Estupradores são conhecidos das vítimas em 70% dos casos registrados em Santa Maria

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Estupradores são conhecidos das vítimas em 70% dos casos registrados em Santa Maria
Foto: Renan Mattos (Diário)As imagens fazem parte de uma simulação com a participação da atriz Gabriele Dors, 29 anos, que atua há mais de 10 anos em Santa Maria

O ano de 2020 chega ao fim com 31 registros de estupro segundo a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), 15 a menos que em 2019. Apesar do número se manter menor que no ano passado, dois dados chamam a atenção nas estatísticas. Nos últimos 23 meses, mais de 70% das vítimas relataram que conheciam o agressor, e, em 69% dos casos, elas foram estupradas em ambiente particular. Ao contrário do imaginário coletivo, que traça o arquétipo do estuprador como um psicopata que aborda vítimas em uma rua escura, os números mostram que, na prática, as mulheres são violentadas mesmo em lugares considerados seguros, como a própria casa, por pessoas de seu círculo de convívio.

Conforme a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), os registros são ainda mais altos. Constam 67 vítimas de estupro em Santa Maria em 2019 e 56 vítimas até novembro de 2020. A assessoria de comunicação da pasta explica que os números dos dados de estupro, algumas vezes, são notificados muito tempo após o crime, o que justifica a variação nos indicadores. Também reforça que os dados são fornecidos pelo Observatório da Segurança Pública, que centraliza ocorrências registradas em todos locais do Estado. 

A delegada titular da Deam, Elizabete Shimomura, vê um componente cultural no perfil dos crimes de estupro na cidade:

– Acho que a gente tem que ver além da questão do crime, a questão cultural. Os homens ainda entendem o corpo da vítima como objeto e não respeitam a negativa.Temos vários casos em que as vítimas vão em uma festa, desfrutam de ambientes comuns com os agressores, posteriormente vão para a casa de um amigo ou de conhecidos e lá são estupradas.

Em Santa Maria, 26% das vítimas de estupro relataram ter consumido bebida alcoólica ou algum tipo de droga antes do crime. De acordo com a delegada, nestes casos, a pena do agressor pode ser ainda mais dura:

– Torna-se uma questão de estupro de vulnerável, que aumenta a pena consideravelmente. Se constata que nesses casos, os autores, se aproveitando da fragilidade da vítima que está sob efeito de droga do bebida, não respeitam nem mesmo a condição de vulnerabilidade da vítima – explica.

O delegado regional Sandro Meinerz, concorda que o fato de mais da metade dos casos serem cometidos por conhecidos da vítima, em espaços privados, revela a presença do fator cultural entre as causas:

– O homem acaba sendo enquadrado no crime de estupro por ter um comportamento possessivo, por não aceitar uma rejeição, por não aceitar ter um não. É uma questão cultural, e essa cultura machista precisa ser alterada – defende.

O delegado explica ainda que a cultura também é o motivo para que muitas denúncias de estupro não sejam formalizadas. A culpabilização da mulher faz com que elas prefiram lidar com este tipo de violência em silêncio.

– No ambiente universitário, por exemplo, quando se ouve um caso de violência, as pessoas colocam em dúvida se foi mesmo estupro ou se a mulher “facilitou”. Pode ocorrer essa análise precipitada e machista de questionar porque ela usou tal roupa, porque bebeu demais, já que o fato de estar embriagada facilitaria o estupro. É como se fosse culpa da mulher, e esta cultura tem que mudar, precisamos fazer isso educando as crianças para que as próximas gerações de adultos sejam diferentes – cobra Meinerz.

A CULPA NÃO É DA VÍTIMA

Foto: Renan Mattos (Diário)As imagens fazem parte de uma simulação com a participação da atriz Gabriele Dors, 29 anos, que atua há mais de 10 anos em Santa Maria

Andréia*, 26 anos, é uma das vítimas que se enquadraria no espectro descrito pelos dados oficiais, caso tivesse denunciado os abusos que sofreu. Ela conta que, aos 17 anos, uma noite chamou um colega para estudar. Ela estava sozinha em casa e o jovem levou cachaça. Segundo ela, o que ficou do episódio foi dor e culpa:

– Tenho alguns flashs depois de beber, mas só lembro mesmo de acordar no outro dia cheirando a sêmen. Nunca falei nada pra ninguém, pois sempre tive na cabeça que a culpa era minha por ter bebido e ficado fora de mim – relata.

Outra vez, já na faculdade, ouviu de um colega, 40 anos mais velho do que ela, a seguinte frase: “eu estupraria essa gordinha”. Desta vez, Andréia chegou a contar para um familiar, que a orientou a não denunciar pela dificuldade de provar o abuso e pela posição social do agressor.

