Fotos: Lucas Amorelli (Diário)/
No chão, apenas as lembranças de que, ali, a alegria e as brincadeiras se sobrepunham aos problemas do dia a dia. Hoje, móveis destruídos, objetos furtados e brinquedos jogados em nada lembram o espaço que, até novembro do ano passado, era um refúgio para mais de 70 crianças e adolescentes, a maioria residente no Bairro Chácara das Flores, região norte de Santa Maria. Essa é a atual situação do prédio que abrigava, desde 2001, o Lar Vila das Flores, que oferecia atividades lúdicas e educativas em meio turno e em tempo integral a crianças em situação de vulnerabilidade.
O lar encerrou as atividades no dia 11 de novembro do ano passado, quando a Igreja Metodista, proprietária da área, solicitou a entrega das chaves do prédio. Mas os problemas começaram bem antes. No dia 21 de junho, a instituição havia fechado as portas por motivos como dívidas e falta de voluntários. Na época, o então diretor Alain Machado Maciel disse que era preciso cobrir a dívida de cerca de R$ 100 mil, reorganizar a casa e formar uma equipe diretiva forte e unida.
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Com objetivo de auxiliar a comunidade e reerguer a instituição, em junho de 2017, um grupo de voluntários - formado por empresários, professores e advogados da cidade _ mobilizou-se para contribuir com a gestão e buscar parceiros e recursos de forma a viabilizar as atividades no Lar Vila das Flores.
- Nossa intenção sempre foi trabalhar pela comunidade. Ao buscar informações sobre a real situação do lar, vimos que havia muitas dívidas, muita coisa errada, resultado de anos de má gestão. Havia casos de voluntários que teriam requerido direitos trabalhistas e que foram pagos, abrindo precedente. Não podíamos ser coniventes com isso - explica a empresária e professora Greice Noro, que encabeçou o grupo.
De acordo com o levantamento feito pelo grupo, a dívida seria superior a R$ 500 mil, incluindo ações trabalhistas, dívidas com a União e atraso em pagamentos de impostos. De junho até novembro, foram diversas ações, incluindo reuniões com a comunidade, análises jurídicas e contatos com lideranças da região.
- Nossa proposta era garantir atendimento a essa comunidade. Para muitas crianças, a refeição oferecida pelo lar era a única que ela fazia ao longo do dia. Esse propósito nos motivava. Mas eram tantas irregularidades que fomos orientados, juridicamente, a não assumir essas dívidas - conta Greice.
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Como último diretor da instituição, Maciel disse que as atividades foram encerradas porque a Igreja Metodista teria exigido as chaves do prédio.
- Vínhamos procurando soluções, mas estava difícil. Doamos o que pudemos para a comunidade antes de fechar as portas - comentou.
Ao Diário, o pastor Antônio Augusto Vargas, da Igreja Metodista, falou que o contrato de parceria que envolvia a área onde funcionava o lar venceu em 2009. De lá para cá, a cedência do espaço não voltou a ser oficializada.
Em discussão, o projeto para abertura de uma nova entidade
Após verificar, juridicamente, a impossibilidade de dar continuidade às atividades do Lar Vila das Flores, o grupo de voluntários passou, ainda em agosto do ano passado, a avaliar novas opções que pudessem atender a comunidade do Bairro Chácara das Flores.
- É uma comunidade carente em todos os sentidos. Foi pensando nessas pessoas, principalmente nas crianças e jovens atendidos pelo lar, que começamos a avaliar a possibilidade de criação de uma nova entidade, com novo CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) e com novo endereço, de forma a desvincular qualquer relação com o Lar Vila das Flores. Vale ressaltar que nossa intenção nunca foi salvar o lar, mas contribuir com a comunidade - explicou Greice Noro, que lidera os trâmites de um novo projeto, denominado "Vila das Cores".
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A primeira proposta de endereço, sugerida pela própria comunidade, seria a utilização do espaço onde funciona o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Norte. Em contato com a prefeitura de Santa Maria, a proposta de um acordo de cooperação foi negada.
