Fotos: Vinicius Becker (Diário)
Com mais de 270 mil folhas recuperadas, universidade lidera esforço inédito no país para salvar a memória de órgãos federais
Eles chegaram inchados, manchados, cobertos por lodo e silêncio. No Rio Grande do Sul, inúmeros arquivos ficaram submersos durante as enchentes de maio de 2024. Era um passado recente do país que se dissolvia, folha por folha. Foi diante desse cenário que a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) montou uma operação de resgate com protocolos, inovação, força humana e, sobretudo, urgência.
Hoje, mais de 270 mil documentos já foram recuperados. E esse número continua a crescer, caixa após caixa, no projeto que ganhou nome e reconhecimento: a Operação Recupera Acervo – considerado, pelo Arquivo Nacional, a primeira estrutura do país dedicada ao resgate emergencial de arquivos públicos. Além do trabalho com os acervos da instituição, a UFSM atende nove órgãos federais, incluindo oito ministérios como o da Saúde, do Trabalho e o Banco Central.
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Conforme as arquivistas que comandam a operação, Débora Flores e Daiane Regina Segabinazzi Pradebon, a meta é transformar a UFSM no principal centro nacional de recuperação documental do país.
– Muitos desses órgãos não tinham como montar uma estrutura própria de recuperação. E o mercado carece de profissionais especializados nessa área. Como temos essa base montada aqui, conseguimos atender essas demandas e, ao mesmo tempo, desenvolver soluções mais eficazes. Os investimentos também permitem que pesquisas sejam desenvolvidas para ajudar outras instituições que passam por situações semelhantes – afirma Débora.

Órgãos atendidos pela UFSM:
- Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
- Banco Central
- Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)
- Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit)
- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
- Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro)
- Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
- Ministério da Saúde (MS)
- Serviço Geológico do Brasil (SGB)
A corrida para salvar o passado submerso da universidade
Em 30 de abril de 2024, a rampa que dava acesso a 12 mil caixas históricas foi a porta de entrada para a água que deixou o arquivo permanente da instituição completamente submerso no subsolo do prédio da Reitoria. O volume de chuva registrado em Santa Maria entre o fim de abril e início de maio foi inédito na história da cidade. Até então, não se tinha registro de um volume de chuva tão excessivo capaz de invadir o espaço.
A resposta do Departamento de Arquivo Geral (DAG) foi imediata. Uma operação de resgate, com apoio de professores, alunos, servidores e militares do Exército Brasileiro, foi realizada para a retirada dos materiais. A partir daí, foram semanas de teste e planejamento até a equipe adotar a técnica de congelamento dos arquivos molhados. Logo, o frio virou aliado da memória. Isso porque as baixas temperaturas congelam as bactérias e permitem que os fungos não se proliferam. O recurso foi um aporte inicial do Ministério da Educação (MEC), usado também para montar a estrutura de recuperação do acervo.

A técnica permitiu que todos os arquivos fossem recuperados. Entre eles, o desenho original do brasão da universidade pintado à mão. Conforme a diretora do arquivo geral da UFSM, Débora Flores, a eficácia do trabalho está atrelada a rápida resposta diante do fenômeno:
– A equipe compreendeu a necessidade de agir rapidamente e de adotar as técnicas mais recomendadas. Essa soma de esforços fez com que a gente conseguisse congelar a totalidade dos documentos que foram alagados. Isso possibilitou que pudéssemos recuperar tudo, folha por folha, de forma mais tranquila. Congelados, os documentos permanecem estabilizados. Essa é a grande vantagem.
Operação Recupera Acervo: tecnologia e as etapas do resgate
Há seis meses, o espaço do Multiuso foi adaptado para receber a Operação Recupera Acervo. No fundo da estrutura, foram instaladas as câmaras frias, guardiãs dos arquivos congelados. No centro do local, uma verdadeira operação: profissionais concentrados, vai e vem de documentos e um processo muito bem organizado para que tudo saia conforme o recomendado. O recurso para esse trabalho é oriundo do Ministério da Educação, Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação via Finep.
Atualmente, a Operação trabalha com duas linhas: uma para recuperação do acervo da UFSM e outra destinada aos arquivos externos.
Recuperação dos arquivos da UFSM
Tudo começa com a retirada do arquivo das câmaras frias que estão em uma temperatura de -22°C, recomendada pelo Arquivo Nacional. Débora, que conduz a reportagem pelo espaço, explica que o descongelamento faz com que o arquivo volte a umedecer – ou seja, é no processo em que os cristais de gelo voltam a virar água. É com ele úmido que inicia a etapa do descolamento. Um trabalho minucioso, folha a folha, que prepara o arquivo para a secagem.
Nessa etapa, é preciso que o documento esteja seco. Para isso, um equipamento, que funciona como uma espécie de termômetro, aponta a temperatura. O ideal é uma umidade menor do que 12%.
– Esse aqui está 32%. Sinal de que está úmido – sinaliza Débora, após o uso do equipamento.

É nessa rotina que outro aliado vem à tona: a inovação. A Operação tem desenvolvido protótipos com impressora 3D para auxiliar no processo. Na secagem, por exemplo, elas têm auxiliado na separação das folhas. Antes, o material usado como uma espécie de improviso, eram espirais de caderno. Cada caso, de acordo como as arquivologistas, é analisado para ver o que pode ser feito.
– Não existe, no mercado, um material específico. Então, estamos desenvolvendo algo que, se houver outra enchente, eu posso mandar o modelo 3D para que seja replicado no mundo inteiro.