Movimentos como o coletivo La Tesis, no Chile, seguem trabalhando na tentativa de encorajar mais mulheres a buscar Justiça e a conscientizar a população de que a culpa não é da vítima. A música “Um estuprador no seu caminho”, criada pelo coletivo, foi ecoada nos quatro cantos do mundo depois de ser apresentada pela primeira vez em uma série de intervenções no país em novembro do ano passado. A letra deixa claro que a violência de um estupro não está condicionada ao comportamento da vítima: “A culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia. O estuprador é você”.

A delegada Elizabete Shimomura acredita que para evitar que esses crimes fiquem em silêncio, é preciso que o Estado promova mais campanhas para encorajar as vítimas a fazerem a denúncia:

– É muito comum as vítimas se sentirem culpadas, principalmente quando ingerem bebida alcoólica ou fazem uso de drogas, mas também tem a questão do abalo emocional, porque as vítimas não querem ser revitimizadas. Ter que passar por um balcão de delegacia, submeter-se a exame de verificação de violência sexual, apontar testemunhas, mas eu acho de suma importância que esses registros sejam feitos e esses autores sejam punidos – reitera.

*Nome fictício

REVITIMIZAÇÃO

Foto: Renan Mattos (Diário)As imagens fazem parte de uma simulação com a participação da atriz Gabriele Dors, 29 anos, que atua há mais de 10 anos em Santa Maria

A professora Laura Ferreira Cortes coordena o Fórum de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres de Santa Maria, um projeto de extensão do Colégio Politécnico da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em parceria com o Observatório dos Direitos Humanos da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade. O projeto tem a participação de integrantes de vários serviços de acolhimento da rede de proteção à violência contra as mulheres na cidade. Fazem parte, por exemplo, a Deam, a Secretaria Municipal de Saúde, a Patrulha Maria da Penha e o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. O Fórum debate crimes relacionados à violência de gênero, especialmente aqueles cometidos no ambiente íntimo, e traça estratégias de integração dos serviços e de enfrentamento à violência.

Segundo a professora, um dos fatores que impede que a vítima leve às autoridades as denúncias de abusos é o medo da revitimização, a violência praticada por instituições que representam o Estado depois que a vítima sofre o estupro.

– Se uma mulher vai para um serviço de saúde e não encontra acolhimento ou ela é julgada por um profissional porque ela estava na rua àquela hora, porque ela bebeu, porque usava aquela roupa, ela está sendo duplamente violentada- detalha Laura.

Da mesma forma, quando a vítima precisa repetir a versão do estupro em várias esferas, porque as instituições pouco se comunicam, o sistema submete a vítima a um dano de ordem psicológica, explica Laura:

– Às vezes isso acontece no próprio serviço, quando o relato precisa ser feito para dois ou mais profissionais diferentes.

Uma das saídas para evitar a revitimização é a conscientização dos profissionais que estão nas portas de entrada dos serviços quem compõem a rede de atendimento às mulheres, aponta:

– Apesar de muitos setores aqui em Santa Maria fazerem um excelente trabalho, temos que tentar mudar essa cultura de que a culpa é da mulher. Se ela permanece numa situação abusiva é porque ela não consegue romper com aquilo. Isso faz parte de uma cultura ,e o profissional precisa estar sensibilizado para mudar isso, para tentar compreender o lado dessa mulher, ter o mínimo de empatia.

Para isso, o Fórum de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres de Santa Maria criou o Segurança Pública com Elas, um curso de extensão da UFSM voltado a policiais civis, militares e guardas municipais e que visa a qualificação para o atendimento mais humanizado a mulheres em situação de violência.

REFERÊNCIA NO ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS

Foto: Renan Mattos (Diário)As imagens fazem parte de uma simulação com a participação da atriz Gabriele Dors, 29 anos, que atua há mais de 10 anos em Santa Maria

Quem sofre violência sexual e procura atendimento de saúde em Santa Maria vai acabar sendo direcionado ao Hospital Universitário de Santa Maria (Husm). A instituição é referência para vítimas de violência sexual até 72 horas após o fato. Isso significa que toda a vítima que chega a um posto de saúde de determinado bairro dentro dos três dias após o estupro é encaminhada ao Husm. Lá é direcionada ao pronto-socorro adulto, ao infantil, caso seja uma criança, e ao centro obstétrico, se for menina acima de 13 anos ou mulher.

A chefe da Unidade de Atenção à Saúde da Mulher e coordenadora da equipe de Matriciamento em Violência Sexual do Husm, Berenice de Oliveira Cruz Rodrigues, diz que, durante pandemia, houve um número menor de atendimentos, assim como nas outras áreas da saúde. Mas o número de crianças vítimas de estupro continua sendo uma constante.

