Os vazios da fome: os reflexos físicos, psicológicos e sociais da falta de comida

Pâmela Rubin Matge

Os vazios da fome: os reflexos físicos, psicológicos e sociais da falta de comida

É difícil estampar a métrica da fome. Em Santa Maria, de 2021 para 2022, houve um aumento de 14,4% da população que aderiu ao Cadastro Único, um instrumento de coleta de dados que identifica as famílias de baixa renda.

A geladeira e os pratos vazios são, em verdade, o reflexo de um vazio  ainda maior para milhares de famílias: a falta de perspectiva. Se o recrudescimento do que é denominado epidemia de fome é apontado por especialistas por fatores associados à pobreza, que decorre do desemprego, da queda da renda e do aumento da inflação, à pandemia, ao clima, à guerra no leste europeu e ao desmonte de políticas sociais, para quem não tem o que comer, somente  aquisição imediata de um alimento importa. 

– Não tem para onde correr. Trabalho por empreitada. Quando o serviço não parece, a comida também não – relata o pedreiro Alcione Dias Gracioli, 40 anos, ao lado da companheira Cristiane Vianna Andrade, 39. Eles vivem com cinco filhos e uma neta em uma pequena casa de madeira no Bairro Km 3, em Santa Maria. No meio-dia da última quarta-feira, todos garantiram um prato de arroz e feijão. Mas nem sempre é possível. Se falta comida, sobra constrangimento. Cristiane mal levantou os olhos marejados enquanto o companheiro relatava a situação da família. 

É difícil estampar a métrica da fome ou o quanto cada um tem de fome. Na esteira da problemática social longe de soluções, o conceito segurança alimentar contribui nas interpretações.

Diferentes índices e crítérios são usados como ferramentas para medir o abstrato. Em Santa Maria, de 2021 para 2022, um aumento de 14,4% da população que aderiu ao Cadastro ùnico (CADÙnico) é apontado como um reflexo. O CadÚnico é um instrumento de coleta de dados que objetiva identificar todas as famílias de baixa renda para fins de inclusão em programas de assistência social e redistribuição de renda. Atualmente, a cidade tem  66.885 pessoas cadastradas.

Pesquisador do assunto, o economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS Ely de Mattos esclarece que é preciso entender para qual número está olhando. Há diferentes estatísticas em relação à pobreza e à fome, por exemplo, mas coincidências não surpreendem:

–  A média da pobreza do Brasil é de 20 milhões de pessoas extremamente pobres, que variam com a região, mas é de cerca de R$ 280 de renda domiciliar per capita. A certeza é que há gente com fome e que passar fome é insegurança alimentar grave. 

Segundo o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), o percentual de pobres é 22,3% e, em números absolutos, 47,34 milhões; o percentual de extremamente pobres é 9,5% e, em números absolutos é 20,14 milhões.

O alimento sai do armário, e a fome entra pela porta

Ainda que famílias numerosas e de baixa renda tenham alimentos em casa, principalmente arroz, macarrão e açúcar para serem consumidos, sendo muitos vindos de ações voluntárias –, nem sempre são suficientes e nutritivos para contemplar refeições saudáveis.

É, pois, o acesso físico, econômico e social a alimentos seguros, nutritivos e em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades e preferências alimentares de cada indivíduo, que se conceitua denominar a segurança alimentar, conforme explica a nutricionista Grazielle Castagna Cezimbra Weis, doutora em Ciência e Tecnologia dos Alimentos pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

– Muitas famílias vêm reduzindo a quantidade dos alimentos que consomem ou ainda excluindo muitos da sua mesa, tais como a carne, isso faz com que a alimentação possa não estar nutricionalmente completa e balanceada, colocando essa família em uma condição de risco, de insegurança alimentar – explica.

Recentemente, um outro estudo compilado no 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, apontou que, em 2022, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no Brasil. O documento, publicado no dia 8 de junho, mostra que mais da metade (58,7%) da população convive com a insegurança alimentar o que fez o país retroceder a um patamar equivalente ao da década de 1990.

A especialista esclarece que a mensuração da segurança alimentar podem ser classificadas por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), proposta pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em três diferentes níveis: leve, moderada e grave. Todos os níveis geram consequências ao desenvolvimento físico, psicológico e social, bem como refletem na manutenção da saúde, podendo levar à desnutrição ou sobrepeso, anemia e outros problemas.  

