Orgulho LGBTQIA+

Luta, amor e direito: casais homoafetivos celebram os avanços da última década

Luta, amor e direito: casais homoafetivos celebram os avanços da última década

Fernanda Abegg (Divulgação)

“Mesmo não sendo o pai biológico, ele tem essa capacidade de amar, de cuidar. E eu acho muito interessante, porque não vejo na maioria das pessoas. Talvez, foi isso que me fez aturá-lo por todos esses anos”. As palavras, em tom de emoção e de brincadeira, do doceiro João Jerônimo de Melo Sodré, registram um momento emocionante da trajetória com o companheiro de longa data, o artesão Carlos Alberto da Cunha Flores, conhecido como Kalu. O casal, que está junto há mais de 40 anos, é uma das 92 relações homoafetivas que registraram a união no cartório de Santa Maria, desde 2013.Sendo que 62% delas são entre casais femininos e 38% entre casais masculinos, de acordo com informações da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul.

Em 2023, completa 10 anos que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução que proíbe cartórios de se negarem a realizar casamentos homoafetivos. Em Santa Maria, a autorização começou no dia 14 de maio de 2013. A primeira união realizada pelo Cartório de Registro Civil do município ocorreu no mês de agosto. Desde então, passado uma década, foram celebrados 92 casamentos LGBTQIA+, o que pode não ser considerado um número expressivo, mas, mesmo assim, é um marco para a comunidade pelo simples fato de conseguirem realizar um direito, que deveria ser garantido por lei. Neste mês, em que se celebra o orgulho LGBT+, a reportagem conversou com três casais sobre a importância de ter este direito, a necessidade de manter uma luta permanente contra preconceitos e, principalmente, sobre amor, afeto e cumplicidade, independente de orientação sexual. 

As barreiras da legislação

Apesar dos avanços sociais, a resolução feita pelo Conselho é uma jurisprudência. Ou seja, no Brasil, não tem lei que ampara as questões de direitos e de garantias da comunidade LGBTQIA+. Em 2018, a então senadora Marta Suplicy (MDB-SP) defendeu a aprovação do Projeto de Lei do Senado nº 612, de 2011, que alteraria o Código Civil para permitir o reconhecimento legal da união estável entre “duas pessoas”, e não apenas, “união estável entre homem e mulher”. No entanto, o projeto não foi analisado no plenário e acabou arquivado. Conforme a advogada Renata Quartiero, vice-presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santa Maria, vários projetos já foram protocolados no Senado e na Câmara dos Deputados, mas estão parados.

– A maior luta, uma das principais bandeiras da comunidade é a questão do casamento homoafetivo. Mas, por que não é lei? Porque temos legisladores que têm preconceito e outro conceito do que é família. Mesmo com os avanços dos direitos humanos, as evoluções de direitos e de garantias da população LGBTQIA+ acabam passando por essas barreiras, por causa das pessoas que a sociedade coloca no meio político.

A advogada ainda explica que é a mesma questão para a criminalização da LGBTfobia. Desde junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou os crimes que tiveram como motivação a LGBTfobia aos crimes raciais, aplicando as mesmas penas. A decisão mostra avanços nos direitos e a omissão do Legislativo em relação à população. 

– No judiciário, temos avanços nessas questões. Mas mesmo assim, não tem uma lei que ampara. A decisão do STF é um alerta para os legisladores. Por isso, é uma luta constante. Esbarramos em preconceitos, em pessoas que não querem discutir essas temáticas. E ter o direito ao casamento é uma garantia das sucessões previdenciárias (por exemplo, pensões). A resolução do Conselho Nacional de Justiça tem força, não podemos tirar o mérito, porém a busca pela lei é primordial.

Número de casamentos em Santa Maria

Em Santa Maria, segundo informações do Cartório Civil das Pessoas Naturais da 2ª Zona, até maio de 2023, o município contabilizou quatro casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Em 2013, primeiro ano de vigência da autorização, ocorreram três.

