para que não se repita

Divulgado trecho inédito de novo livro sobre a tragédia da Kiss

Pâmela Rubin Matge

Foto: Lucas Amorelli (Diário)

Os escritos da jornalista mineira Daniela Arbex que deram forma a um novo livro sobre a tragédia de Santa Maria, Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss, será lançado no Brasil dia 19 de janeiro.

Trechos de novo livro sobre a Kiss são divulgados

Na tarde desta segunda-feira, o Diário teve acesso a trechos inéditos da obra que podem ser conferidos abaixo:

"Liliane cumprimentou rapidamente os colegas da Polícia Militar sem se ater ao ambiente externo, embora tivesse percebido, já na rua, um doloroso clima de consternação. Naquele horário ainda havia corpos expostos no estacionamento do Carrefour. Os bombeiros faziam o rescaldo do incêndio quando a enfermeira cruzou a única porta de acesso à casa noturna. A capitã sabia que algo terrível havia ocorrido, mas nem de longe estava preparada para testemunhar uma cena como aquela. Católica, ela apertou com uma das mãos a medalha de ouro e prata que carregava ao pescoço, lembrando-se dos dizeres gravados na peça: "Maria, rogai por nós que recorremos a vós". Diante do que viu, a enfermeira olhou para o alto, na tentativa de enxergar além do teto da boate destruída, pedindo coragem.

- Nossa Senhora, não me abandone - disse, antes de começar o trabalho de contagem das vítimas que estavam empilhadas. 

Acompanhada de um policial militar que segurava uma lanterna, Liliane precisou desviar para não pisar em nenhuma das pessoas. Por um segundo, teve a impressão de que muitos dos jovens pelo chão apenas dormiam, embora a morte deles já tivesse sido constatada pelo médico Carlos Dornelles. Quando a enfermeira se ateve ao rosto de cada um, percebeu que a maioria exibia uma fuligem preta na entrada do nariz e uma espécie de espuma branca saindo pela boca, sinais de intoxicação por fumaça. 

A capitã da brigada caminhou pela Kiss atordoada não só com o que viu, mas com o barulho dos celulares das vítimas. Os aparelhos tocavam juntos e cada telefone tinha um som diferente. Muitos tocavam conhecidas músicas sertanejas, outros, forró e até o repertório tradicional gaúcho. Na maioria dos casos, porém, o visor indicava a mesma legenda: "mãe", "mamãe", "vó", "casa", "pai", "mana". Aquela sinfonia da tragédia era tão insuportável quanto a cena que Liliane presenciava. Como lidar com um evento dessa proporção? 

Mãe de dois filhos - uma menina de 7 anos e um adolescente de 14 que ficaram dormindo em casa sem saber que ela havia saído -, a capitã não tinha como deixar de pensar na dor das mães que não faziam ideia do que havia acontecido na casa noturna. Com o passar das horas, o número de chamados aumentava. Quando finalmente amanheceu em Santa Maria, um dos celulares contabilizava quase 150 ligações não atendidas. 

O protocolo de urgências e emergências impede que qualquer pessoa no local de um acidente atenda ao celular dos envolvidos. O motivo é evitar passar informações erradas ou fornecer dados trocados sobre mortos e feridos, por exemplo. Por isso a comunicação oficial de morte só é possível após o reconhecimento do corpo. 

- Eu preciso devolvê-los às suas mães - repetia Liliane, baixinho, enquanto sentia os primeiros efeitos da fumaça. 

Com falta de ar, sua garganta queimava e os olhos ardiam muito. Era preciso agilidade no processo de retirada dos corpos. Enquanto tentava ignorar o som dos telefones para focar em seu trabalho, outros militares foram chegando ao cenário do incêndio. Alguns policiais que entraram na Kiss tiveram crises de choro. Incomodada, Liliane não conseguiu se conter. 

- Por favor, não chorem. Se vocês chorarem, quem vai fazer as coisas por aqui? Nós não temos o direito de fraquejar. O pior já aconteceu. O nosso trabalho esta manhã é entregar esses meninos e meninas para os pais o mais rápido possível. E nós vamos fazer isso, juntos. Todos aqui sabem que qualquer tempo conta para quem espera por um filho. E os pais de Santa Maria precisam fazer o seu luto. Não é hora de chorar. 

Em silêncio, o trabalho foi reiniciado no interior da boate. Lá fora, porém, a dor iria acordar o país."

O site da editora Intrínseca, responsável pela catalogação do livro, traz a informação de que foram necessárias centenas de horas dos depoimentos de sobreviventes, familiares das vítimas, equipes de resgate e profissionais da área da saúde para sentir e entender a dimensão de uma tragédia sobre a qual já se pensava saber quase tudo. A autora construiu um memorial contra o esquecimento daquela noite (27 de janeiro de 2013), além de buscar pelos que continuam vivos, bem como as consequências de descuidos banalizados por empresários, políticos e cidadãos.

DANIELA ARBEX

Trabalha há 22 anos como repórter especial do jornal Tribuna de Minas. Aborda temas relacionados aos Direitos Humanos e tem reportagens que resultaram em mais de 20 prêmios nacionais e internacionais, entre eles três Essos, o IPYS de melhor investigação da América Latina e o Knight Internacional. Estreou na literatura com Holocausto brasileiro e em seguida lançou Cova 312, com os quais ganhou dois prêmios Jabuti. Recentemente, virou documentarista e seu filme Holocausto brasileiro ganhou as telas da HBO em 40 países. Daniela mora em Minas Gerais. 

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No último sábado, o site do jornal O Globo também publicou trechos do livro. O livro está em pré-venda pela internet e custa R$ 39,90 a versão impressa e R$ 19,90 o e-book. Ele será lançado ao público em 19 de janeiro.


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