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'O banco dos réus deveria ser mais extenso': delegados da Kiss falam sobre o caso oito anos depois

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Foto: Renan Mattos (Diário)
Marcelo Arigony e Sandro Meinerz trabalharam juntos no caso Kiss

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A madrugada de 27 de janeiro marcou profundamente as famílias das 242 vítimas do incêndio da boate Kiss, os sobreviventes e também aqueles que trabalharam no salvamento e investigação. Para os delegados Marcelo Arigony, 49 anos, e Sandro Meinerz, 51 anos, este inquérito, que foi o maior da Polícia Civil gaúcha, ainda reverbera na memória. Mesmo quase nove anos depois, a dupla ainda guarda detalhes das mais de 13 mil páginas do inquérito principal na ponta da língua.


Durante 1h30min, na manhã da última quarta-feira, Arigony e Meinerz receberam a reportagem do Diário na sede da Delegacia Regional. Eles relembraram detalhes da investigação e dos desdobramentos daquele que foi o maior caso de suas vidas. Os dois não foram convocados para depor no júri - convocar os policiais que comandaram as investigações como testemunhas costuma ser uma prática comum em julgamentos do tipo. Os delegados lamentam não terem sido chamados. Mas, mais do que isso, acreditam em uma descaracterização e perda de identidade do processo. 

- O julgamento não será em Santa Maria; quem vai presidir o júri não é o Dr. Ulysses (Louzada, juiz de Santa Maria), que cuidou do processo desde o princípio; a acusação não é dos promotores que trabalharam na época; os delegados responsáveis pela investigação não estarão presentes; ficamos pensando se a Justiça não poderia modificar essa sistemática. Faço uma crítica construtiva neste sentido: os atores que estarão lá não são aqueles que deveriam estar - resume Arigony.

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Foto: Renan Mattos (Diário)
Marcelo Arigony, atualmente, trabalha na 2ª Delegacia de Polícia de Santa Maria, responsável pela região oeste da cidade

INVESTIGAÇÃO

style="width: 50%; float: right;" data-filename="retriever">Na época do incêndio, Arigony era delegado regional e, atualmente, é titular da 2ª Delegacia de Polícia de Santa Maria. Já Meinerz estava na Delegacia de Polícia Especializadas em Furtos, Roubos, Entorpecentes e Capturas (Defrec) e, hoje, é o responsável pela regional. Além deles, outros três delegados também integraram a força-tarefa: Gabriel Zanella (hoje responsável pela delegacia de homicídios), Luiza Sousa (hoje na delegacia de proteção à criança) e Marcos Vianna (hoje em São Borja). A investigação contou, ainda, com outros cerca de 20 agentes.

Ao final da primeira fase do inquérito, que durou 55 dias, foram 28 apontamentos e 16 pessoas indiciadas. As conclusões da investigação foram anunciadas em uma coletiva de imprensa no dia 22 de março de 2013, no auditório do Centro de Ciências Rurais (CCR) da UFSM, local simbólico, já que a festa que ocorria na noite do incêndio era organizada por estudantes deste centro. Dos 16 indiciados, restaram apenas quatro que viraram réus e serão julgados em 1º de dezembro. 

- Para nós, os 16 indiciados deveriam estar lá no banco (dos réus). Faltou gente lá. O banco dos réus deveria ser mais extenso - destaca Meinerz. 

O JÚRI
Como não estarão em Porto Alegre para participar o júri, os delegados irão acompanhar o desenrolar do julgamento pela internet. Os dois também são professores de Direito - Meinerz na Universidade Franciscana (UFN) e Arigony na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) -, têm incentivado os alunos a acompanharem e devem repercutir nas salas de aula os desdobramentos.

- Esse julgamento representa, juridicamente, algo que vai ser falado por muitos anos. E as decisões que vão sair de lá devem influenciar muitos outros júris futuramente - define o delegado Sandro Meinerz. 

