Dois meses depois de deslizamentos, 80 das 250 famílias seguem em áreas de risco em Santa Maria

Foto: Beto Albert

Os mesmos morros que parecem abraçar Santa Maria são os que hoje apresentam risco em seu entorno. O verde, tão característico dos montes, ganha marcas das chuvas históricas registradas no Rio Grande do Sul. Neles, deslizamentos de terra têm mudado a paisagem que apelidou a cidade de Boca do Monte e que tanto é motivo de apreciação. Dois meses após o início das enchentes, o cenário em diversos locais não é mais o mesmo. Nas áreas antes ocupadas, e agora mapeadas com alto risco de novos deslizamentos, moradores convivem com a insegurança e o vazio deixados pela chuva.


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Em Santa Maria, quatro locais entraram nesse mapa: Rua Canário, onde houve um grave deslizamento que matou duas mulheres, Vila Churupa, Vila Santa Tereza e Vila Bilibio. São áreas onde as enchentes se manifestam não só nas ruas alagadas, mas também em deslizamentos de terra, rachaduras e instabilidades no solo que impedem a permanência de quem reside próximo aos morros. Desde o início das fortes chuvas, em 29 de abril, cerca de 170 famílias já saíram de casa e pelo menos 80 ainda procuram um lugar permanente e seguro para morar. Ou seja, seguem morando nas áreas de risco e, em noites de chuva, têm perdido o sono.

A instabilidade nos morros tem origem na formação geológica que registra características peculiares. Conforme a geóloga da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Andréa Nummer, os montes de Santa Maria são formados por rochas sedimentares, que desgastam facilmente com o tempo. No topo, rochas vulcânicas, mais resistentes. Toda essa estrutura ainda tem a cobertura de um material chamado de colúvio (sedimentos soltos que foram depositados na base das encostas).

– São blocos de rocha de todos os tamanhos misturados com solo mais fino que cobre as encostas, o que gera um material instável. Então, várias áreas da encosta dos morros têm esse processo que chamamos de rastejo, quando o solo anda um pouquinho e para. Esse é um processo natural. O problema é quando temos ocupação, porque pode causar risco e danos – explica Andréia.

Em outras palavras, movimentos no solo são processos naturais, já que a rocha sedimentar tem como característica o “entra e sai” da água. Mas, com os altos acumulados de chuva, o processo natural de absorção não foi o suficiente e ocorreu uma grande quantidade de escorregamentos de solo. Conforme o geógrafo Romário Trentin, no caso de áreas ocupadas, o que ocorre é um agravamento do dano no momento que atinge estruturas e coloca em risco quem reside no local:

A ocupação pode, sim, em algumas situações, condicionar novos escorregamentos. A encosta tem uma inclinação natural e, no momento que uma casa é construída, faz um corte na condição natural. Se andarmos por aí, em quase todas as regiões houve escorregamento do solo, mas que não causaram danos porque não havia construções perto.

Diante dessa instabilidade, na última semana, a reportagem do Diário percorreu áreas em que aconteceram deslizamentos para entender o cenário dois meses após o início das enchentes.


"Eu me medico para dormir", diz moradora que segue na Rua Canário

Na Rua Canário, o profundo corte que segue no Morro Cechella e os entulhos de duas casas não deixam ninguém esquecer: o perigo causado pelas encostas demonstrou a sua pior consequência em 1º de maio. Foi quando um deslizamento tirou a vida de mãe e filha que tiveram a casa soterrada por avalanche de terra, pedras e árvores. De lá para cá, muita gente saiu às pressas, e intensificou-se o monitoramento e a avaliação de áreas ocupadas para que tragédias como essa não voltem a acontecer. Conforme o chefe do gabinete do prefeito, Alexandre Lima, laudos atualizados do Morro do Cechella, onde estão ruas como a da Canário, apontam todas as casas em R4 – risco muito alto de deslizamento.

130 casas da Rua Canário foram mapeadas com alto risco pela Defesa CivilFoto: Beto Albert

Assim, as residências que antes pareciam ser abraçadas pelo morro, agora foram desocupadas em sua grande maioria. Na rua, especialmente perto do deslizamento, o silêncio deixado pela saída dos moradores e casas desmontadas indica a opção por não retornar. A monitora escolar Daniela de Pelegrini, 38 anos, conta nos dedos quantos vizinhos ainda estão no local: não passam de 10. Conforme a Defesa Civil, 130 casas da Rua Canário foram mapeadas com alto risco. Destas, 95 famílias já estão em outros locais com ajuda do Aluguel Social. Algumas famílias se negam a sair.

