gente, ela lembrou de mim e me abraçou, logo em um dia que eu acordaria extremamente triste, normalmente – relembra sobre a primeira vez que recebeu o presente.

— Às vezes a gente só precisa olhar para o outro enquanto um ser humano e dizer “Como que eu posso te ajudar? O que eu posso fazer por ti hoje?”. A dificuldade da sociedade em relação ao luto é justamente lidar com ele. A gente tenta tapar tudo com felicidade e tem momentos que a gente não tem outra opção senão sentir a dor. Então, como eu posso lidar com a dor sem tentar apagar ela, já que ela não pode ser apagada? Você pode ser um ombro se colocando à disposição. Talvez assim essa dor seja um pouco menos cortante.  

Além de ser felicitada por amigos e familiares, Fani também sempre recebe uma surpresa do companheiro. Uma das últimas mais marcantes, foi uma carta escrita como se fosse o Vicente. 

— Na carta dizia para eu ter muita tranquilidade e muito orgulho porque mesmo que eu não esteja exercendo a maternidade de uma forma tradicional, o Vicente sempre vai estar muito orgulhoso de tudo que a gente construiu. Se essa luta avançou de 2016 pra cá, ela avançou em nome dele — relata, com emoção. 

— Eu poderia querer me obrigar hoje a ter um outro filho para sentir a maternidade, né? Para, de alguma maneira, me legitimar. Mas não é a minha vontade neste momento.  A minha vontade é de reconhecer que essa maternidade que eu vivo, embora ela seja vivida nas ruas, na luta, que ela é legítima. Eu me sinto mãe atuante pelo meu filho, ainda que eu haja em memória dele. 


Luto Parental

A ONG Amada Helena foi criada em Porto Alegre para conscientizar sobre a falta de leitos de UTI Neonatal e é uma homenagem à memória de Helena de Oliveira Maffini. Atualmente, um dos projetos da organização é focado na transformação social acerca do luto parental. Fani e outras mães que sofreram violência obstétrica se sentiram acolhidas pela ONG que, inclusive, tem abrangência nacional.

Ela ainda deixa um recado aconselhando que mães e pais enlutados conhecem a ONG Amada Helena:

— Mães enlutadas, não há certo ou errado na forma de sentir o luto. Que a gente não se culpe por querer ou não falar sobre isso. A gente não precisa lidar com isso sozinhas, podemos lidar com isso de forma coletiva, podemos nos dar as mãos e criar esse momento de acolhimento. Que seja válida toda forma de sentir. 


“Pela memória do meu filho, eu luto. Eu vou lutar até o meu último suspiro”, afirma Eneida

Foto: Nathália Schneider (Diário)

​Amoroso, estudioso e sempre com um sorriso no rosto. É assim que a aposentada Eneida Salete dos Santos, 68 anos, descreve o filho, Gustavo dos Santos Amaral. Na sala de estar, fotos do jovem formado em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) trazem orgulho, mesmo que seja com um misto de saudade.

Em 19 de abril de 2020, Gustavo, na época com 28 anos, foi morto a tiros durante uma operação policial em Marau, no noroeste do Estado. Ele estava na cidade a trabalho. De acordo com a ocorrência policial, o carro que Gustavo dirigia foi atingido por uma caminhonete que teria sido roubada em Casca, a 32 quilômetros de Marau, durante fuga de barreira da Brigada Militar (BM). Ele estava com três colegas no momento em que foi baleado. Durante o processo, testemunhas relataram ter visto o policial ter andado em direção ao engenheiro e efetuou o disparo.

— Meu filho tinha um coração de ouro. Ele não merecia o que aconteceu com ele. 

As lembranças dos últimos momentos com Gustavo dão espaço à emoção. Uma semana antes do ocorrido, a família havia viajado. Em uma das últimas ligações, o jovem pediu que a mãe preparasse um suco de abacaxi, que era seu favorito, e espera-se por ele durante a semana. O encontro nunca aconteceu. 


Inquérito

Conforme Eneida, a pandemia tornou o processo de investigação do caso ainda mais doloroso, devido à demora. Cinco meses após o crime, a Polícia Civil concluiu que o policial agiu em legítima defesa putativa ou imaginária, ao ter confundido o celular que o rapaz carregava com uma arma. Posteriormente, o Ministério Público pediu o arquivamento do caso, que foi acatado. 

Em busca por justiça, a família contratou três peritos para analisar o caso. Entre 2020 e 2021, Eneida esteve à frente de diversas manifestações denunciando a violência policial contra a população negra em Porto Alegre, Santa Maria e Marau. 

— Eu não festejo mais o Dia das Mães. A data terminou com a morte do meu filho. Então, eu peço justiça, porque essa pessoa se atravessou e tirou a vida do meu filho. É algo que irei lutar até o fim: por justiça pelo Gustavo — comenta.

 

Lei Gustavo Amaral

No final de 2020, surge o Projeto de Lei (PL) 211. De autoria da deputada estadual Luciana Genro (PSOL). A proposta prevê a instalação de câmeras corporais em fardas de policiais e viaturas de segurança pública. Após tramitar pelas comissões, o PL foi a votação na Assembleia Legislativa em dezembro de 2021, sendo rejeitado por 29 a 16 votos. 

Dois anos depois, a proposta foi protocolada novamente em fevereiro deste ano. O Projeto de Lei 55/2023 inclui o nome de Gabriel Marques Cavalheiro – jovem de 18 anos que foi encontrado morto em São Gabriel, após ser abordado por três policiais militares em agosto de 2022.

Ao lado de Guilherme, irmão gêmeo de Gustavo, Eneida participou da apresentação do projeto, que ocorreu na Assembleia Legislativa, em Porto Alegre. Na ocasião, ela abraçou Rosane Machado Marques e Anderson da Silva Cavalheiro, pais de Gabriel. 

— Enquanto mãe, preciso achar forças no fundo do coração para lutar pelo meu filho e por essas leis que eu gostaria que fossem aprovadas. A Lei Gustavo Amaral e agora, Gabriel, vem para evitar que muitas famílias passem pelo que a gente está sofrendo. Antes, eu já pedia que essa lei fosse aprovada, que desse atenção para isso não se repetir, mas ela não foi. Aconteceu com o Gabriel algo que poderia ter sido evitado. Então, agora, vamos à luta de novo — afirma Eneida. 

Nas plataformas digitais, uma petição busca cinco mil assinaturas para o PL 55/2023


Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Domingo de celebrações para 39 novas mamães Anterior

Domingo de celebrações para 39 novas mamães

Com tempo firme e ensolarado, último dia da Feira do Livro tem movimento intenso e grande público Próximo

Com tempo firme e ensolarado, último dia da Feira do Livro tem movimento intenso e grande público

Geral