Embora mais incidente na periferia, a situação, conforme assinala Grazielle, está cada vez mais perto do Centro. Para economizar, se opta, por exemplo por uma bolacha recheada em vez de uma fruta.  Outro caso é do consumo de carnes mecanicamente processadas, os “bifes empanados”. São fontes de proteína animal, mas com alto ter de gordura e que de “carne”,  tem muito pouco.

Neste cenário, a relação entre insegurança alimentar e fome são conceitos próximos e estão relacionados à ausência de comida e à violação de um direito humano: a alimentação. Quem está passando fome, conforme a nutricionista, está em uma condição de insegurança alimentar grave.

– É difícil ter a métrica da fome de cada um e quantidade que cada um precisa, mas temos a questão da qualidade. Nos deparamos com questões culturais e de hábitos. Hoje, se formos ver, o que está  está mais caro é a carne, a verdura e frutas pela própria condição cadeia produtiva. Alguns outros alimentos industrializados e ultraprocessados, são mais acessíveis pela forma de processamento ou pelas taxações de impostas.

“O voluntariado é fundamental, mas só ajuda a apagar incêndio”

Frear a escalada da fome é um desafio que ultrapassa governos. Para o economista Ely de Mattos, as iniciativas devem partir, sobretudo, do poder público, a partir da retomada de políticas de reabastecimento de alimentos. Segundo ele, desde 2016, as reduções têm sido drásticas e gradativas, e os reflexos seguem reprcutindo socialmente

– As métricas de pobreza são instantâneas. Já a fome leva em conta meses anteriores. A observação da fome é o reconhecimento do que está acontecendo. A curtíssimo prazo, o ataque a esse problema tem de ser rápido e direto, fazer a comida ou a renda chegar na pessoa. No médio e longo prazo temos que retomar as políticas de abastecimento. Já as ações de voluntariado são frutos da falta de ações de políticas públicas eficientes. É claro que são muito válidas e necessárias, porém, o voluntariado é fundamental, mas só ajuda a apagar incêndio”. A  obrigação de reverter este cenário é do poder público. (Colaborou Gabriel Marques).

Neste ano, merenda escolar terá renda suplementar de R$ 500 mil no município

Iniciativas da sociedade civil e programas sociais atuam para reduzir a fome de populações que têm no Estado ou no voluntariado a possibilidade de um prato de comida. Em Santa Maria, dezenas de projetos que incluem sopões, cafés solidários e ações diversas distribuem alimentos e refeições às pessoas em situação de vulnerabilidade social em diversos bairros. 

João Chaves, secretário de desenvolvimento Social, diz que o reflexo da fome na cidade pode ser sentido por meio da procura dos serviços diretamente na secretaria ou mesmo nos Centro de Referência da Assistência Social (Cras). Chaves celebra a manutenção do Restaurante Popular, que oferece 12.600 refeições mensais, e a existência de sete cozinhas comunitárias, embora o atendimento não seja diário e a disponiblidade das refeições não seja a mesma em cada unidade.

– Investimos R$ 1 milhão no Restaurante Popular, além da nossa parceria com a manutenção  dos espaços para o Banco de Alimentos e do Mesa Brasil, do Sesc.  Uma conquista importante deste ano foram as 400 cestas básicas que conseguimos por meio da Defesa Civil  – relata.

Uma medida emergencial foi destinada pela prefeitura de Santa Maria para suplementar em R$ 500 mil os recursos para merenda escolar, além do repassado pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). O valor será distribuído entre as 80 escolas municipais e mais de 22,5 mil alunos, por meio das secretarias de Educação e de Finanças.

Até então, o valor a ser repassado por dia letivo, para cada aluno, é definido de acordo com a etapa de ensino (veja ao lado). A merenda de cada aluno dos ensinos fundamental e médio custava, em média, R$ 0,36, e o orçamento enviado pelo governo federal destinou ainda menos recursos que em 2021.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar oferece alimentação e repassa valores financeiros efetuados em 10 parcelas mensais para a cobertura de 200 dias letivos, e é acompanhado e fiscalizado pelos Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) Tribunal de Contas da União (TCU), pela Controladoria Geral da União (CGU) e pelo Ministério Público.

