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Para que não se esqueça: quem são as pessoas que mantêm a memória da tragédia da Kiss viva

Jaiana Garcia

data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Eduardo Ramos (Diário)

André, Ligiane, Flávio, Vanessa, Marília, Bel e Marcos. Nomes que representam a empatia e a solidariedade. Ao longo dos oito anos e 10 meses após o incêndio na boate Kiss, diversas pessoas foram responsáveis por não deixar a tragédia cair no esquecimento. São sobreviventes, pais, mães ou amigos de vítimas que, desde o começo, estão juntos ou sentiram a necessidade de apoiar a causa com o desenrolar dos acontecimentos, porém, todos unidos pelas mesmas vontades: a luta por Justiça e recolocação da tragédia na memória da cidade, que, com o passar dos anos, viu o número de pessoas engajadas diminuir.

No primeiro ano, houve uma mobilização e consternação em relação ao incêndio. Diversos protestos e homenagens foram organizados. Um deles chegou a reunir cerca de 30 mil pessoas no centro de Santa Maria. Em outro momento, a Câmara de Vereadores foi ocupada por um grupo de 250 pessoas que passou seis dias e cinco noites no local pedindo pela renúncia de membros de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada para apurar as causas e responsabilidades da tragédia. O Minuto do Barulho reuniu centenas na Praça Saldanha Marinho, e a tenda da vigília era ponto de encontro e de solidariedade. As vigílias em todos os dias 27 uniram muitos abraços. Na última, neste ano, eram apenas quatro pessoas em frente à boate.

Em quase nove anos, familiares e sobreviventes dizem que se sentiram "abandonados" e reclamavam da "apatia" da população. Em contraponto, houve quem usou a dor e o luto para não deixar que a maior tragédia do Estado ficasse no passado. Nesta matéria, contamos quem são algumas dessas pessoas.

Relatos da Kiss: sobrevivente relembra a dor e as feridas causadas pela tragédia

O casal que é símbolo de luta e força há oito anos
O casal Ligiane Righi e Flávio Silva (foto acima), pais de Andrielle Righi, que tinha 22 anos quando perdeu a vida no incêndio, sempre foi símbolo de resistência no longo caminho por justiça, que terá um desfecho a partir de 1º de dezembro, em Porto Alegre. Em quase nove anos, eles estiveram à frente de passeatas, protestos e vigílias. Flávio foi líder do movimento Do Luto à Luta e teve a companhia da mulher nos momentos mais difíceis e decisivos, como é até hoje.

- A AVTSM foi criada em paralelo ao movimento. Só que eu acho que antes de sermos representados por uma instituição, nós somos pais que perderam os filhos na tragédia. A gente se sentia muito à vontade de ir para a rua e cobrar respostas dos envolvidos. A associação tinha uma postura mais técnica, mais comedida. O movimento ia para a luta mesmo. Estavam querendo nos sufocar, a gente precisava que a população nos visse - avalia Flávio.

Eles relembram a ocupação da Câmara de Vereadores, um marco da história recente da cidade. Flavio conta que achava uma vergonha o que acontecia na CPI, um "jogo de cartas marcadas" que não queria trazer depoimentos que pudessem comprometer o poder público. Isso foi revoltando os pais e mães:

- Era um dia normal de sessão na câmara. Nós fomos, colocamos os banners dos nossos filhos e ficamos nos comunicando com o pessoal que estava do lado de fora. Em um certo momento, avisamos que estava na hora de ocupar. Lembro de ouvir o som do bumbo. Chegou o carro da Brigada Militar e tentou impedir, mas fizemos uma corrente para evitar que os seguranças fechassem as portas. Fomos até a tribuna, anunciamos a ocupação e já fizemos algumas exigências para a desocupação. Ganhamos muito apoio da população. A gente nem sabia de onde saía tanto alimento para nos manter lá sem precisar sair - conta.

A tragédia, que destruiu muitas famílias, aproximou e fortaleceu o casal. Eles lidaram, ao longo dos anos, com comentários desrespeitosos, sempre firmes com a certeza de que não deviam revidar. Ouviam frases como "virem a página", "vocês vão parar quando?" ou "deixem os filhos de vocês descansarem".

- Isso magoava muito a gente. Só pedimos empatia. Não insultem, não julguem, só respeitem. As pessoas têm vergonha de amar. Temos que falar, faz parte do luto. Parece que a gente ofende em pedir por justiça - afirma Ligiane.

Até hoje, os pais recebem comentários negativos, que são potencializados pelas redes sociais. Eles acreditam que a desmobilização da população é um processo natural, mas explicam que gostariam de mais respeito das pessoas.

