Educar para ressocializar: internos da Fase buscam ingressar no Ensino Superior

Pâmela Rubin Matge

Educar para ressocializar: internos da Fase buscam ingressar no Ensino Superior
No Case, Caio* foi o único entre outros 37 a ter feito a prova do Enem. Hoje, no Estado, apenas três adolescentes chegaram ao Ensino Superior. Fotos: Nathália Schneider (Diário)

Apenas três entre os 379 adolescentes que estão nas 23 unidades da Fundação de Atendimento socioeducativo (Fase), no Rio Grande do Sul, foram aprovados a vagas para o Ensino Superior. Em 2023, Caio* almeja ser o quarto em todo o Estado e celebra o fato de ser o único entre os 37 outros internos na unidade a fazer a última prova do Enem e disputar uma cadeira universitária. Se o sonho for realizado, ele também será pioneiro na família por seguir os estudos, já que ninguém avançou do Ensino Fundamental. Filho de pai que trabalha como servente de pedreiro, e de mãe diarista, ele tem outros quatro irmãos. O sustento de todos conta com o valor repassado de um programa de transferência de renda do governo federal. No ano passado, quando Caio, agora com 18 anos, chegou pela segunda vez ao Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), os pais se separaram. Na primeira estadia, ele tinha13.

Em geral, os desejos de Caio não se distanciam do que querem tantos outros meninos da mesma idade. Em plena juventude, a vontade é sair sem medo, ouvir funk, ter dinheiro para comprar um tênis, ter amigos e não decepcionar a família, sobretudo, a mãe, que é a visita mais assídua do filho, além de ser uma forte referência pessoal. As diferenças de Caio para outros jovens se dão na privação de liberdade que vive e de características próprias. De acordo com os professores, ele é inteligente, focado e com raciocínio diferenciado para as ciências exatas, embora Caio tenha até vencido um concurso estadual de poesia. “Muita felicidade foi jogada no lixo trazendo sofrimento a toda família (…) No mundo somos traídos, presos somos esquecidos, mortos deixamos saudade, então, procure viver”, escreveu o jovem em um dos poemas.

Tanto a produção literária quanto o desenvolvimento dos cálculos são desenvolvidos na rotina da Escola Estadual Humberto de Campos, anexa ao Case, que é o espaço destinado à internação de adolescentes infratores sob a jurisdição do Juizado Regional da Infância e da Juventude (JRIJ) de Santa Maria. Os meninos podem ser transferidos de 42 municípios do Estado. Outras atividades como futsal, crochê, aulas de robóticas e xadrez também são oferecidas. Caio, por exemplo, já participou de um curso de introdução à construção civil e um curso de culinária.

Em janeiro, quando foi incluído na modalidade Interno com Possibilidade de Atividade Externa (ICPAE), Caio teve a permissão de passar os finais de semana com a família.

– Em um ano, foi a primeira vez que mexi no celular, que comi de novo a maionese da minha mãe, que escolhi o que assistir na TV. Vi que liberdade é poder escolher. Hoje, a escolha é tentar uma vaga na faculdade para tentar mudar a minha vida e a vida da minha família. Quero aprender com os erros e ir embora da cidade. Fiz mal para muitas pessoas, para as mães dessas pessoas. Fiz mais mal a elas do que a mim mesmo – reflete o jovem.

Conforme a Fase, a pontuação que Caio alcançou não foi suficiente para ingressar direto nas duas opções de cursos que ele se inscreveu: Educação Física e Engenharia Civil. Ambos em instituições do Estado de Santa Catarina. Mas ele está na lista de espera. Aguarda a segunda chamada e um recomeço.

Estudos internacionais sobre os efeitos da educação na prisão e fora dela, para jovens e adultos, evidenciam um impacto significativo e com baixíssimo custo no processo conhecido como “Desistência do Crime”, conforme explica Marcos Rolim, doutor em Sociologia e professor do mestrado em Direitos Humanos da UniRitter. Há pesquisas que medem esse efeito, e não há discordância entre elas. O impacto positivo da educação para os processos de desistência são os que possuem a melhor relação custo/benefício, sendo uma das medidas mais eficientes a serem tomadas pelo Estado para se prevenir o crime e a violência.

– Os dados disponíveis sobre reincidência no Brasil são bastante limitados e, como regra, os que se têm são números da chamada “reincidência prisional” em que se considera a reentrada na prisão como reincidência. Esse critério é problemático, porque muitas pessoas têm nova entrada sem condenação – em prisões preventivas ou provisórias – e, após algum tempo, são absolvidas. Mas, tendo em conta a ausência de políticas de amparo aos egressos, o imenso estigma social sobre eles e o processo de faccionamento produzido pelo cárcere, os indicadores de reincidência devem ser expressivos. Também por esse motivo, investir na educação é uma medida de inteligência elementar – afirma Rolim.