  • Em 2014 –  4
  • 2015 –  7 
  • 2016 – 10
  • 2017 – 7 
  • 2018 – 9
  • 2019 – 14
  • 2020 – 7
  • 2021 – 11
  • 2022 – 16

Estado celebrou 3 mil casamentos entre pessoas do mesmo sexo

Até abril de 2023, o Rio Grande do Sul contabilizou 3.096 casamentos entre pessoas do mesmo sexo. De acordo com informações da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul, em 2013, primeiro ano de vigência da autorização nacional, foram 150 celebrações, seguidas por 212 em 2014, 211 em 2015, 220 em 2016, 249 em 2017 e 480 em 2018, ano com o maior crescimento, com aumento de 93%. Em 2019, foram 391 celebrações, enquanto 2020, primeiro ano da pandemia, totalizou 253. Em 2021 os matrimônios voltaram a crescer, com 344 atos, em 2022 atingiu 436, um aumento de 27% em relação ao ano anterior. Até o mês passado foram 150 casamentos.

Os matrimônios entre casais femininos representam 56,4% do total de casamentos homoafetivos no Estado, tendo sido realizadas 1.745 celebrações deste tipo em cartório. Em 2022, foram 271 cerimônias, aumento de 28% em relação ao ano anterior.

Já as uniões entre casais masculinos representam 43% do total de casamentos no RS. Foram realizadas 1.351 celebrações deste tipo em cartório. No ano passado foram 165 cerimônias, aumento de 25% em relação a 2021.

A escrevente no Registro Civil de Santa Maria Gabriela de Avila Ruviaro, explica que o processo para o casamento se dá em dois momentos: primeiro, o casal encaminha a habilitação com a documentação exigida e escolhe a data, que deve respeitar o prazo de publicação do edital. Depois, é o dia do civil, da cerimônia com o juiz de Paz e o oficial responsável pelo Cartório. O processo, atualmente, é o mesmo para casais hétero e homoafetivos.

Até pouco tempo, as habilitações eram encaminhadas à Direção do Foro e ao Ministério Público. Isso, somado ao prazo de publicação do edital, fazia com que os casais pudessem casar, no mínimo, um mês após encaminhar o processo. Há uns três anos (desde o início da pandemia), o Cartório não envia mais as habilitações ao Foro nem ao MP e, há mais ou menos um ano, a publicação do edital se dá de forma eletrônica e não mais física. Isso acelera o processo – relata a escrevente.

Cenário Local  

Para a coordenadora da ONG Igualdade, Marquita Quevedo, é uma transformação para a comunidade LGBTQIA+ ter o reconhecimento desse direito. Por muito tempo, a população ficou invisível para o poder público, ainda tem muito no que avançar, mas ocupar diversos espaços da sociedade já permitem uma cidadania plena para essas pessoas, explica a coordenadora.

– Temos relato desses anos, de muitos casais que tinham relações de 10 ou 20 anos e, se algum dos dois falecia, a família tomava conta dos bens. Porque o direito não era reconhecido. É uma vitória para o movimento e para nós, além de ser uma forma de combater o preconceito e a discriminação sobre a nossa população. Em Santa Maria, temos muitas questões históricas. Teve o casamento do Nei D’Ogum com o companheiro Ricardo. É um marco importante, precisamos lembrar desse cenário.

Marquita, assim como outras pessoas, continua na luta para a criação de políticas públicas afirmativas para a valorização dos direitos da comunidade e para o combate ao preconceito.

“A tranquilidade de saber que você não está esquecido totalmente”

Foto: Eduardo Ramos (Diário)

Juntos há 45 anos e casados há 5 anos, o casal Kalu, 71, e João, 72, conhecido pelas “cocadas do João”, conheceram-se ainda no período da faculdade e fazem, de uma das casas rosa salmão da Vila Belga, seu lar. Cada um com as individualidades, acabam se completando, um é mais falante, o outro tem um humor mais ácido: João comentou que “nem Jesus aguentaria tanto tempo”, mas claro, é só jeito de falar, pois a cumplicidade se percebe no olhar. 

Em 1978, os dois estavam no período final da universidade. João, que é carioca, morava na Casa de Estudante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e estudava Zootecnia. Kalu, que é da cidade, morava com alguns amigos no Bairro Camobi e cursava Filosofia. 

– Um dia, depois de um show dos Doces Bárbaros, em Porto Alegre, eu fui em uma festa lá, em um apartamento e eu encontrei o João. Lá nós conversamos pela primeira vez. Depois de quase meio ano daquela conversa, a gente foi se reencontrar. Durante esse período, a gente apenas se cumprimentava, quando se encontrava – relembra Kalu.