- Em todos os acontecimentos, todo mundo se mobiliza, fica emocionado, e depois passa. Só que para a gente nunca mudou, é até pior. Tentam comparar nossas dores. Perder um filho é a pior dor que existe. É um pedaço nosso. Levantamos todas as manhãs e sabemos que temos que ir à luta. Isso que segue nos movendo. Estamos fazendo nossa parte - garante Ligiane.

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Marcelo Oliveira (Diário)

A internet como ferramento contra o esquecimento
O produtor editorial André Polga (foto acima), 28 anos, foi um dos criadores da página Kiss: Que Não Se Repita nas redes sociais, em 2014. A intenção, como fala a descrição dos perfis, era combater a cultura do esquecimento e manter viva na memória da cidade a perda de 242 pessoas. Atualmente, as páginas reúnem 35 mil seguidores no Facebook e 20 mil no Instagram. O grupo que mantém a atividade dos perfis é formado por amigos de vítimas e sobreviventes do incêndio.

André conta que, ainda em 2013, já sentia a falta de apoio. Pessoas próximas ficavam incomodadas com os pedidos de respostas e justiça feitos por ele. A página surgiu como uma necessidade de desabafo, e o espaço foi ampliado para que todos pudessem falar. O produtor editorial perdeu uma colega de faculdade e uma amiga de infância no incêndio.

- Existe uma falta de entendimento da dor e do luto vivido por nós. Eu procurei transformar meu sofrimento em uma forma de batalhar por justiça. Ainda não sei como vai ser depois que tivermos as respostas no julgamento. Tenho receio de viver todo o luto de novo - afirma Polga.

Dentre as ações do coletivo, a campanha realizada em 2020, expondo as queimaduras e amputações dos sobreviventes e trazendo as marcas físicas e psicológicas deles, foi a mais marcante para André:

- Eu pude conhecer mais a fundo essas pessoas e a história delas. Eu não sou um sobrevivente, mas temos muitas coisas em comum, as nossas histórias se ligam.

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"A Kiss destruiu minha família, precisava gritar por justiça"
Vanessa Vasconcelos, 32 anos, trabalhou na boate Kiss durante três anos. Nesse período, conseguiu emprego na casa noturna para a irmã, Letícia, e outros dois amigos. Ela perdeu todos no incêndio, além de outros conhecidos. No começo de janeiro de 2013, antes da tragédia, deixou o emprego e, por isso, não estava na boate no dia 27. Vanessa foi uma das criadoras do movimento Santa Maria do Luto à Luta, responsável por grandes mobilizações em Santa Maria no primeiro ano da tragédia.:

- Eu era o braço direito do Kiko (Elissandro Spohr, um dos réus). Eu fui umas das pessoas que mais fez festa na Kiss, mais divulgou, mais colocou pessoas lá dentro. A Kiss, no fim, destruiu a minha família. Na época, eu fui muito ativa nos atos depois do incêndio. Entendia que se eu não gritasse por justiça, ninguém faria isso pela minha irmã. Fui em todos os programas de televisão possíveis. Sofri ataques de pessoas que não entendiam nossa dor.

O movimento Do Luto à Luta na época, foi liderado por Flávio Silva, atual presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes (AVTSM), e acabou se fundindo com a associação. O pai de Vanessa e Letícia, Renato Vasconcelos, que também fazia parte do grupo, morreu em 2018. "Morreu de tristeza", atribui Vanessa.

Hoje, ela mora em Porto Alegre e, durante alguns anos, ficou longe de qualquer envolvimento com assuntos relacionados à tragédia. Às vésperas do júri, voltou a falar do assunto:

- A minha irmã foi trabalhar e não voltou. São os últimos dias que eu tenho para gritar e voltar a trazer visibilidade para a tragédia. Eu vou fazer por ela e por 242 vozes que foram silenciadas.

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: divulgação TV OVO

Audiovisual para ficar na memória
O coletivo de produção audiovisual TV OVO desde 2016 acompanha de perto a luta por justiça dos familiares e tenta recolocar o tema do incêndio no centro das discussões. Marcos Borba, documentarista e associado fundador da TV OVO, conta que a necessidade de envolvimento surgiu a partir da percepção de que a melhor forma que a cidade poderia tratar do assunto é lembrando:

- Todo o santa-mariense é impactado pela tragédia de alguma forma. Não tem como passar livre. Não tem como esquecer. Lembrar, conversar e discutir é importante para que Santa Maria seja um exemplo de prevenção e acolhimento.

