Há algo profundamente doloroso e revoltante na forma como boatos podem destruir vidas. Ao longo da história, inúmeros inocentes foram perseguidos, humilhados e mortos não com base em provas concretas, mas por narrativas distorcidas, alimentadas por interesses ocultos e por emoções coletivas descontroladas.
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Um dos exemplos mais simbólicos é o de Jesus Cristo. Há quase 2 mil anos, ele foi acusado de se proclamar “Rei dos Judeus”, uma afirmação que foi interpretada como ameaça à autoridade romana. Foi entregue pelos próprios líderes religiosos de seu povo e julgado de forma sumária. As acusações se sustentaram em boatos e falsos testemunhos. O resultado? Uma execução brutal, que até hoje simboliza a injustiça alimentada pela manipulação de informações.
Séculos depois, a história se repetiu com Joana d’Arc, heroína francesa da Guerra dos Cem Anos. Aos 19 anos, foi queimada viva pela Inquisição, acusada de feitiçaria, heresia e por usar roupas masculinas – acusações infladas por interesses políticos. Não houve justiça, apenas calúnias transformadas em sentença de morte.
... e o padrão se repete
Infelizmente, mesmo após tantos séculos, ainda não aprendemos. O padrão continua a se repetir. Em 8 de maio de 2024, uma tragédia abalou a cidade de Santa Maria e chocou o Estado do Rio Grande do Sul: Isabelly, uma menina de apenas 11 anos, faleceu no Hospital Universitário. As primeiras informações, divulgadas por autoridades e amplificadas pela imprensa, davam conta de que ela teria sido vítima de violência sexual e física cometida pelos próprios pais. Ambos foram presos imediatamente. A comoção foi geral. A revolta, compreensível. Afinal, que ser humano seria capaz de cometer algo tão bárbaro contra a própria filha?
Mas, com o passar dos dias, novos elementos começaram a surgir – e desmontaram a narrativa inicial. Exames realizados em dois hospitais distintos confirmaram: não havia sinais de abuso físico, sexual ou maus-tratos. Testemunhos de familiares, vizinhos e da própria escola reforçavam que Isabelly era uma criança bem cuidada e amada.
Por fim, um laudo pericial concluiu que a causa da morte foi uma pneumonia fulminante, que pode evoluir de forma agressiva e letal em poucas horas, mesmo sem sintomas prévios alarmantes.
Mesmo assim, a libertação da mãe não acalmou os ânimos. A mãe de Isabelly, que sequer pôde se despedir da filha, continuou sendo atacada nas redes sociais. Vi pessoas indignadas com sua soltura, acusando o casal de assassinos, apesar de não existir nenhum indício de violência física ou sexual e nada que indique um crime de homicídio.
Por mais humanidade
Essa cegueira provocada por boatos e suposições transforma a sociedade em um tribunal sem regras. A fúria coletiva substitui a razão. Julga-se antes de investigar, condena-se antes de compreender. E quando a verdade enfim aparece, muitas vezes já é tarde demais para reparar os danos.
Em 2023, mais de 64 mil brasileiros morreram por pneumonia ou influenza. Quantos desses casos geraram comoção nacional? Quantos viraram pauta nas redes sociais? Pouquíssimos ou nenhum. Mas quando uma tragédia é apresentada sob a lente do escândalo e da culpa – ainda que infundada –, o ódio se espalha com uma velocidade que a verdade raramente consegue acompanhar.
Sim, vivemos em um país marcado por violência, e é fato que muitas crianças sofrem caladas. Mas é justamente por isso que precisamos ser ainda mais responsáveis e cautelosos. A justiça exige investigação, serenidade e, acima de tudo, respeito aos fatos. Não podemos permitir que o desespero por justiça se transforme em combustível para a injustiça.
Que nunca esqueçamos: Jesus foi crucificado por boatos. Joana foi queimada por calúnias. Isabelly morreu de uma doença, mas seus pais quase foram destruídos por uma mentira. Que a dor dessa história nos ensine a sermos mais humanos, mais prudentes e menos sedentos por linchamentos morais baseados em suposições.