O encontro, no qual Kalu se refere, é em uma véspera de feriado do dia 1º de maio, em que os dois se esbarram no centro da cidade. O estudante de Filosofia ia para um sítio em Santana da Boa Vista e convidou João para ir junto, já que o graduando de Zootecnia gostava. Desde então, construíram uma vida juntos. O casal tem dois filhos, o Alexandre e o Rafael, motivo de muito orgulho. Além disso, são avôs também. 

O casal junto com a cachorrinha Beatriz Foto: Eduardo Ramos (Diário)

Cumplicidade

Ao longo desses 45 anos de relação, eles já viajaram, moraram 13 anos em Saquarema, no Rio de Janeiro, onde tinham uma pizzaria e local que conheceram os filhos. Ao serem questionados sobre momentos marcantes, mesmo difíceis com tantas memórias, Kalu lembra de uma viagem pelo Rio São Francisco que fizeram de barca em 1979. Já João, contou a lembrança de um gesto do companheiro:

– Os meninos tinham acabado de ir lá pra casa. Ele (Kalu) estava de mão dada com o Rafael, que tinha uns 8 anos, fico até emocionado de lembrar. Eles juntos indo pegar um ônibus, para Ponta Negra, depois para Maricá e depois para o Rio de Janeiro, para mostrar um shopping para o Rafael. Mesmo não sendo o pai biológico, ele tem essa capacidade de amar, de cuidar. E eu acho muito interessante, porque não vejo na maioria das pessoas. Talvez, foi isso que me fez aturá-lo por todos esses anos.

Os dois concordam que ao longo de quatro décadas juntos, a sociedade aceita mais, mas ainda existe o preconceito, que precisa ser rompido. Em relação ao casamento, quando os cartórios tiveram a resolução do Conselho, decidiram que iriam fazer a certidão, mas ainda demorou um tempo. A decisão de oficializar a união de anos, traria vantagens nas questões de planos de saúde, de bens adquiridos, além de pensar no futuro dos filhos. 

– A tranquilidade de saber que você não está esquecido totalmente – explica o doceiro.

“O casamento foi lindo, uma festa de um dia inteiro, até me emociono”

Helquer (à esq.) e Julio se casaram em dezembro de 2018. O casal já está junto há 12 anos e celebra o avanço de direitos e a vida de cumplicidadeFoto:Fernanda Abegg (Divulgação)

“Eu comecei a passar na frente dele, tipo, oi, me nota”, contou o professor e ator Julio César Aranda, 32 anos, sócio-proprietário da Cia de Retalhos de Teatro, sobre quando conheceu o marido, o professor de teatro Helquer Paez, 53 anos, sócio-proprietário da Companhia também.

Era 4 de junho de 2011, quando o casal se conheceu na famosa Barcelona Bar & Danceteria. Na noite, Helquer nem Julio estavam com vontade de ir, acabaram cedendo, por causa de amigos.

– Vi o Helquer lá e comecei a passar na frente dele “tipo, oi, me nota”. Passei uma, duas, três, na quarta ele estava em uma porta e eu no outro lado e eu só fiz “e aí?”. Daí foi assim, que a gente começou – diz Julio rindo.

Praticamente, um mês depois, eles já estavam morando juntos. Tudo, porque decidiram ir para aquela festa, naquela noite, em que nenhum dos dois queria ir. Os amigos começaram a alertar que talvez a decisão de morar junto fosse rápida demais, mas o casal não se importou e, assim, passaram-se 12 anos. Os gatos vieram um tempo depois, o Rafael, mais tímido, a Azul, que ficou no sofá o tempo inteiro durante a conversa com o casal, e a caçula brincalhona, Âmbar.

Foto: Vinícius Machado (Diário)

O casamento, em 29 de dezembro de 2018, ocorreu no meio do caos da mudança para o apartamento que o casal mora hoje. Na época, como o processo para solicitar a união precisava passar pelo Ministério Público, quando o juíz aprovou, eles não perderam tempo.

