Fotos: Beto Albert (Diário)
A porcentagem de candidaturas negras nas últimas eleições para prefeitos, vice-prefeitos e vereadores tem aumentado no Brasil. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a porcentagem de candidatos negros que concorreram as eleições de 2016 no país foi de 47,75%. Em 2020, o índice passou para 50,02% e em 2024, chegou a 52,73%. Embora tenha sido constatado um aumento, ainda são poucos os que ocupam de fato cadeiras no Executivo ou Legislativo.
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Em 2025, a psicóloga Alice Carvalho, 29 anos, entrará para esse seleto grupo e ocupará a única vaga do Partido Socialismo e Liberdade (PSol) na Câmara de Vereadores de Santa Maria. Na disputa com outros 256 candidatos nas eleições municipais de 2024, ela obteve 4.129 votos, tornando-se pela segunda vez a vereadora mais votada da cidade. Em 2020, Alice recebeu mais de 3,3 mil votos, mas não foi eleita por causa do quociente eleitoral.
Em entrevista ao Diário, a vereadora eleita falou sobre temas pertinentes como políticas públicas para a população negra, representatividade e o Dia da Consciência Negra. Veja como foi:
Diário – Nos últimos anos, o Brasil tem apresentado um aumento no número de candidaturas negras em eleições municipais. Como você avalia esse cenário?
Alice –Eu acho que sempre é muito positivo que tenhamos mais pessoas negras, especialmente mulheres negras, se colocando nos processos eleitorais, e sobretudo, conquistando um lugar nesses espaços de decisão. Porém, também considero que precisamos estar atentos a duas coisas. Em primeiro lugar, como foi bem salientado, existe um "gap" entre o contingente de candidatas e candidatos negros e o número de eleitos. Isso acontece porque, infelizmente, ainda existe uma desigualdade muito grande no interior dos próprios partidos, que evidentemente, reflete a desigualdade presente na sociedade. Então, eu acho que é preciso que se aperfeiçoe as ferramentas para corrigir essas distorções e garantir que essas candidaturas não sejam apenas para cumprir uma cota exigida pela legislação eleitoral, mas que sejam candidaturas verdadeiramente competitivas. Em segundo lugar, eu sempre digo que apesar de ser um avanço a eleição de mais parlamentares, ou mais prefeitos e prefeitas negros e negras, a representatividade não pode ser entendida de maneira rasa ou superficial. Nós queremos negras e negros eleitos para defender as reivindicações da população negra, que no Brasil é majoritariamente trabalhadora e pobre. Então, não nos serve eleger políticos negros, ou mulheres, ou LGBTs, que defendam uma política neoliberal, por exemplo, que vá atacar frontalmente os direitos dessas camadas mais vulneráveis da população. Representatividade também é uma questão de classe e de compromisso inegociável com o combate às desigualdades.
Diário – Enquanto mulher negra, como foi para você ingressar na política? E quando entendeu que precisava continuar lutando por uma vaga na Câmara?
Alice – Para nós, com certeza, sempre é mais difícil. Mas, a partir do momento que tomei consciência da nossa situação, se tornou inevitável. Sempre soubemos que o PSOL tinha condições políticas de fazer bons mandatos a serviço das lutas. Mas, a partir da eleição de 2020, vimos que também tínhamos potência e apoio popular para conseguir a primeira cadeira do partido na cidade e, desde então, começamos a batalha para dar certo em 2024.
Diário – Você diria que a consciência sobre a importância de estar na politica veio do seu contato com os movimentos negros?
Alice – Com certeza! O movimentos negro, de certa maneira, ampliou minha consciência sobre os problemas da nossa classe e colocou a luta como a única saída possível para a mudança. E, em Santa Maria, o movimento fortalece a mobilização contínua de diversos setores, a consciência racial e a luta por um futuro mais igualitário. Alguns exemplos são a ocupação antirracista na UFSM, atos contra a violência policial, eventos que ajudam a formação antirracista no setor da educação, etc.
Diário – Muitas vezes, ouvimos de pessoas em postos de poder que se queremos representação é “só se candidatar”. O que você diria para essas pessoas, considerando a experiência pela qual passou?
Alice – Esse tipo de fala, assim como aquela clássica, que diz que “a culpa de não termos mais mulheres eleitas é de nós mesmas, uma vez que somos a maioria da população”, não é nada mais do que a forma encontrada por daqueles que já estão ocupando um lugar privilegiado, em espaços de poder, lavarem as mãos e fazerem de conta que não têm nenhuma responsabilidade diante da desigualdade de representação. E lavam as mãos, justamente porque na imensa maioria das vezes, não é do interesse deles que pessoas como eu, por exemplo, uma mulher, jovem, negra e da periferia ocupam um lugar que historicamente se constituiu como uma espécie de clube exclusivo de uma certa parcela reduzida da população, geralmente masculina, branca e rica. Muitas vezes, são aqueles que vêm de famílias tradicionais, que praticamente "herdam" um mandato. Realmente, para esses, talvez baste "só se candidatar". Agora, para nós, que estamos acostumados a assistir às discussões políticas pelo lado de fora das instituições, o desafio é muito maior. É romper barreiras erguidas há séculos, e nas quais só começamos a fazer algumas rachaduras. Isso tem tudo a ver com o que eu respondi na primeira pergunta, sobre se ter a possibilidade de apresentar candidaturas reais e competitivas, com condições políticas e materiais de conquistar um mandato.