Na casa de Carlos não há fogão a gás e nem banheiro

Por volta das 16h da última quarta-feira, o catador de materiais recicláveis Carlos Irineu Rodrigues, 45 anos, lembrou que ainda não tinha almoçado. Para o catador, não havia nenhum problema em ter pulado uma refeição e, inclusive, se mostrou contente em ter pacotes de arroz e macarrão no armário, além de uma porção de feijão que deixava de molho em uma bacia sobre a pia. Conforme ele, os grãos estavam imersos em água fazia dois dias. Carlos vive na Vila Maringá, no Bairro João Luiz Pozzobon. Antes, a “casa” era a caçamba de um caminhão abandonado. 

Na atual residência, tem pia, armário, mas não tem fogão a gás. Na casa de um só cômodo não há nem sequer banheiro. As precárias condições sanitárias e de moradia passam quase despercebidas por quem tem como maior preocupação o que comer no dia seguinte.

– As necessidades faço no mato, e banho, às vezes, pelos vizinhos. Como sou catador e ando muito por aí, ganho bastante coisa. O importante é ter o que comer no dia de amanhã, né? – diz sorrindo e alheio à própria condição.

SANEAMENTO

A falta de saneamento e do acesso regular e permanente à água – também conhecida como insegurança hídrica – atinge 12% dos brasileiros. Nesses lares, a fome estava presente em 42,%, conforme  2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar.

Serviços oferecidos e programas de transferência de renda

Merenda escolar*

Creches -R$ 1,07Pré-escola – R$ 0,53Escolas indígenas e quilombolas –R$ 0,64Ensino Fundamental e Médio – R$ 0,36Educação de jovens e adultos –R$ 0,32Ensino integral – R$ 1,07Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral –R$ 2Alunos do Atendimento Educacional Especializado no contraturno: R$ 0,53

*Até junho

Os programas sociais

Tarifa Social de Energia ElétricaCarteira de idoso interestadual (para fora do Estado)ID JovemContribuição facultativa baixa rendaIsenção de taxa de inscrição em concursosITVBITelefone popularBolsas em escolas particulares

Como ter acesso aos programas

Todos programas são acessados por meio do Cadastro Único. Cada um possui a sua particularidade, mas, no momento que a pessoa realiza o CadÚnico, é possível determinar quais outros programas ela poderá acessar. Todos são baseados na faixa de renda e número de moradores. Para se inscrever no CadÚnico, é necessário se apresentar na Secretaria de Desenvolvimento Social (Rua General Neto, 504) com a documentação original de todas as pessoas do núcleo familiar que residem na mesma casa. É recomendável que o cadastro seja atualizado, pela menos uma vez por ano

Para os maiores de 18 anos ou mais.

Os documentos necessários são:

Carteira de IdentidadeCPFCarteira de TrabalhoTítulo de eleitorComprovante de residência (água, luz, telefone)

Para os menores de 18 anos.

Os documentos necessários são:

Certidão de NascimentoCPF e RG (se tiver)Frequência escolar se a família recebe Bolsa Família (para dependentes dos 4 aos 17 anos é obrigatório)Mais informações pelo telefone da Secretaria de Desenvolvimento Social _ (55) 3222-7931

A vulnerabilidade em números

66.885 pessoas estão registradas no Cadastro Único (CadÚnico) em Santa Maria. Conforme a Secretaria de Desenvolvimento Social, os serviços do Card Social foi extinto, e o Bolsa Família foi substituído pelo Auxílio Brasil. As informações referentes as faixas de renda não foram disponibilizadas. O Executivo municipal informou que está em contato com o Governo Federal, pois o sistema que disponibiliza os relatórios trimestrais encontra-se fora do ar e sem previsão de retorno. Aumento de 14,4% O dado que a pasta tem, atualmente, é que Santa Maria tem registrada no Cadastro Único (CadÚnico) 28.750 famílias, o que totaliza 66.885 pessoas. São 8.425 pessoas a mais que  o ano passado,quando o número era 58.460. O aumento é de 14,4%. À  época, 21.102 pessoas vivam com renda de até R$ 89, o que é considerado situação de extrema pobreza pelo governo federal. 

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