*Nome fictício para proteger a identidade do jovem entrevistado no Case, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

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Escola oferece educação, respeito e humanização aos meninos do Case

Para a diretora Carla, cada menino que entra na sala de aula não é um adolescente infrator, mas um aluno cheio de possibilidades

Inserida dentro do Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), a Escola Estadual de Ensino Médio Humberto de Campos oferece educação continuada aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, atendendo às séries finais do Ensino Fundamental, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e o Ensino Médio, atuando nos três turnos.

A escola trabalha com educação voltada à humanização, em ambiente acolhedor, com interatividade e integração.

– Temos de reconhecer o esforço da Fundação que construiu novos espaços destinados às atividades, o que nos permite gerenciar o atendimento praticamente exclusivo para cada adolescente, com mapeamento da série e da capacidade intelectual deles. Muitos chegam aqui sem perspectiva, chegam analfabetos funcionais, sem saber escrever o próprio nome. Aqui estudam, podem fazer o Enem. E, além da escola, eles podem sair daqui com a possibilidade de ter um emprego – explica o diretor do Case, Robson Zinn.

Algumas iniciativas já são reconhecidas e premiadas em mostras científicas da Coordenadoria Regional de Educação (8ª CRE), como a Escola Podcast, Mídias e Tecnologias Criativas, Oficina de Criação e Projeto Audiovisual, oficinas temáticas de outras instituições de Ensino Superior, que são parceiras da escola.

– Com a dedicação e o empenho de todos, direção, professores e demais colaboradores, os adolescentes, com sua perseverança, podem conquistar vitórias e incentivar ainda mais o propósito socioeducativo da reinserção social e a inclusão no mercado de trabalho. Desta forma, com sentimento de esperança, vimos a real possibilidade de que é possível, sim, a mudança – salienta o professor de História Henrique Corrêa Lopes.

Em 2022, o Case recebeu um laboratório de robótica e cultura maker. O objetivo é oferecer aos adolescentes a possibilidade de um novo ensino e a aprendizagem, criando ainda mais um vínculo cognitivo junto do desenvolvimento de novas habilidades.

REINCIDÊNCIA

A reincidência, termo que ampara diversas interpretações, apresenta índices distantes ao comparar os adolescentes que voltam a cumprir medidas socioeducativas e os que estão em presídios e penitenciárias. Conforme a assessoria da Fase, a reincidência dos adolescentes foi de 32% em 2022, e de detentos do sistema prisional, 70%.

Durante a entrevista ao Diário, no dia 28 de fevereiro, a coordenadora pedagógica da escola, Sinara Vargas Martin, fez um apelo ao defender que cada aluno é importante e pode ter uma vida digna:

– Quando eles entram por essa porta, eles são nossos alunos, não são adolescentes infratores.

Carla Hernandez Flores, diretora da escola, relembra da surpresa de encontrar ex-alunos da Escola Humberto de Campos em atuação no mercado de trabalho.

– Cada um tem suas características e trabalhamos por todos eles, independentemente do que aconteceu lá fora. A socioeducação não é mudar caminhos e, sim, mostrar novos caminhos. Com isso, tentamos mostrar que cada um tem algo bom para ser explorado. Um dia, eu fui a um shopping da cidade, e o segurança era um menino que saiu do Case. Veja bem: ele, que esteve aqui, privado de liberdade, agora fazia a segurança do shopping, a minha segurança e a dos nossos filhos. Ele me viu, se identificou, me deu um abraço e agradeceu. É por isso que vale a pena. Isso é tudo para quem é educador – relatou a professora enquanto a coordenadora pedagógica ouvia sem conter as lágrimas.

“ Como sociedade, temos de incentivar a ressocialização”, diz defensor

Escola Estadual Humberto de Campos, fica anexa ao Case de Santa Maria

É a partir das medidas socioeducativas, como o próprio nome diz, que todos os que chegam ao Case participam das atividades escolares e das oficinas profissionalizantes.

– Faz 10 anos que atuo com os meninos, e o que a gente observa, na prática, é que o que diferencia o cumprimento das medidas dos adolescentes é a educação. Não é uma mera resposta penal, um castigo, que os maiores de idade recebem quando ficam nas prisões, sem obrigatoriedade de estudar ou trabalhar – salienta Juliano Ruschel, defensor público que atua na área da infância e da juventude.

A iniciativa de Caio em fazer o Enem, o apoio da comunidade escolar e da direção do Case é uma marca de um trabalho que cumpre papel social, segundo o defensor:

– Fazer a prova do Enem é sensacional para esse adolescente. É importante que as pessoas saibam que dentro do Case existe uma escola estadual regular que faz um trabalho brilhante. Muitos adolescentes chegam à internação e nunca tiveram oportunidade de ensino. Ali, alguns começam a ser alfabetizados e concluem o Ensino Médio. Nós, enquanto sociedade, temos de evoluir, temos de incentivar a ressocialização desses meninos, que, na maioria das vezes, nem sequer foram socializados. É assim que começamos a agir para uma melhora de conduta.

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