Já outras famílias, como a de Daniela, ainda procuram um novo lar. Conforme ela, a dificuldade tem sido achar casas para alugar. Por conta dos instrumentos de trabalho do marido, que não são poucos e por não querer se desfazer dos animais de estimação, como o gato Luke que fica nos pés de Daniela o tempo todo, não é qualquer espaço que comporta a necessidade da família. Por isso, ainda segue na Rua Canário. O sentimento, no entanto, é a insegurança e o desejo de sair. Desde o deslizamento de terra, que fica a 200 metros da casa onde mora com o marido e as duas filhas, Daniela convive com crises de ansiedade e um vaivém. Em dias de chuva forte, ela procura abrigo na casa do irmão:

Eu não vejo a hora de sair, tenho medo de ficar aqui. Eu me medico para dormir porque tenho um grande trauma daquele dia. Eu só ouvi falarem “desce, desce, tá caindo tudo”, parecia um efeito dominó. Depois disso, demorou para eu voltar a ficar bem. Então, não é por falta de vontade que ainda estamos aqui. Realmente, não estamos conseguindo. E alguns proprietários têm medo de locar pelo Aluguel Social porque eles devem ter preconceito, alguma coisa assim, com quem mora em áreas de risco – diz.

Daniela é uma das pessoas que ainda permanece na Rua Canário Foto: Beto Albert

Conforme Lima, os moradores foram notificados e encaminhados ao Aluguel Social, mas não têm uma data limite para sair, por mais que saibam dos riscos de permanecer com a área ocupada. Em resumo, a prefeitura tem respeitado o tempo de cada família no processo de procura e mudança de local:

Os prazos seguem dois parâmetros. Primeiro, o alerta a cada possibilidade de chuva para que preservem a vida deles e não fiquem no espaço. Então, tem uma previsão de chuva e levamos o alerta até os moradores com carros de som. Esse é um primeiro prazo, o imediato. O segundo é o tempo da construção de soluções do poder público, como o Aluguel Social, e o andamento desses processos.


Na Vila Churupa, rachaduras e solo cedendo provocam medo

Próximo à Rua Canário, entre o Morro do Cechella e a Barragem do DNOS, fica a Vila Churupa, onde o drama de moradores se repete. Ambos os locais têm algo em comum: as casas foram construídas junto à antiga linha do trem que contornava o Cechella, mas que foi desativada na grande enchente de 1941 – na época, houve um grave deslizamento, comparado por jornais da época como efeito de um “terremoto”.

Agora, dois meses após a enchente de maio, quem passa pelo local entende de imediato os motivos que levaram à notificação de saída para 90 famílias. No fundo das residências, o morro já atinge o pátio e parece contornar as casas pela proximidade. Em toda a vila, pontos de deslizamentos em maior ou menor proporção caracterizam o local. O solo escorregadio, os desmoronamentos na encosta e as grandes rachaduras no chão, agora tapadas de pedra, dificultam até percursos curtos.

No final de uma das ruas que compõem a Vila Churupa fica a casa da Susana Dias, 38 anos, que ainda mora no local. Conforme a moradora, cerca de 15 famílias ainda seguem na vila, alguns resistentes e outros na procura de uma casa. É o caso dela, que busca um imóvel que comporte outras cinco pessoas que moram com ela e os animais de estimação:

Todo mundo aqui já tem o Aluguel Social, porém os que continuam na vila não querem apartamento, querem casa. Ainda mais com crianças. Também tem os animais, não queremos deixar os bichinhos. Aqui, o colégio e a creche são pertinho. Eles se criaram aqui. Então, não é assim mudar para qualquer lugar.

Susana é uma das pessoas que ainda segue nas áreas de riscoFoto: Beto Albert

Ao contrário de Susana, outros moradores relataram ao Diário o desejo de permanecer no local. Resistentes à mudança, eles argumentam que a Vila Churupa significa o local onde viveram por anos e construíram as residências, seus principais bens materiais. Enquanto isso, o retorno da chuva agrava ainda mais o cenário:

Com as últimas chuvas, os barrancos estão caindo mais e mais. As ruas nem são mais ruas. Virou tudo barranco – conta Suzana ao falar sobre a situação dos trechos de estrada de chão.