Em 2017, quando a tragédia completava quatro anos, um evento promovido pela TV OVO e outros parceiros tratou de memória e trauma e voltou a lotar a Praça Saldanha Marinho. Naquele momento, depois de muitos meses, o incêndio era recolocado na vida da cidade. Em 2018, a TV OVO foi parceira na produção do documentário Depois Daquele Dia, de Luciane Treulieb, que mais uma vez trouxe um grande número de pessoas para a praça para o lançamento.

- Nossa necessidade, a partir daí, foi guardar a memória do que estava acontecendo no dia a dia, nos atos, nas reuniões. Um registro observador. Imagens e sons que pudessem perceber toda a luta dos familiares. Tudo que eles passam para se fazerem ouvidos e, muitas vezes, não serem compreendidos.

Desde então, a maioria dos vídeos publicados nas redes sociais da AVTSM são produzidos ou finalizados pela TV OVO. Para além do trabalho, laços de amizade foram criados nós últimos seis anos de convivência e apoio.

- Os familiares dividem com a gente as angústias e, mesmo vivendo a dor, eles também nos acolhem em muitos momentos. Há muita união entre eles. Já fui na casa de várias famílias e essa relação não vai terminar com o fim do júri. Estaremos sempre juntos - finaliza.

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Ronald Mendes (arquivo/Diário)

Os rostos por trás dos gritos por Justiça
Marília Torres Ribeiro (na foto, acima, com o megafone) fez parte do movimento Santa Maria do Luto à Luta. Era um rosto conhecido nas manifestações por Justiça. Assim que os acusados pelo incêndio deixaram a prisão, o grupo mobilizou a população pela internet e colocou mais de 5 mil pessoas na rua, vestidas de preto. Ela esteve presente na ocupação da Câmara de Vereadores e foi uma das pessoas que pressionou o parlamento para a instalação de uma CPI para investigar o caso:

- Nosso movimento tinha um viés mais de luta mesmo. Nós enfrentávamos. Não sei como tive força para fazer tudo aquilo. Via o sofrimento da minha tia e não me conformava com a situação. Fiquei adoecida, acabou comigo. E tive que saber a hora de parar - relembra.

Marília perdeu a prima, que considerava uma irmã. Flávia Torres estava comemorando o aniversário na boate. Por uma briga "boba" com a prima, Marília não foi à comemoração. Ela lembra que, perto das 2h, o pai de Flávia e tio de Marília, que é taxista, ligou avisando do incêndio. Ela foi para a rua para procurar a prima e só parou no domingo, às 17h, quando soube da morte da prima e de quatro amigas que estavam com ela na boate.

 Hoje, Marília mora em Itajaí, Santa Catarina. Quando fala de Santa Maria, as pessoas ligam a cidade à tragédia e acreditam que o incêndio foi uma fatalidade, ao contrário do que pensa a prima de uma das vítimas:

- Quem acompanhou tudo de perto sabe que não foi uma fatalidade. É muito dolorido. Não se trata apenas de um julgamento, se trata da memória.

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Apoio mesmo à distância
Bel Bonotto, 33 anos, é uma das integrantes do coletivo Kiss: Que Não Se Repita. Ela, que mora no Rio de Janeiro, não chegou a conhecer pessoalmente o amigo, João Carlos Barcelos, morto no incêndio. Em 2006, o conheceu pela internet, pelo Fotolog. Durante muito tempo, trocaram mensagens quase que diariamente. Em 2013, ano da tragédia, a última mensagem havia chegado na virada do ano com um "feliz 2013". Um dia antes do incêndio, Bel sonhou com uma igreja pegando fogo. No dia seguinte, soube do incêndio em uma casa noturna de Santa Maria. Começou a ligar para João e ninguém atendia.

- Ele tinha ideia de tirar carteira de motorista e vir para o Rio para a gente se conhecer, mas acabou não acontecendo. Em 2014, eu fui para Santa Maria. Conheci familiares dele, participei da vigília de um ano, fui no cemitério onde ele está enterrado. E foi aí que eu percebi que era real. Até então, a tragédia não era palpável. Foi surgindo uma vontade de ajudar, de buscar por justiça - relembra.

Em 2015, ela retornou a Santa Maria e conheceu sobreviventes e amigos de vítimas e, em 2019, foi convidada a participar do coletivo. Foi com o grupo que sentiu que a própria dor era, finalmente, validada:

- As pessoas não entendem a dor que não viveram. Eu ouvia muito "você nem conheceu ele pessoalmente, porque está assim?". Ninguém deve me julgar pelo que estou sentindo. Quando conheci o André, a Vanessa, o pai da Vanessa, eu me senti muito acolhida.


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