Em seguida, o grupo partiu para uma negociação com o Instituto Metodista para viabilização do projeto. Em setembro do ano passado, surgiu a oportunidade de aliar a iniciativa à Congregação da Igreja Metodista Bom Pastor, localizada a poucos metros do então Lar Vila das Flores.
O projeto foi formalizado em outubro, mas pouca coisa andou de lá para cá. Greice ressalta que não houve retorno por parte da Igreja Metodista, e que o grupo de voluntários está, agora, desmobilizado.
Já o pastor Antônio Vargas explica que a proposta de abertura de uma nova entidade está em avaliação jurídica e que os trâmites legais estão sendo seguidos.
- Abrir uma nova entidade, com finalidade de atender crianças, requer um estudo e uma segurança jurídica. São muitos requisitos que precisam ser atendidos para que funcione da forma correta. Para isso, estamos, também, buscando o apoio da comunidade. Nossa intenção é dar início à nova entidade em março - justificou.
O QUE DIZ A PREFEITURA
Segundo o secretário de Desenvolvimento Social do município, João Chaves, não há possibilidade de firmar convênios com o atual Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) do lar porque a diretoria não prestou contas dos repasses de verba da prefeitura:
- Não há possibilidade nenhuma, hoje, de o município ter uma parceria com o Lar Vila das Flores com o mesmo CNPJ, mesmo molde, mesma diretoria. Sei que tem um grupo de empresários que quer assumir lá, conversamos com eles já, mas não existe possibilidade nenhuma se o CNPJ for o mesmo. Não tem como transferir recurso público para uma entidade que não prestou contas dos recursos que ela pegou.
O chefe da pasta lembra que a prefeitura, por meio do Centro de Referência em Assistência Social (Cras), não tem como atender à demanda de refeições que foi deixada com o fechamento do lar, mas que os profissionais estão recadastrando a população do bairro apta a receber o Bolsa Família em uma força-tarefa que vai até fevereiro.
- É claro que tivemos um impacto com o fim das atividades do lar, mas não servimos comida no Cras, que era um dos serviços oferecidos lá - diz João Chaves.
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Os ex-voluntários do lar olham com tristeza o aspecto de abandono do local que, há meses, deixaram em perfeita ordem. O casal Juliane Marafiga, 31 anos, e Sidnei da Silva, 47, além de Joicemar Dornelles da Silva, 48 anos, e Manuele Pinheiro, 27, trabalhavam na cozinha e na limpeza do lar. Alguns deles levavam os filhos para o local.
O grupo cumpria uma das tarefas mais importantes do espaço: produzir a comida que alimentava os alunos. A instituição servia almoço e lanche da tarde para mais de 40 crianças e adolescentes. Os adolescentes só faziam as refeições no lar. Já as crianças tinham atividades das 11h30min às 17h. Como o lar atendia crianças de famílias carentes da comunidade, muitas delas não têm o que comer em casa, explica Joice. Os pais também estão sofrendo com a falta do amparo que era dado pelos profissionais do lar.
- Tem mãe que cria o filho sozinha, precisa pagar o aluguel. Como vai deixar de trabalhar? - questiona a voluntária.
A filha de Juliane e Sidnei, Júlia Letícia, 6 anos, era atendida no local. O outro filho deles, Ruan Sidnei, 12 anos, foi aluno o lar desde quando tinha apenas 1 ano. Com o fim do atendimento, Juliana fica em casa com as crianças para que Sidnei trabalhe.
Segundo eles, os dias mais tristes foram os que antecederam o fechamento.
- As crianças decoraram o local com balões, fizemos um abaixo-assinado, as crianças choravam dizendo que iam passar fome, mas nada disso adiantou - relata Juliane.
Os voluntários contam ainda com a promessa de reabertura da escolinha. De acordo com eles, o grupo que assumiu a diretoria antes do fechamento prometeu resolver o embargo da dívida e reabrir o local. Por enquanto, o que fica é a preocupação com a depredação e os furtos da estrutura.