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O corte nas ciências humanas e o impacto no desenvolvimento tecnológico


Nesta semana, fomos surpreendidos com a notícia de que o presidente Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, pretendem cortar recursos destinados a cursos de humanas, mais especificamente Filosofia e Sociologia, porque tais cursos não trariam retorno financeiro. 

Não vou me ater nos dois aspectos mais lógicos dessa questão - de que os gastos nesses cursos são ínfimos (Filosofia e Sociologia são apenas 2% dos estudantes) e de que a principal função das universidades nunca foi a de gerar renda -, pois essa coluna é sobre tecnologia e há muito o que se falar sobre o impacto dessa decisão (extremamente ideológica) no mundo tecnológico.

Foto: site Oficina da Net

Toda a revolução tecnológica que vivenciamos hoje na era da informação digital teve sua gênese entre as décadas de 1960 e 1970 em uma região dos EUA chamada Vale do Silício, na baía de São Francisco, no Estado da Califórnia. Nela, estão as sedes das maiores empresas de alta tecnologia do mundo e uma das universidades mais prestigiadas no planeta, a Stanford, famosa por articular pesquisas acadêmicas com empreendedorismo. Entre seus alunos, estão os fundadores de algumas das maiores empresas do mundo, tais como Google, HP, Cisco, Yahoo, Nvidia, Tesla e Netflix, todas elas com sede no Vale do Silício.

O que essa região tem de especial? Além do pioneirismo em pesquisa de tecnologia e do espírito empreendedor, o Vale do Silício é conhecido por unir a tecnologia com a área das ciências humanas. Isso fica bastante claro quando lemos os livros de Walter Isaacson, um dos maiores biógrafos da história da tecnologia digital e autor dos livros Os Inovadores (sobre a história dos "fundadores" da tecnologia digital) e Steve Jobs (biografia oficial do fundador da Apple). Nessas leituras, percebemos que os computadores pessoais e os programas de computador se desenvolveram a partir de empreendedores que uniam a computação com o design, a psicologia, a filosofia e as artes.

Um outro livro muito esclarecedor é o From Counterculture to Cyberculture (sem versão traduzida pro português), escrito por Fred Turner, um professor da universidade de Stanford. Turner, que vivenciou a revolução tecnológica de perto, explica que até os anos 1950 os computadores eram vistos como máquinas frias, de aspecto industrial, corporativo ou militar. Foi só no final dos anos 1960 que isso começou a mudar no Vale do Silício, graças à mente aberta dos cientistas da região. Eram cientistas que não apenas participavam, como articulavam a contracultura norte-americana, baseada na cultura libertária e subversiva dos hippies e dos ativistas.

Esses cientistas e empreendedores não buscavam apenas criar um produto tecnológico mais eficiente ou eficaz. Eles buscavam fazer com que os computadores fossem um facilitador para o processo de construção de uma comunidade virtual mais humana e libertária. Para isso, muitos deles se abasteciam de muita filosofia, sociologia, arte e psicologia. Para eles, a revolução tecnológica era necessariamente precedida de uma revolução cultural; ou, em outras palavras, as ciências tecnológicas eram subordinadas às ciências humanas.

Há vários casos que exemplificam essa ideia trazida pelo Turner. Um deles é a revista Whole Earth Catalog, lançada em 1968 por um biólogo de Stanford, em que eram publicados artigos críticos e avaliações de produtos culturais e tecnológicos para o público do Vale do Silício. A revista abordava a tecnologia digital nascente na região sob um viés humanista e libertário, com muita filosofia e muita crítica de arte.

A revista influenciou muitos dos cientistas e empreendedores da região. Um deles foi Steve Jobs, fundador da Apple e fã confesso da Whole Earth Catalog. Jobs era conhecido por unir o espírito empreendedor em tecnologia com a sensibilidade para os conhecimentos das áreas das humanas. Com essa união, ele conseguiu criar um império da tecnologia digital, pois foi a integração das áreas tecnológica e humana que fez com que seus computadores se adaptassem melhor às necessidades das pessoas e da sociedade como um todo.

Em uma famosa entrevista concedida em 1995, Jobs faz uma avaliação sobre a sua maior concorrente, a Microsoft. Para ele, o grande problema dela é a "falta de bom gosto". Ele complementa: a Microsoft "não traz muita cultura a seus produtos", não apresenta um "espírito iluminista". Em outras palavras: a Microsoft foca apenas na área das exatas e tecnológicas, mas esquece os aspectos inerentes das ciências humanas.

Veja o vídeo da entrevista abaixo:

Foi com essa visão holística que Jobs conseguiu o feito extraordinário de transformar a Apple na empresa mais valiosa do mundo, enquanto que a Microsoft, hoje, sofre quedas vertiginosas de vendas e acumula fracassos em mercados essenciais, como os dos dispositivos móveis. Falta ciências humanas nessa empresa de tecnologia!

Além de Stanford, outra universidade que consegue liderar as pesquisas em tecnologia digital é a MIT (Massachusetts Institute of Technology), na região de Boston (EUA). Entre os membros da universidade, de alunos a professores, já passaram 93 prêmios Nobel (lembrando que o Brasil nunca levou um prêmio Nobel sequer). As empresas criadas por atuais ou antigos membros da universidade somam uma receita total de mais de 1,9 trilhões de dólares, o que colocaria o MIT na 10ª posição entre os países mais ricos do mundo.

E agora, o grande fato sobre o MIT: a universidade é mundialmente conhecida justamente pela união das ciências exatas, tecnológicas e humanas. Antes mesmo de ser fundada, em 1856, seu fundador já tinha escrito sua visão de futuro para o MIT: "... uma escola de ciência industrial ajudando o avanço, desenvolvimento e aplicação prática da ciência em conexão com a arte, a agricultura, a manufatura e o comércio".

Um dos laboratórios mais prestigiosos da instituição, o MIT Media Lab, tem como tradição desenvolver pesquisas de alta tecnologia integradas a arte, à comunicação e à psicologia. Embora seja uma universidade de ponta na pesquisa científica de engenharia e tecnologia digital, o MIT é considerado a 2ª melhor universidade na área de artes e humanidades do mundo, segundo a Times Higher Education World University Rankings.

Ou seja: em vez de excluírem os cursos de humanidades, como pretende o atual governo brasileiro, essas universidades de ponta resolveram seguir justamente o caminho inverso: reforçar o investimento em humanidades e integrá-la às pesquisas de alto nível em outras áreas do conhecimento. Já no lado da indústria, em vez de considerar as humanidades como empecilho para a geração de renda, a Apple resolveu apostar na aplicação das humanidades em seus produtos e hoje é considerada a empresa mais rentável do mundo pela prestigiada revista Fortune.

Aí, eu me pergunto o que seria mais inteligente: cortar investimentos em cursos das humanidades ou, ao contrário, reforça-los e integrá-los às pesquisas das áreas exatas e tecnológicas?
Será que um país como o nosso, que pretende crescer e enriquecer, deveria cortar as humanidades do seu desenvolvimento tecnológico?
Me questiono: o que as empresas, as universidades e os países mais evoluídos do mundo escolheriam?
De que lado nosso país decidiu ficar?

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