"Ninguém liga pra ti": mulher resgatada em situação análoga à escravidão sofria violência psicológica

Foto: Reproduçao/Redes Sociais

Mulher em situação de trabalho análogo ao escravo era procurada pela família

Uma mulher de 45 anos foi resgatada em situação de trabalho análogo à escravidão em Santa Maria no dia 29 de junho.  A vítima, que há 21 anos trabalhava como doméstica na residência de uma família na cidade, nunca foi registrada como empregada, além de nunca ter recebido salário e seus direitos trabalhistas.


O resgate de Adelaide Alexandrete aconteceu a partir de uma operação que envolveu auditores-fiscais da Gerência Regional do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal e o Centro de Referência de Assistência Social, vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Social do município. 


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Em maio deste ano a vítima foi atendida no Pronto Atendimento Ruben Noal, no Bairro Tancredo Neves, onde foi diagnosticada com Transtorno de Ansiedade Generalizado (TAG). No prontuário, a médica questiona: "paciente submetida a trabalho escravo?”. A indagação da profissional surge do relato de Adelaide durante o atendimento, que afirmou não receber salário para trabalhar e não ter permissão para ir e vir livremente.


A médica que atendeu a mulher, ao se deparar com a situação de vulnerabilidade psicológica da paciente, a encaminhou para o Santa Maria Acolhe, serviço de referência para população que esteja em sofrimento psíquico agudo em decorrência de situações de natureza traumática.


Adelaide chegou a ir em uma consulta do serviço Acolhe, onde os profissionais identificaram que ela estava em sofrimento e marcaram uma nova consulta, a qual a mulher não compareceu. Diante do que já tinha sido apresentado por meio da ficha médica, e observado no atendimento do serviço de referência, a equipe da Secretaria de Desenvolvimento Social entrou em contato com auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego para relatar a situação. Os órgãos públicos começaram a planejar a ação. Por envolver um âmbito residencial, sendo a casa um asilo inviolável previsto na Constituição, foi solicitada judicialmente uma autorização de ingresso.


Na residência em que trabalhava, que era ao lado de um estabelecimento da família, Adelaide foi resgatada e encaminhada para um Centro de Referência de Assistência Social (Creas), onde foi acompanhada por uma equipe técnica que avaliou e acolheu a vítima. Após esse primeiro momento, ela foi encaminhada para um abrigo municipal.


João Chaves, secretário de Desenvolvimento Social, analisa a integração das equipes de diferentes setores da pasta, e o trabalho em conjunto com outros órgãos, como fundamental para o êxito na ação que resgatou a mulher:


— Toda essa rede funcionou de uma forma muito harmônica. Por exemplo, a preocupação do técnico, dele conseguir ter um olhar diferenciado. Naquele momento dele fazer algo mais, ele conseguiu ver aquela pessoa, não como número, mas enxergar ela como um ser humano que está ali. E isso tem todo um resultado — o secretário.


Diante da vulnerabilidade da vítima, o secretário também destaca a importância de um olhar mais atento da sociedade civil para identificar e denunciar casos semelhantes ao de Adelaide.


— Eu acredito que a gente sempre tem que ter um olhar como sociedade, que os problemas não estão distantes de nós e a gente tem que saber que as pessoas que estão em volta de nós de certa forma também afetam a gente. E como é importante a gente saber enxergar uma situação dessas. E a pessoa, como ela, que vinha sofrendo violência de muitos e muitos anos, aquilo vai cauterizando na vida da pessoa. Começa a achar que é normal aquilo, que aquilo para ela é tudo normal. A gente não pode aceitar como normal de forma alguma. Isso nos deixa uma lição de que a gente tem que estar atento como sociedade — acrescenta.


De acordo com Alexandre Marin Ragagnin, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), após a fiscalização, o empregador teria feito o pagamento rescisório referente a dois anos de trabalho. Foi emitida a guia do seguro-desemprego da trabalhadora resgatada, que lhe garantirá o recebimento de três parcelas de um salário mínimo (R$ 1.320). No momento, o MPT negocia os demais anos de serviços prestados como doméstica sem remuneração.


Durante os mais de 20 anos que trabalhou e residiu no local, a única coisa que Adelaide recebia pelo trabalho realizado era a comida e moradia. Outras necessidades, como o fornecimento de roupas, eram atendidas por meio de doações. Segundo os empregadores, eles estariam fazendo uma caridade em prol da vítima, por ter sido acolhida na residência.