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Foto: Renan Mattos (Diário)
Sandro Mainerz ocupa, hoje, a função de delegado regional 

NÚMEROS DO INQUÉRITO PRINCIPAL

  • 55 dias de investigação
  • Mais de 13 mil páginas divididas em 52 volumes
  • Outras 5 mil páginas de documentos
  • 810 pessoas ouvidas

ENTREVISTA

Diário_ Vocês acreditam que deveria ter mais pessoas sentadas no banco dos réus?
Meinerz_ Com absoluta certeza. Todas as 16 pessoas que nós indiciamos, foram indiciadas com plena convicção. Para todos haviam indícios suficientes de autoria. O Ministério Público fez uma opção, uma análise diferente, da qual eu não concordo e tenho certeza que o Marcelo (Arigony) também não concorda, assim como toda a nossa equipe. Para nós, os 16 indiciados deveriam estar lá no banco. Faltou gente lá. O banco dos réus deveria ser mais extenso. 

Diário_ Vocês não foram chamados para prestar depoimento durante o júri. Isso surpreendeu vocês?
Arigony_ Havia uma probabilidade de nós sermos chamados. Eu acredito que nós não fomos chamados porque talvez o nosso depoimento lá não interesse a nenhum dos lados. Não interessa à defesa, por óbvio, porque os relatos que nós vamos trazer certamente estariam em linha com uma condenação. E não interessa ao Ministério Público, provavelmente, porque nós não concordamos com algumas das conclusões. E não estou fazendo crítica a isso. Cada um na sua instância. Nós fizemos o nosso papel e o Ministério Público faz a parte dele da forma que acha que tem que fazer. Acredito que esse seja o motivo de não termos sido chamados.

Meinerz_ Não é expectativa nossa de ser chamado, mas é uma lógica muito comum nas investigações que vão ao tribunal do júri arrolar policiais. Porque, dentro do inquérito, nós levamos uma história completa dos fatos. A meu juízo, eu acho que houve uma falha na estratégia da acusação neste sentido. Se é levada um policial que é capaz de contar dezenas de histórias, compilar fatos, falar sobre as perícias, essas informações seriam importantes para reconstruir todo o enredo do antes, durante e depois do incêndio. A própria decisão do desaforamento, juridicamente, é questionável, na medida que o fato tem uma dimensão internacional. 

Diário_ E quanto ao desaforamento, a saída do processo de Santa Maria para julgamento na Capital?
Arigony_ O julgamento não será em Santa Maria; quem vai presidir o júri não é o Dr. Ulysses (Louzada), que cuidou do processo desde o princípio; a acusação não é dos promotores que trabalharam na época; os delegados responsáveis pela investigação não estarão presentes; ficamos pensando se a Justiça não poderia modificar essa sistemática. Faço uma crítica construtiva neste sentido: os atores que estarão lá não são aqueles que deveriam estar. 

Diário_ Na época, foi montada uma força-tarefa com os cinco delegados. Como foram os primeiros passos naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013?

style="width: 50%; float: right;" data-filename="retriever">Arigony_ Eu já contei essa história diversas vezes. E, nestes casos, precisamos tomar cuidado porque isso pode se tornar memória do que a gente já contou. Eu estava dormindo e fui acordado com a ligação de um plantonista dizendo que talvez pudesse ter algumas pessoas mortas. Fui tomar banho. Quando eu sai do banho, já tinha diversas outras ligações. Isso era 5h e pouco e eu fui para lá. Logo no início da manhã nos reunimos com o Corpo de Bombeiros, Guarda Municipal, Brigada Militar, Exército, polícias rodoviárias e fomos tomando as decisões sobre como proceder com os corpos, com a estrutura da boate... Montamos uma grande delegacia improvisada em um dos ginásios menores do CDM. Colocamos mesas escolares lá e organizamos toda a questão do reconhecimento dos corpos. Essa foi uma parte muito difícil, porque havia toda uma comoção na cidade e os familiares ingressavam no ginásio para procurar seus filhos em meio a mais de 200 corpos. E as reações foram as mais variadas: tinha gente que chorava, tinha quem ria, tinha familiar que chutava o corpo pedindo que ele levantasse, tinha quem queria nos agredir. No fim daquele dia, restava apenas um corpo lá que não havia sido reconhecido oficialmente, já que a família morava no Mato Grosso e ainda não havia conseguido chegar. Passado esse primeiro momento, iniciamos a investigação, a perícia na boate, coleta de materiais, posteriormente coleta de depoimentos e assim por diante. Uma coisa que me marcou muito foi uma conversa, naquela primeira noite depois do incêndio, quando o William Bonner e a Sandra Annemberg chegaram ao ginásio. O Bonner nos olhou e falou: "amanhã, quando a vinheta do Jornal Nacional rodar, nós vamos querer saber quando foi a última vez que os entes administrativos fiscalizaram a boate". Foi naquele momento que o Sandro (Meinerz) e eu nos entreolhamos e percebemos que precisávamos ir além da liberação dos corpos já naquele momento e verificar os alvarás, as causas de tudo. 