Ao final da secagem, o documento é indexado – ou seja, é preciso encontrar o arquivo dentro da organização que já existia anteriormente. Cada documento encontrado, é um “check” na longa lista de arquivos da instituição. Após, é feita a digitalização.
– Não é que eu vá eliminar o papel original. É uma forma de preservar o documento – explica Débora.
Etapas
O fluxo de trabalho do Departamento de Arquivo Geral se dá em seis etapas:
- Retirada do acervo
- Triagem e estabilização do acervo
- Limpeza e higienização
- Secagem
- Digitalização
- Novo acondicionamento

Trabalho com acervos externos
O trabalho com os acervos externos é mais complexo. Muitos documentos chegam colados, a maior parte deles com lodo – o que forma blocos compactos difíceis de separar. A arquivologista Daiane Regina Segabinazzi Pradebon, que guia essa parte do processo, explica que, por esse motivo, o primeiro passo é dar um banho para que seja retirada a parte mais suja.
No Multiuso, o trabalho inicia com um checklist inicial para identificar o órgão e o tipo de documento. Por exemplo, do Dnit são mapas ou, do Banco Central, processos. Após, ocorre o trabalho folha a folha. Essa é a etapa em que os documentos vão para as mesas de higienização em que é realizado o trabalho de descolamento. Daiane conta que é um trabalho manual, feito com a ajuda de um líquido chamado Quaternário. É nessa etapa que está a estudante do quarto semestre de arquivologia, Camila Altreider e o aluno do curso de terapia ocupacional, Laureano Laureano Santos Ferreira. Para eles, é uma experiência fundamental para aperfeiçoamento profissional:
– Eu estou no projeto desde maio deste ano. São muitos aprendizados, principalmente para o futuro e também para currículo. Se acontecer de novo, vamos estar preparados – afirma Camila.

Depois de seco, a preocupação é com a devolução desse material.
– Sabemos que a maior parte das instituições não tem um prédio específico para os arquivos, então, acabam sendo acondicionados em locais que acabam não sendo os ideais. Se voltarem para o mesmo lugar, há risco de um novo alagamento porque está em um local de risco. Então, estamos fazendo uma selagem a vácuo para evitar que os microrganismos voltem a atacar – destaca Débora.
Pesquisa e inovação
Além da recuperação de documentos, o projeto também impulsiona pesquisas e soluções tecnológicas dentro da UFSM. Atualmente, são seis estudos em andamento, voltados à redução de custos, descarte de materiais e inovação em equipamentos como o protótipo utilizado na secagem.
Outros avanços foram a criação de espátulas de descolamento e um aplicador de produto em névoa, ideal para documentos mais frágeis. O aparelho foi desenvolvido com baterias de vapes apreendidas pela Receita Federal e peças impressas em 3D.

– O produto é liberado em forma de névoa, então não há atrito com o papel. Isso garante mais segurança na aplicação – explica Daiane.
Outro destaque é o estudo para reaproveitamento dos documentos que tem a eliminação autorizada. Parte desse material foi levada à Usina-Escola de Laticínios da UFSM, onde passa por um processo que transforma o papel em álcool.
A memória como garantia de direitos
Em meio aos documentos resgatados, uma carteira de trabalho faz com que as arquivistas ressaltem o impacto direto na população. Nesse caso, como a garantia de direitos.
– Quando a gente recupera uma carteira de trabalho, não estamos apenas limpando páginas. Estamos recuperando a possibilidade de alguém se aposentar, de ter acesso a um direito. E isso vale também para documentos de outros órgãos. Garantir acesso a essa documentação é garantir cidadania. São documentos que, além de contar a história do Estado, garantem direitos da sociedade gaúcha – ressalta Débora.

A arquivista Daiane conta que viveu essa realidade de forma pessoal. A casa onde morava foi atingida pelas enchentes e ela perdeu quase tudo. Nesta lista, estava o diploma. Foi graças ao projeto que pode ter o documento preservado:
– Hoje, se eu precisar, posso acessar meu diploma por meio do projeto. Isso mostra como esse trabalho tem impacto direto na vida das pessoas. E não sou só eu. Temos casos de escolas que perderam todo o acervo, e alunos que conseguiram obter segundas vias de seus documentos graças ao que foi preservado aqui.

Futuro e expansão
São cinco acervos na fila, esperando a recuperação. São casos em que o arquivo foi afetado pelas enchentes e ainda permanece no mesmo local. Para atender casos como esse, o projeto visa a expansão. Conforme Débora, a UFSM já trabalha na busca por mais investimentos. A intenção é garantir que novos acerbos possam ser resgatados:
– Quanto mais o tempo passa, mais o acervo vai se degradando porque não foi congelado. Então, o nosso objetivo é captar mais recursos e ampliar toda essa estrutura. A gente sabe que novas tragédias vão acontecer. Já estamos vendo isso em outras partes do mundo. Então, nosso objetivo é estar preparados, com conhecimento, estrutura e protocolos para evitar perdas – conclui Débora.
Produções com o Arquivo Nacional
Em parceria com o Arquivo Nacional, foram feitas duas publicações para ajudar as instituição que tiveram os acervos atingidos:
- Guia Rápido para o resgate de acervos danificados por água: O guia tem por objetivo orientar instituições detentoras de acervos que tenham sido atingidos por sinistros com água. São informações básicas que podem contribuir com a organização para resgate seguro desta documentação e auxiliar profissionais envolvidos na tarefa.
- Ações iniciais para salvaguarda de arquivos após ocorrência de desastre natural por inundação: O objetivo do documento é fornecer orientações técnicas preliminares para ações emergenciais de resgate do acervo. É resultado de experiências e informações entre as instituições envolvidas na recuperação dos acervos gaúchos.