Dia desses, falando com meus pais que se encontravam distante de nossa cidade, me peguei usando uma história que compartilhamos leitura de um conto português, que transcrevo, na íntegra, abaixo.
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A história, que espero que leiam, é de inteligente humor negro, onde um abastado proprietário encontra seu empregado em Lisboa e lhe passa a descrever uma série de infortúnios, que o empregado pontua, a cada final de relato com um quase indiferente:
- “Mas no mais vai tudo bem, tudo sem novidade”.
Da história particular protagonizada por mim, meus relatos foram sobre nossos próprios infortúnios locais. Pequenos para uns, imensos para outros, mostrando nossa capacidade de resiliência e de, quando possível, até usarmos de bom humor para enfrentarmos nossos problemas.
Dito isso e pontuado, me peguei também pensando o quanto essa forma de lidar com as coisas, por vezes não nos atrapalha. No sentido de termos recorrentes problemas sendo revividos, alguns porque não tomamos os devidos cuidados, outros por falta absoluta de atitude de quem de direito.
E quando uso a coletividade, me refiro a todos nós mesmos. Poder público, órgãos de fiscalização, sociedade civil, nós, cidadãos.
Nós que não cobramos devidamente a quem passamos a procuração para ser nossos representantes, profissionais pagos pelo estado que nos representa e que recebem para isso, sendo assim se dispondo a cumprir tal missão. E por isso, não devem reclamar quando cobrados, nem confundir sua posição hierárquica frente aos cidadãos que lhes mantém ali.
A nós lideranças com alguma voz ativa, quando nos omitimos de falar mais alto, com medo de represálias.
A nós que temos visto, revisto, reclamado e nos conformado, afinal: “as coisas são assim mesmo”.
A nós que andamos normalizando abusos, desculpando nossos “heróis”, mesmo quando erram feio, a nós que aceitamos as coisas como elas estão.
Bem, seguindo assim, seremos iguais ao matuto que encontram os conhecidos que estão fora e, perguntados sobre notícias de nossa terra, responderemos sempre, como se tudo seguisse na maior normalidade do mundo:
- Pois aqui vai tudo bem, tudo sem novidade.
Ainda que nosso mundo esteja desmoronando, embaixo d’água, gerido ao Deus dará, ou sendo, como de hábito, subtraído.
Afinal, tudo isso, há muito tempo, não é uma novidade.
“Tudo vai sem novidade”
Por Gervásio Lobato
Os interlocutores são um morgado do Alentejo, que estava a gozar os rendimentos em Lisboa e um criado lá da sua herdade de Alter do Chão. O morgado, que já há tempo não tinha carta da terra nem notícias de seus pais, encontrou, uma manhã, na Praça do Comércio, embasbacado a ver render a guarda, o seu criado.
– Olá! Tu por aqui, Tibúrcio?
– Ah! O meu patrão!
– Então vens a Lisboa e não me procuras? Não vens logo a minha casa?
– Ora essa!... Então não havia de lá ir?
– Pois sim, mas não foste.
– Ia já lá. . .
– Chegaste agora mesmo?
– Não, senhor; cheguei ontem e, desde que cheguei que estou para ir lá já . . .
– Então como está tudo por lá?
– Tudo bom, muito obrigado.
– Meu pai, minha mãe, a casa?
– Tudo bem, sem novidade.
– E o meu cavalo ruço... o Janota?
– Ah! É verdade; esqueci-me de dizer-lhe; esse é que não tem lá passado muito bem.
– Ah! Sim! O que tem ele? Está doente?
– Não, senhor.
– Ah! Meteste-me um susto! Um cavalo que me custou 50 libras!
– Não, senhor; não está doente. Morreu!
– Morreu?!
– Sim, senhor; mas o mais vai sem novidade.
– Morreu? Mas ele não estava doente... Morreu de algum desastre?
– Não, senhor.
– Qual desastre! – Então?
– Morreu no fogo, que houve lá na cocheira.
– Quê? Houve fogo na cocheira?
– Sim, senhor; ardeu toda, e o pobre Janota, que estava lá dentro, foi-se também, coitadinho!
– Mas como pegou fogo na cocheira?
– Pegou da casa.
– Da casa?!
– Sim, senhor; a casa ardeu toda.
– A minha casa ardeu toda?
– Sim, senhor; e, por mais que fizéssemos, não foi possível impedir que o fogo passasse à cocheira. Mas o mais vai sem novidade...
– Mas como foi que pegou fogo à casa?
– Foi uma tocha, que caiu do tocheiro.
– Uma tocha?
– Sim, senhor; caiu uma tocha em cima do pano do caixão e foi tudo pelos ares.
– Do caixão? Mas qual caixão?
– O caixão, onde estava a defunta.
– Qual defunta?
– A senhora sua mãe.
– Minha mãe? Pois minha mãe morreu?
– Morreu, sim senhor; mas o resto vai sem novidade.
– Mas de que morreu minha mãe?
– De desgosto, coitadinha!
– De desgosto de quê?
– Pela morte de seu pai.
– Então meu pai morreu também?
– Não, senhor; não morreu; matou-se.
– Matou-se?!
– Sim, senhor; enforcou-se. Mas o resto vai tudo sem novidade...
– Meu pai enforcou-se?!
– Sim, senhor. Quando lhe fizeram penhora a todas as fazendas e viu que estava arruinado, que estava a pedir esmola, foi a uma corda e zás! Mas o mais vai sem novidade, graças a Deus...