A equipe de matriciamento tem o papel de organizar a rede de acolhimento das vítimas e de capacitar os profissionais de saúde para o atendimento humanizado às vítimas de violência sexual. O grupo é composto por duas enfermeiras – uma coordenadora e outra do núcleo de Vigilância em Saúde-, uma ginecologista, uma infecto pediatra, uma assistente social e uma psicóloga. A equipe faz treinamentos com os profissionais do Husm e também da rede de atenção básica. Isso assegura que os profissionais consigam direcionar as vítimas para o primeiro acolhimento e possam dar continuidade ao tratamento que é iniciado no hospital.

No Husm, a vítima recebe atendimento multiprofissional, de acordo com a necessidade. A paciente passa por exames, recebe os medicamentos previstos no protocolo para evitar doenças sexualmente transmissíveis e a anticoncepção, a chamada pílula do dia seguinte. Depois disso, ela é acompanhada por mais seis meses para monitoramento especialmente de HIV. Dependendo das condições, a paciente também pode ser encaminhada para assistência psiquiátrica, o que, segundo Berenice, é bastante comum nos casos de estupro. Após a alta do Husm, a rede de atenção básica será responsável por dar continuidade ao acompanhamento da usuária.

DENÚNCIA FORMALO atendimento a vítimas com mais de 18 anos é desvinculado da necessidade de registro da ocorrência. A coordenadora do serviço do Husm explica que as vítimas não precisam apresentar registro da ocorrência no hospital e nem precisam fazer quando saem. A denúncia só é compulsória para menores de 18 anos. Neste caso, o Conselho Tutelar é acionado para acompanhar os pais ou responsáveis à delegacia. No hospital também não são feitos exames para detectar se houve violência.

– Não somos IML (Instituto Médico Legal), não somos polícia, por isso a gente não faz exame físico para ver se teve violência. O relato, a tentativa, tudo isso é violência. A questão de obrigar a criança a ver um filme pornô configura violência sexual. Então não é um exame físico que vai determinar se a pessoa sofreu violência. O relato de violência já é considerado. O exame físico é pra ver se houve algum dano e qual a conduta a ser tomada – detalha Berenice.

A questão da coleta de vestígio, o exame que tem o objetivo de colher provas para o crime, feito após o estupro é realizada pelo Instituto Médico Legal. Conforme Berenice, em alguns casos, quando a mulher opta por fazer o registro de ocorrência, os médicos peritos podem ir até o hospital para realizar a coleta, mas via de regra, este procedimento é feito em outro momento.

– Alguns peritos já vieram coletar aqui para evitar que a pessoa seja revitimizada. Quanto mais exames físicos quanto mais vezes eu fizer ela relatar essa situação, pior será para ela – explica a enfermeira.

Os impactos do estupro na saúdeConforme a professora Laura Cortes, que tem graduação em enfermagem com especialização na área de saúde mental, as vítimas de estupro sofrem a transtornos de ansiedade, depressivos e têm índices maiores de suicídio e abuso de drogas.

– Ela (a vítima) carrega uma culpa que não é dela, mas que ela pensa que pode ser dela, para o resto da vida. Além disso, existe a dor de ter sofrido essa situação de violência. Muitas vezes, essa mulher não consegue mais ter prazer numa relação sexual, vai ter dificuldade de socialização, e, especialmente se for uma criança ou uma menina, pode ter maior dificuldade na escola e nas relações familiares e sociais.

Mulheres que sofrem violência sexual também são mais propensas ao abuso de álcool e outras drogas, transtornos gastrointestinais, e até doenças cardiocirculatórias que podem ser potencializadas ou desencadeadas pela questão do trauma. Há, ainda, consequências como abortos indesejados, gestações indesejadas, infertilidade e infecções sexualmente transmissíveis.

O PERFIL DOS ESTUPROS EM SANTA MARIA

2019 – 46 vítimas

2020 – 31 vítimas

*Dados fornecidos pela Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) até o dia 9 de dezembro deste ano. 

Idades

Entre 18 e 30 anos – 44 vítimas (57%)

Entre 31 a 40 – 13 vítimas (17%)

Entre 41 a 64 – 20 vítimas (26%)

Horários

Entre meia noite e 8h – 35 (45%)

Entre 8h01min e 13h – 9 (12%)

Entre 13h01min e 23h59min – 33 (43%)

Suspeito conhecido da vítima?

Sim – 57 (74 %)

Não – 19 (25 %)

Não informado – 1

Suspeito indiciado?

Não – 26 (34 %)

Sim – 31 (40%)

Inquérito em andamento – 20 (26 %)

Vítima fez uso de bebida alcoólica ou drogas lícitas/ilícitas?

Sim – 20 (26 %)

Não – 56 (73 %)

Não informado – 1

Onde aconteceu o estupro?

Local público – 24 (31 %)

Local particular – 53 (69 %)

*Colaborou: Laíz Larceda

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