Diário – Quando você recebeu a informação que foi a vereadora mais votada em Santa Maria e que de fato conseguiria ocupar uma cadeira na Câmara, o que sentiu?
Alice – Pode soar como um clichê, mas eu diria que foi uma mistura de sentimentos. Primeiro, alívio, porque depois daquela eleição histórica em 2020, quando fomos a candidatura mais votada, mas não entramos por causa do quociente eleitoral, sempre fica aquele receio de que a história se repetisse, apesar da convicção de que fizemos todos os esforços possíveis para mudar o final dessa história. Depois, vem um certo sentimento de justiça, justamente por aqueles 3.371 e agora os 4.129 votos que conquistamos, e por todo o trabalho que fizemos ao longo da campanha. Justiça também por aquelas e aqueles que vierem antes de mim e que lutaram por aquilo que a gente acredita, embora sequer tenham tido a perspectiva de ocupar um espaço como esse. Por fim, eu acho que tem muito também, um senso de responsabilidade muito grande. Não é pouca coisa ser a única vereadora negra da Câmara de Santa Maria, também não é pouca coisa ocupar a primeira cadeira da história do PSOL, um partido que tem no seu DNA o combate à velha política, a lógica do fisiologismo e da acomodação. Nós temos a consciência de que vamos ter que nos dedicar muito para cumprir com as expectativas daqueles que depositaram o seu voto e a sua confiança no nosso projeto.
Diário – A criação de políticas públicas para pessoas negras é vista como uma das formas de mudar o atual cenário, que é de desigualdade para essa população em determinados setores. Quais são as principais pautas que você irá defender na Câmara a partir de 2025?
Alice – Trouxemos com muita veemência na nossa campanha, assim como na campanha para prefeitura do PSOL, com o Alidio e a Professora Marisa, a necessidade de políticas para a nossa juventude que está nas periferias, que é pobre e majoritariamente negra. Infelizmente, é a mesma juventude que incha os índices de homicídio que têm aumento cada vez mais em Santa Maria. Eu venho desse lugar, e sei da falta que faz termos equipamentos públicos de lazer, espaços de sociabilidade, que deem uma outra perspectiva para a nossa juventude, ao invés da lógica habitual de segregação e criminalização. Outro ponto fundamental é termos políticas públicas de capacitação e que incluam cada vez mais a população negra no mercado de trabalho, de maneira digna e qualificada. Para além disso, nós temos um compromisso com áreas essenciais como a saúde e a educação que, com os seus problemas estruturais, evidentemente também atravessam as experiência dessa população.
Diário – Na sua opinião, o que ainda falta para Santa Maria avançar em questões que envolvam o acesso de direitos e oportunidades pela população negra?
Alice – Falta, em primeiro lugar, reconhecer que de fato existe essa dívida do Estado brasileiro em seus diferentes níveis, inclusive no âmbito municipal, com a população negra. Mas, é claro que não queremos o reconhecimento por si só, como uma "confissão de culpa". Ele tem que ser o pontapé inicial de políticas de reparação, que passam, também, por aquilo que nós já apontamos em relação ao direito à cultura, ao lazer, a um emprego de qualidade, entre outras demandas. O nosso papel, na Câmara, também vai ser o de colocar o dedo nessa ferida aberta, mas muitas vezes escondida. É um compromisso do nosso mandato.
Diário – Para encerrar, o que você deseja que as pessoas entendam sobre o 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra?
Alice – Eu gostaria que, como o próprio nome da data sugere, fosse um dia de tomada de consciência sobre o lugar da população negra na história do nosso país, e a nossa condição atual na sociedade. Para a população em geral, eu desejo que haja uma disposição de reflexão e de engajamento na luta antirracista, que deveria ser um compromisso de todos, não apenas de nós, negros e negras. Para as pessoas negras, em especial, eu acho que o dia 20 de novembro é sempre uma data para recordar a nossa luta ancestral por liberdade e justiça. Eu vejo como um momento de nós olharmos para trás e nos inspiramos e fortalecermos a partir do exemplo de figuras como Zumbi, Dandara e tantos outros que vieram antes de nós. Eu desejo que seja um 20 de novembro em que possamos todos renovar o nosso compromisso com o combate às desigualdades e com a luta por uma sociedade realmente igualitária.