– O casamento foi lindo, uma festa de um dia inteiro, até a noite festejando com os amigos, até me emociono em contar. O casamento é importante pelas questões de futuro também. Não sabemos o que vai acontecer, tá ali no papel. Já fica um pouquinho mais fácil. É uma questão de respeito e de direito – relata Helquer.

Os opostos complementares, divertem-se dizendo que um gosta de acordar cedo e de bom humor e o outro adora dormir até tarde. Cada um com as suas individualidades, compartilham dos mesmos momentos marcantes nesta mais de uma década juntos, como: o amor que a mãe de Helquer sente pelo Júlio, a adoção dos gatos, as panquecas que a mãe do Julio faz quando vão visitá-la, a experiência de ver um musical do Abba em São Paulo, e uma das mais importantes, a parceria durante as apresentações teatrais.

– Logo depois que nós nos conhecemos, convidei o Julio para sairmos dia 12 de junho, Dia dos Namorados. Mas ninguém tocou no assunto da data. Decidimos pedir comida e a pizza demorou mais de quatro horas para chegar e veio sem queijo, e comemos sem reclamar. Hoje, damos risada disso e ainda comemoramos essa data.  

Helquer e Julio relatam que, com o passar do tempo, as leis que punem pessoas preconceituosas ficaram mais severas, porém ainda tem muita luta pela frente.

“No início foi estranho, engraçado, demorado esse aconchego. Era um sentimento novo”

Vera (à esq.) e Luci estão juntas há 30 anos. Elas tem contrato de união e são casadas em religião de matriz africanaFoto: Arquivo Pessoal

Leveza é a palavra que a orientadora educacional Vera Lúcia Souza, 71 anos, descreve a relação com a vereadora Luci Duartes, 64. As duas se conheceram quando trabalhavam em uma escola, no Bairro Camobi. Vera era casada na época, em um relacionamento heterossexual, e Luci, por um tempo, tinha uma namorada. A relação das duas foi aos poucos: primeiro veio a cumplicidade da amizade, Luci se tornou madrinha da Luciene, uma das filhas de Vera.

– Na escola eu sofria alguns preconceitos, pelo meu jeito de ser e a Vera sempre me defendia. Nunca chegaram para mim e falaram, mas você sabe, quando ficam no canto da sala cochichando. E eu já sabia que gostava da Vera, mas tinha medo de perder a amizade.

O tempo foi passando, Vera soltava algumas indiretas, como “e aí, quando você vai me beijar?”, para entender se, a então professora de Educação Física, gostava mesmo dela. Com o divórcio, Luci e a mãe acolheram Vera por um tempo. As duas relatam que foi um período difícil o processo de separação. Apenas quando Luci teve certeza que Vera não voltaria com o marido, ela se declarou. Isso já fazia três anos desde que tinham se conhecido.  

– Sempre respeitei os outros, mas imagina há 30 anos ser uma pessoa que gostava de um parceiro igual, falavam nas entrelinhas, discriminavam. E comigo, eu nunca tinha ficado com alguém do mesmo sexo. No início foi estranho, engraçado, demorado esse aconchego. Era um sentimento novo, eu estava aprendendo. E de lá para cá, são 30 anos. Somos muito felizes – reflete a orientadora educacional.

Dificuldades   

No início, alguns membros da família de Vera tiveram dificuldades para aceitar, por ser uma relação nova, e no âmbito profissional sofriam preconceito velado. As duas nunca esconderam a relação, principalmente, quando começaram a morar juntas.

Luci, tanto na vida particular, quanto na política, luta pelas causas LGBTQIA+ e conta que sabe que tem ainda muito preconceito velado.

– A vida política é muito difícil. E a Vera está sempre comigo, ela me acompanha. Eu sou um pouco brava e ela me ajuda nisso. Ela é meu porto-seguro, ela me tranquiliza e me acalma.  

As duas não se casaram no cartório, mas sim na religião de Matriz Africana, em 2022, além de terem um contrato de união. “Bem casadas é quem convive bem”, elas contam. Atualmente, elas têm duas filhas, a Luciene e Luienne, um neto de 11 anos e mais um netinho que está para chegar. O casal sabe que a estrada ainda é longa para enfrentar as dificuldades, mas se sentem felizes por estarem vivendo este amor e companheirismo.

Foto: Arquivo Pessoal

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