Valderez Oliveira: a galinha dos ovos de ouro

Redação do Diário

Valderez OliveiraProfessora estadual inativa e ex-servidora do Judiciário

Da casa dos avós, todos recordamos algo: um relógio, um quadro na parede, um objeto que nos parece estranho e incomum, dentro do sincretismo particular de nossa infância. Guria de poucos e escassos brinquedos, pois estes sequer existiam na proporção de hoje, qualquer bibelô me atraía a contemplação de minutos, numa silenciosa delícia sossegada e muda, sem perguntas ou a querer respostas. E, por muitos anos, convivi com uma sorridente galinha de aramado, empertigada por sobre um armário de copa, local das refeições diárias, onde minha avó recebia as amigas para um barulhento jogo de cartas, quase sempre aos domingos.

Nem precisa dizer de meu gosto pela infiltração subreptícia naqueles encontros. Se as tardes de domingo eram reservadas ao carteio, também o costume nos lembrava a visita aos avós. O hábito sagrado assim se mantinha, na saída das matinés, pois as programações eram poucas e escassas. Num pequeno município do interior, crianças eram somente crianças. A diferença é que andavam e corriam sozinhas. Os perigos vieram depois.

A galinha pintada de branco, feita de arame entrelaçado, repleta de ovos fresquinhos, colhidos da criação do pátio, me enchia os olhos e a imaginação. Como alguém poderia ter feito aquilo? Era tão perfeita, tinha uma imponência real, e bastava abrir a tampa de cima para pegar um, dois, três ovos, ou colocá-los com cuidado, um, dois, três, até ficarem apertadinhos e a penosa metálica ficar de barriga cheia. Ao par disso, a fábula da galinha dos ovos de ouro pululava no meu imaginário. A história fora lida por ali, no sofá da sala, onde se brigava por livros e a casa da vovó os tinha em abundância. Bem, mas isso é coisa do passado. Livros e galinhas gordas e felizes pertencem a castelos abertos à visitação saudosista. Não deixar que morram é uma batalha diária.

Estranhamente, não era meu desejo que aquele objeto fosse assumir um lugar de honra ao lado dos dourados bibelôs. Pintados, portariam a cor da riqueza. Sujos e róseos, com restos de palha do ninho, os ovos humildes me remetiam ao conto e à ilustração. Não se podia querer tudo.,pois tudo se perderia. Doe-se o ovo de ouro. E colham-se as fragilidades e as incertezas do futuro. .

Passaram-se décadas e encontrei um objeto parecido em uma feira de artesanato. Adquiri sem pensar duas vezes. Virou o adorno-mor da cozinha, repintado com tinta spray, servindo de suporte para uma dúzia no inverno com saquinhos para lixo no verão. A galinha emblemática veio para encantar a guria agachada que me dorme. Talvez, naqueles tempos, eu, de antemão, possa ter me prevenido contra a nova ética, a nova ordem, a perplexidade e a indignação. Coisas desse estado brasileiro, coisas dos estados de transe coletivo, por onde todos põem ovos dourados e ocos, por vezes os pisam, partem, amontoam, pisoteiam, e todo mundo quer e quase ninguém perde.

Apesar de, e por conta de tudo, ainda restam pintinhos.. Dezenas, centenas deles. E, por certo, haverão de ilustrar outras dezenas de histórias para serem lidas pelas crianças. Não percamos as apostas nas novas gerações.

Galinhas de arame, com ovos de verdade, poderão servir de ornamento. E a fábula continuará a ser contada. Ainda creio nisso.

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