— O vínculo empregatício tem requisitos. Então, eu não posso levar alguém que não seja da minha família para trabalhar na minha casa. Nesse caso específico, por exemplo, ele disse que deu abrigo para ela numa situação de vulnerabilidade. A legislação não autoriza que alguém explore outra pessoa em troca de subsistência. Se eu estou oferecendo trabalho, se eu quero ajudar, eu tenho que preencher os requisitos do emprego, eu formalizo o vínculo de emprego e eu pago o salário para ela ter autonomia. Isso é o que diz a legislação. A partir do momeno em que eu dou alimentação e moradia em troca do salário, isso foi abolido lá em 1889, issso aí é escravidão, não existe mais — expõe Alexandre.


Desaparecimento

Adelaide saiu de Santiago em 2002 em direção a Santa Maria na esperança de tentar uma nova vida. Ao chegar na cidade, a mulher recebeu abrigo na residência em que trabalhou por 21 anos. No local, ela foi alojada numa garagem adaptada, onde não havia portas e nem paredes que isolassem a sua privacidade. Além de ser obrigada a realizar trabalhos pesados e de limpeza na residência e no estabelecimento comercial, a empregada sofria violência psicológica e por vezes até física.


Os empregadores, que restringiam o contato da vítima com o mundo exterior, afirmavam que a família já não queria saber mais dela e que caso ela saísse da residência, iria morar debaixo da ponte. Enquanto isso, a mãe de Adelaide registrou um boletim de ocorrência em 2008 pelo desaparecimento dela, além de contatar programas de rádio e de TV na esperança de reencontrar a filha. Outros familiares também buscaram a mulher através de anúncios nas redes sociais.

Cezar Araújo da Rosa, chefe de Setor da Gerência Regional do Trabalho em Santa Maria, relata que ao realizarem a fiscalização na casa, os auditores-fiscais constataram o trabalho forçado a partir de ameaças, situação que dificulta o encerramento da relação de trabalho.


— Quando os colegas chegaram lá no estabelecimento, ela estava fazendo atividades domésticas, cozinhando. A gente percebeu, até pela forma dela falar, com essa ansiedade, esse nervosismo e emotividade, essa pressão psicológica e coerção que ela mencionava. E aí os donos da casa, por exemplo, para desestimular que ela saísse, falavam “ninguém gosta de ti, ninguém se preocupa contigo, ninguém nem entra em contato”. Ela não tinha nem acesso à internet, nem ao telefone — relembra o auditor-fiscal.


Cezar também desconstrói o argumento de considerar o empregado doméstico como alguém que pertence à família.

— Além de perguntar se ela está incluída na partilha da herança, por exemplo, podemos verificar se a pessoa fazia viagens de férias com a família e, mesmo se fizesse viagens, se ela não ia apenas para ficar limpando a casa da praia ou cuidando dos filhos dos patrões.
Ou seja, precisa ser apurado se ela realmente era alguém da família, e aí o processo de adoção regularizaria essa situação. Ou se ela era alguém que estava tendo seu trabalho explorado sem receber dinheiro e seus direitos em troca — salienta Cezar.


PEC das Domésticas

Em 2013, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 72, também conhecida como "PEC das Domésticas", que trouxe importantes avanços na legislação trabalhista para essa categoria profissional.


Antes da PEC, as trabalhadoras domésticas eram excluídas de diversos direitos trabalhistas, como o limite máximo de horas trabalhadas por semana, o recebimento de horas extras, o direito a férias remuneradas, o 13º salário e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). A PEC alterou a Constituição Federal para equiparar os direitos dos empregados domésticos aos dos demais trabalhadores urbanos e rurais.


A PEC das Domésticas proporcionou uma série de mudanças significativas, incluindo:

  • Jornada de trabalho: estabeleceu a jornada máxima de 44 horas semanais, permitindo até 8 horas diárias e o direito ao pagamento de horas extras em caso de exceder a carga horária
  • Horas extras: garantiu o pagamento de horas extras quando a jornada de trabalho ultrapassar o limite estabelecido
  • Férias remuneradas: assegurou o direito a férias anuais remuneradas de, no mínimo, 30 dias
  • 13º salário: garantiu o pagamento do 13º salário proporcional ao período trabalhado no ano
  • FGTS: passou a ser obrigatório o recolhimento do FGTS por parte do empregador
  • Seguro-desemprego: foi garantido o direito ao seguro-desemprego em caso de dispensa sem justa causa
  • Salário mínimo: fixou o piso salarial dos empregados domésticos com base no salário mínimo nacional

Essas mudanças significaram um avanço na proteção dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas no Brasil, contribuindo para uma maior igualdade de direitos entre as diferentes categorias de trabalhadores. Contudo, é importante mencionar que mesmo com essas alterações, ainda existem desafios a serem superados na garantia efetiva dos direitos das trabalhadoras domésticas, como a fiscalização do cumprimento da lei e a conscientização dos empregadores sobre seus deveres.


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