Em diversos pontos da Vila Churupa, o deslizamento chegou próximo as casasFoto: Beto Albert


Na Vila Santa Terezinha, a insegurança de quem fica

Na porta de oito casas na Vila Terezinha o aviso de "área interditada" persiste desde o início das chuvas. Na Rodrigues Alves, pedras soltas, alagamentos e o solo escorregadio ainda dificultam qualquer travessia. Na última sexta-feira, 21 de junho, outras 27 casas foram notificadas pela Defesa Civil após o laudo geológico apontar 35 residências em local de alto risco (R4).

Na Vila Santa Terezinha, oito famílias deixaram o localFoto: Thais Immig

Assim, moradoras como Marisete Costa da Silva e Maria Antônia Ferreira Rangel, 45 e 58 anos respectivamente, foram contempladas pelo Aluguel Social e agora procuram um local para alugar. Enquanto a situação não se resolve, a cada nova chuva os moradores ficam em alerta. No quarto de Maria Antônia, uma mala pronta caso precise sair às pressas:

– Cada vez as rachaduras aumentam mais e o chão está cedendo… É um terror, assustador mesmo cada vez que ouço o barulho de chuva ou trovão. Estou procurando uma casa para alugar mas por enquanto não encontrei. Se chover forte vou ter que ir para outro lugar com segurança.


O chão que não para de ceder na Vila Bilibio 

A sensação é de que as enchentes deixaram um buraco na Vila Bilibio – e não foi só na estrutura, que tem grandes rachaduras na rua, já que uma parte está deslizando do morro. Há 60 dias, moradores convivem com a falta da água, com as más condições da rua e com o vazio deixado por quem precisou sair de casa. Mapeada como de risco, a área tem 17 casas que foram notificadas pela Defesa Civil. Aos poucos, residências são esvaziadas e quem fica precisa lidar com as dificuldades e a angústia da procura por um novo lar. Sentimento compartilhado por moradores como Raquel de Castro Lima Barbieri, 44 anos, que cresceu no local e não imaginou ver de perto tamanha mudança.

A Vila Bilibio fica próximo à BR-158, na primeira curva da subida para Itaara, logo após o Trevo do Castelinho, e é circundada por um morro. A área, organizada em diferentes ruas caracterizadas por subidas e descidas de estrada de chão, já não é a mais a mesma. Após rachaduras no solo e deslizamentos de terra, uma das ruas, a Marconi Mussói, foi interditada e, na última semana, começou a ser evacuada. Raquel conta que, com o retorno da chuva, os moradores foram notificados a sair e, muitos deles, já fecharam contratos pelo Programa Aluguel Social:

É complicado ver amigos e família indo embora, são pessoas próximas e anos de convivência. Também tem a questão da água que só chega de hora em hora (ela chegou a ser religada pela Corsan mais de 30 dias após a enchente). Mais falta do que tem. E o próprio processo do Aluguel Social não é fácil porque está difícil encontrar casa para alugar. Fora o sentimento de tristeza por ter que deixar tudo que conquistamos com muito sacrifício e trabalho.

Na Vila Bilibio, rachaduras no solo impedem a travessia de veículos, inclusive os caminhões de mudançaFoto: Beto Albert

Na espera por um lugar bom e seguro para ficar, a moradora e a família precisam enfrentar, no dia a dia, as dificuldades impostas pela rua. O trajeto de quase um quilômetro, da BR-158 até as casas, precisa ser feito a pé. Isso porque há dois meses, a situação é a mesma, com caminho escorregadio, pedras soltas e valetas no meio da estrada que dificultam qualquer travessia e até as mudanças dos moradores.

– Fica difícil nos mudarmos daqui com a rua desse jeito porque não tem como passar. Então, ainda estamos ilhados de certa forma – conta Raquel.


Tipos de risco:

  • R1 (Baixo): Drenagem ou compartimentos de drenagem sujeitos a processos com baixo potencial de causar danos e baixa frequência de ocorrência. 
  • R2 (Médio): Drenagem ou compartimentos de drenagem sujeitos a processos com médio potencial de causar danos, média frequência de ocorrência. 
  • R3 (Alto): Drenagem ou compartimentos de drenagem sujeitos a processos com alto potencial de causar danos, média frequência de ocorrência e envolvendo moradoras de alta vulnerabilidade.
  • R4 (Muito alto): Drenagem ou compartimentos de drenagem sujeitos a processos com alto potencial de causar danos, principalmente sociais, alta frequência de ocorrência e envolvendo moradias de alta vulnerabilidade.


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