Diário_ Vocês sofreram algum tipo de pressão política ou de pessoas influentes durante a investigação?
Arigony_ A pressão veio de todos os lados. Foi um inquérito em que a policia precisou apontar diversas pessoas, de diversas esferas de praticamente todas as forças políticas. Eu sofria uma tentativa de suspeição do inquérito por dia. Toda hora alguém queria me tirar do inquérito. Teve um dia que eu falei pra o Sandro (Meinerz): leva o inquérito para trabalhar lá na 1ª DP (Delegacia de Polícia), vai tocando o negócio que eu chamo as luzes aqui para a delegacia regional. Porque nós estávamos toda hora precisando nos defender e não conseguíamos trabalhar. 

Meinerz_ E se há críticas ao nosso trabalho são de pessoas que foram apontadas ou pessoas má intencionadas com a Polícia Civil. Tivemos a humildade de procurar muitas informações com engenheiros e outros especialistas. Nós pluralizamos muito a investigação. Fizemos relatos diários do que estávamos fazendo. Tirando aquilo que era sigiloso, nós contávamos tudo para a sociedade. 

Diário_ Foram 55 dias de investigação no primeiro inquérito onde vocês trabalharam sem folga. Ficou a sensação de dever cumprido?
Meinerz_ Da nossa parte? Com absoluta certeza. Na noite da entrega, nós não dormimos. Passamos a noite em claro para conseguir entregar. Nós tínhamos receio de que ficassem falhas. Mas, até hoje, não foi apontada nenhuma falha. Não conheço no Brasil inquérito deste tamanho, desta magnitude, com tantas vítimas, mais de mil depoimentos, diversas perícias, feito em tão pouco tempo. Existem grandes inquéritos, mas feitos em anos, Nosso papel foi de esclarecer tudo, foram feitos apontamentos na esfera civil, criminal e administrativa. Todo mundo que teve alguma relação com as irregularidades da boate Kiss foi apontado. No final, descobrimos que em nenhum momento desde que abriu, a Kiss esteve regular. 

Diário_ Como foi o pós-Kiss?
Arigony_ A cidade de Santa Maria reconhece o nosso trabalho, mas tem um outro lado que cansou de ouvir sobre a Kiss. Tem pessoas que nos procuram e deixam a entender que nós apontamos coisas demais na investigação e isso refletiu na economia e nos problemas da cidade. Eu era delegado regional na época e, depois, saí. Fiquei 4 anos e meio na função. 

Meinerz_ Foi o caso das nossas vidas. É um dos casos mais importante da Polícia Civil gaúcha. Foi um caso que marcou as nossas carreiras, um caso sem precedentes. Foi uma experiencia em que aprendemos muito, porque foi um laboratório prático de investigação, mas torcemos para quem ninguém mais passe por isso. 

Diário_ A investigação da Kiss pesou para o senhor sair da Delegacia Regional?
Arigony_ Depois da boate Kiss, eu não encontrei mais condições de permanecer na Delegacia Regional. Na verdade, embora o Sandro (Meinerz) tenha trabalhado tanto quanto eu ou até mais, a cara da decisão sobre os apontamentos é a minha. A cara do inquérito da Kiss, para a força política, é a minha. Nós fizemos apontamentos em todas as esferas, não nos preocupamos em agradar ninguém. Ao final, digamos assim, eu havia brigado com toda a força política. Eu não encontrei mais sustentação para continuar como delegado regional nestas condições. Embora a nossa função não seja uma função política, o cargo de gestão regional é um cargo relacionado ao governo do Estado. 

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